02 dezembro, 2014

Da arte de mandar pastar

por Denise Queiroz
La Roue de la Fortune. Calque de Miniatures de l’Hortus Deliciarum  de Herrade de Landsberg. 
Paris: Bibliothèque Nationale de France

A vó, figuríssima, já falei dela pra muita gente, mas nunca escrevi. Filha de alemão que não sei bem o causo todo, só sei que tinha muita terra e casou com uma índia. Aí misturou umas coisas. A educação em casa, com fraulein (aquelas governantas professoras, encarregada dos 14 filhos numa época em que não havia escola lá naqueles cafundós para os urbanos e centro do mundo para quem vivia) e a cultura da vó Emília, que não conheci, mas que a mãe lembra muito e conta histórias.

Era família imensa, e como ‘de posses’ as filhas tinham casamento tratado desde cedo. Mas num baile daqueles que duravam alguns dias e as meninas bem nascidas levavam vários vestidos, minha avó, com 13 anos, conheceu meu avô. E esse conhecimento (ela descrevia com detalhes as roupas que ela e irmãs, ele e família usavam) descambou tratos e contratos.  Com 14 anos, casou. Vô Jorge era bonito, boa pinta, acho que se eu fosse ela também teria me apaixonado.  E naqueles tempos casava-se cedo porque a vida era mais curta. Ela contava que entre as obrigações de esposa e dona de casa, brincava de bonecas...

Mas a vida é feita do inesperado. Vovô morreu tomando o cafezinho digestivo do almoço e a vó ficou viúva cedo, com 6 dos dez filhos que teve, em casa. O menino mais novo tinha 3 anos. Preciso dizer que ela tinha sido deserdada por ter rompido os tratos e contratos e teve que arcar com as consequências? As quatro meninas pequenas, algumas já meio mocinhas, ajudavam a costurar, cuidar da horta e da lavoura, cozinhar. As mais velhas já casadas e com filhos levavam, em revesamento, algumas das menores para suas casas onde ajudavam nas lidas da casa e com os sobrinhos, e assim aliviavam a carga da mãe. 

Por conta da educação alemã, ela tinha um livro e sabia o mascate pra encomendar as homeopatias que ‘o autor’, como ela chamava o compêndio do Hahnemann, recomendava pra cada dolência.  A casa, perdida no meio de um nada (até hoje igual), era passagem de tropeiros que sabiam dos atalhos entre a fronteira e os campos do planalto. O campo do vovô​, além das vaquinhas pro leite do gasto e pros queijos, servia de albergue pra bichos cansados. O sótão, com ​várias camas tipo de campanha enfileirada e com escada íngreme, para os tropeiros, cansados, nas noites geladas. Nas muito quentes, a figueira era o abrigo. 

Apesar das dificuldades, nunca faltou uma sopa ou limonada pra quem ali passasse. E muitos deles encomendavam as bombachas, com os favinhos que ela fazia como ninguém, na máquina de costura à manivela, à luz do lampião quando sobrava pra querosene, ou de velas fabricadas em casa, o de sempre. Quem chegasse com dor, tosse ou febre, era socorrido pela ‘consulta ao autor’ e se a indicação estivesse em falta, o jujo da vó Emília, a índia, resolvia. Ninguém saía sem agradecimento. Se muito grave, ela não deixava que seguisse até que estivesse bom.

Por conta das necessidades, permitiu que algumas filhas casassem com ‘brasileiros’. Eram uns tropeiros que vez que outra passaram por lá e se encantaram com a beleza e destreza das filhas da dona Catulina. Um desses, meu pai que, pelos olhos azuis, até poderia passar por alemão, mas a mulher ‘não brasileira’ também não foi bem vista na família dele.

Mas enfim, essa figura que desafiou costumes naquele início de século XX (nasceu em 1897) ensinou as netas a mandar “homem pastar”. A expressão deveria ser usada para moços que vinham ‘tirar pra dançar’ em bailes e que não agradavam, ou pela pinta, ou pela fama, ou por qualquer outra coisa. Em língua destes tempos, ensinou o ‘block, porque não sou obrigada’; de quando eu era menina, a dizer não.

Quando eu tinha 15 anos minha avó já não tinