Sigmund Freud |
por Wilson Ferreira
Em postagens anterioras viemos desenvolvendo o conceito de cartografia e topografia da mente como uma tendência dentro da agenda tecnognóstica que, a partir da confluência das neurociências, ciências cognitivas, cibernética e Inteligência Artificial, procura fazer um mapeamento do funcionamento do cérebro para desvendar o enigma da mente e da consciência. Em termos práticos, criar modelos simulados do cérebro para sua virtualização, monitoramento e controle para fins mercadológicos e políticos.
Partindo da constatação que o cinema hollywoodiano reflete a agenda tecnocientífica das últimas décadas, em nossos estudos sobre os filmes gnósticos na produção cinematográfica norte-americana recente percebemos uma tendência introspectiva dos protagonistas: narrativas em que se descreve como o protagonista torna-se prisioneiro do seu próprio mundo mental (memórias, traumas, sonhos, projeções, etc.) e como ele realiza um mapeamento desse território onírico para encontrar o caminho de saída de conspirações e tramas.
De filmes como “Vanilla Sky” (talvez o primeiro nessa linha) até o recente “Alice no País das Maravilhas” de Tim Burton, vemos estórias com geografias alegóricas de mundos mentais, cartografias da mente coletiva (como a série “O Prisioneiro”, 2009) e elaboradas topografias da mente por meio de sonhos dentro de sonhos ("A Origem", 2010).
Tendo essa discussão como contexto, o documentário da BBC “O Século do Ego” (The Century of the Self, 2002) trás preciosas informações históricas sobre as origens desse verdadeira tendência de endocolonização dos indivíduos pela Ciência, Publicidade e Marketing. A série é dividida em quatro episódios: episódio 1: “Máquinas da Felicidade”; episódio 2: “Engenharia do Consenso”; episódio 3: “Há um Policial Dentro da Sua Cabeça e Devemos Destruí-lo”; episódio 4: “Oito Pessoas Bebericando Vinho em Kettering”.
A série (240 minutos no total) inicia descrevendo como as ideias de Freud foram traduzidas nos EUA através de sua filha, Anna Freud, e pelo seu sobrinho, Edward Bernays (o inventor da profissão de Relações Públicas) como técnicas para controle das massas na era da democracia: a teoria do inconsciente trazida para o cerne do mundo da propaganda e do marketing. É a era da produção em massa e do conformismo em uma sociedade de consumo cujo leque de opções para o mercado era limitado.
O terceiro episódio é o mais importante por abordar o ponto de viragem decisivo dentro da engenharia do controle social nos anos 60 e 70: o momento em que as ideias de Freud são acusadas de serem as responsáveis por governos e corporações manipularem os sentimentos das pessoas e transformá-las em consumidores ideais. Filósofos como Wilhelm Reich e Hebert Marcuse e ativistas estudantis começaram questionar o pressuposto da teoria do inconsciente de que havia um Eu irracional, oculto, que deveria ser controlado pelos indivíduos para o bem da sociedade. Os oponentes diziam que Freud estava errado sobre a natureza humana: o eu interior não precisaria ser reprimido e controlado, mas, ao contrário, deveria ser encorajado a se expressar. Em consequência, teríamos uma sociedade melhor fundamentada num novo ser humano.
O documentário demonstra que o resultado dessa revolução foi o oposto: um indivíduo vulnerável, isolado e acima de tudo ganancioso, mais aberto à manipulação pelo mundo dos negócios e governos.
Topografia da Mente: retirando as camadas
O que chama a atenção no terceiro episódio do “Século do Ego”, são os depoimentos dos primeiros psicoterapeutas norte-americanos dos anos 60 e 70 que inventaram técnicas para permitir aos indivíduos se libertarem dos controles da sociedade. Eles relatam o conceito de retirada de camadas de formações mentais. Como fala o psicoterapeuta Werner Erhard, fundador do Curso de Treinamento Erhard nos anos 70: “ Se você retirar todas as camadas você acaba descobrindo um núcleo, uma coisa naturalmente autoexpressiva . Isso seria o verdadeiro Eu”.
Mais tarde essa mesma técnica é aplicada nas pesquisas de marketing da Universidade de Stanford nos anos 80 sobre Valores e Estilos de Vida (VALS) com métodos de perguntas sucessivas onde camadas de defesas, pensamento e crenças são retiradas para se chegar o núcleo do verdadeiro desejo do consumidor a ser agregado ao produto.
Freud pretendia entender a dinâmica psíquica através da interpretação dos sonhos. E essa interpretação somente poderia ser simbólica (condensações e deslocamentos da linguagem onírica) como forma de entender o porquê das dinâmicas do psiquismo. Em outras palavras, entender a essência última que permitiria explicar a conexão entre a alma e o corpo.
Ao contrário, a preocupação cartográfica e topográfica já presente nas primeiras abordagens dos psicoterapeutas demonstra uma abordagem não mais metafísica como em Freud, mas agora funcional para fins de manipulação direta: nada de descobrir simbolismos ocultos, mas, agora, mapear funções e camadas.
O documentário vai fundo nessa irônica jornada de busca de autoconhecimento: quanto mais os psicoterapeutas empreendiam técnicas de mapeamento profundo da vida mental, mais as camadas de defesa do ego eram retiradas, tornando-o vulnerável as instâncias de controle sociais e políticas. Chamaram isso de “autoexpressividade”.
A Emergência do Sujeito Fractal
Outro ponto importante desse episódio é a narração dos primórdios do desenvolvimento das técnicas de VALS (Valores e Estilo de Vida) pela Universidade de Stanford, Califórnia, no início dos anos 80. As corporações procuravam entender esse novo consumidor não mais conformista, mas que buscava a “autoexpressividade” e a liberdade de transformar-se em novas personas. Pela primeira vez, os pesquisadores começaram a formular questões que não mais envolviam prospecção de dados sobre nível de renda, faixa etária ou nível de escolaridade, mas perguntas profundas sobre como as pessoas se sentem, hábitos e escolhas.
Freud pretendia entender a dinâmica psíquica através da interpretação dos sonhos. E essa interpretação somente poderia ser simbólica (condensações e deslocamentos da linguagem onírica) como forma de entender o porquê das dinâmicas do psiquismo. Em outras palavras, entender a essência última que permitiria explicar a conexão entre a alma e o corpo.
Ao contrário, a preocupação cartográfica e topográfica já presente nas primeiras abordagens dos psicoterapeutas demonstra uma abordagem não mais metafísica como em Freud, mas agora funcional para fins de manipulação direta: nada de descobrir simbolismos ocultos, mas, agora, mapear funções e camadas.
O documentário vai fundo nessa irônica jornada de busca de autoconhecimento: quanto mais os psicoterapeutas empreendiam técnicas de mapeamento profundo da vida mental, mais as camadas de defesa do ego eram retiradas, tornando-o vulnerável as instâncias de controle sociais e políticas. Chamaram isso de “autoexpressividade”.
A Emergência do Sujeito Fractal
Outro ponto importante desse episódio é a narração dos primórdios do desenvolvimento das técnicas de VALS (Valores e Estilo de Vida) pela Universidade de Stanford, Califórnia, no início dos anos 80. As corporações procuravam entender esse novo consumidor não mais conformista, mas que buscava a “autoexpressividade” e a liberdade de transformar-se em novas personas. Pela primeira vez, os pesquisadores começaram a formular questões que não mais envolviam prospecção de dados sobre nível de renda, faixa etária ou nível de escolaridade, mas perguntas profundas sobre como as pessoas se sentem, hábitos e escolhas.
As redes sociais potencializam o impulso confessional do sujeito fractal: a necessidade de
expor seus sentimentos,motivações e temores
O retorno dos questionários pelo correio foi surpreendente (86%). As pessoas simplesmente adoraram preencher os questionários e muitos foram devolvidos com bilhetes do tipo “vocês têm outros questionários que eu possa preencher?”
Dessa maneira, o documentário apresenta o momento em que surge esse verdadeiro impulso confessional que mobiliza as pessoas na atualidade.
A cultura crescente do autoconhecimento e autoexpressividade dos anos 70 resultou num impulso narcísico em expressar publicamente seus desejos mais íntimos, pensamentos, incertezas e motivações. Um impulso confessional potencializado na atualidade pelo ciberespaço por meio de redes sociais como Orkut, Facebook e Twitter.
Autores como Richard Sennet chamam esse fenômeno de “ascetismo mundano” derivado da ética protestante tal qual descrita por Weber. Enquanto na ética cristã o ascetismo de um monge é um impulso voltado para o interior (“um monge que se flagela a si mesmo diante de Deus, na privacidade da sua cela, não pensa na sua aparência diante dos outros” – SENNETT, Richard. O Declínio do Homem Público. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 406.), ao contrário, na ética protestante há um componente mundano no ascetismo pela necessidade de demonstrar não somente a Deus mas aos outros a sua renúncia e sacrifício, provando a todos ser um merecedor das graças divinas. Isso se insere na cultura narcísica atual como um impulso confessional como uma performance do eu interior diante dos outros:
“Ou seja, o narcisismo é o princípio psicológico para a forma de comunicação que chamamos de representação da emoção para outrem, ao invés de uma apresentação corporificada da emoção. O narcisismo cria a ilusão de que uma vez que se tenha sentimento ele precisa ser manifestado – poque no final das contas, o ‘interior’ é uma realidade absoluta” (SENNETT, Richard. O Declínio do Homem Público. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 408.)
Podemos definir esse indivíduo compulsivo em representar sua intimidade para os outros como um “sujeito fractal”. Tal qual o fracta da geometria (objeto geométrico que pode ser dividido em partes, cada uma das quais semelhantes ao objeto original), é um sujeito que se torna um nódulo que apenas ratifica o que lhe é externo. A aparência narcísica de um ego grandioso encobre um esvaziamento da própria subjetividade que, sitiado, adapta-se e reproduz mimeticamente o entorno para sobreviver. É o sujeito fractal, como um fragmento que reproduz dentro de si, infinitamente, o padrão do todo.
Vulnerável e sem defesas, reproduz ideias e sentimentos como fossem originais e verdadeiros, mas não passam de reprodução repetitiva de padrões.
O Círculo vicioso produção/mal estar/consumo
Outro ponto importante focado neste terceiro episódio do “Século do Ego” foram as profundas transformações ocorridas na organização do trabalho e da produção industrial com a descoberta dos sujeitos “autoexpressivos” pelas pesquisas da Universidade de Stanford. A descoberta de um “ego infinito” que quer experimentar diversas identidades e estilos de vida obrigava a produção de um vasto leque de produtos costumizados, voltados a uma segmentação de mercado cada vez mais crescente. Isso confrontava as velhas restrições da produção em massa que disponibilizava pouca variedade de produtos para indivíduos conformados.
Como desafiar uma estrutura industrial que se acostumara a gerar lucros à base da padronização e repetição? A solução estava nos computadores que permitiram aos fabricantes produzir economicamente pequenos lotes de bens de consumo até chegar às formas on demand atuais.
As consequências foram mudanças radicais das plantas de fábricas, das organizações de trabalho e das relações trabalhistas. Diante da necessidade de produtos e serviços que atendam a infinitas formas de desejos e identidades, a produção flexível e a flexibilidade das relações trabalhistas impõem-se: organogramas com funções novas e outras que desaparecem da noite para o dia, contratos temporários, estagiários, autônomos, terceirização, fragilização sindical e do espírito de classe profissional, precarização do trabalho etc.
O clima organizacional resultante é de instabilidade, insegurança e medo. Se no passado, na tradicional produção em massa, a loucura do trabalho se manifestava em neuroses e alienação (devido ao trabalho repetitivo e monótono), agora na produção flexível impera a paranóia, psicose, esquizofrenia e depressão. Principalmente porque com a fragmentação profissional, o indivíduo introjeta a culpa, considerando-se um “perdedor”, “incompetente” ou “não focado ao sucesso”.
O narcisismo e a autoexpressividade confessional são as formações reativas diante desse mal estar do cotidiano de trabalho. A necessidade em confessar-se para outros em redes sociais demonstra esta busca por grupos de apoio, formação de comunidades de autoajuda que, ironicamente, produzem um efeito contrário: a repetição fractal de padrões e clichês quando se achava estar expressando uma “verdade” interior.
Quanto mais os relatos de fragmentos emocionais e de mal estares se disponibilizam nas redes, mais se transformam em dados brutos para o desenho de verdadeiras cartografias mentais realizadas pelos analistas de redes sociais das grandes corporações. E mais essas cartografias serão as bases para o lançamento de novos produtos, identidades e estilos de vida cujos consumidores acreditam serem formas de autoexpressividade que dê algum significado a uma vida insegura e imprevisível. E dessa forma fecha-se o círculo perverso produção/mal estar/consumo.
Portanto, o título desse documentário “O Século do Ego” é irônico: na verdade os espectadores veem a história do assalto ideológico ao ego. Sob a promessa de liberação do indivíduo das restrições sociais por psicoterapeutas e filósofos, vemos as corporações encorajarem as pessoas a se sentirem pessoas especiais ao oferecê-las maneiras de expressar essa individualidade. Mais o marketing e publicidade encorajam as pessoas, mais o ego torna-se fractal: fragmentos de padrões idênticos ao todo.
Ficha Técnica
Título: O Século do Eu (The Century of the Self)
Direção: Adam Curtis
Elenco (entrevistados): Werner Erhard, Martin Bergman, Robert Reich, Hebert Marcuse, Tony Blair, Bill Clinton entre outros
Produção: BBC, RDF Media
Distribuição: Independent Feature Project
Ano: 2002
País: Reino Unido
texto muito bom, estava procurando alguma critica sobre esse otimo documentario
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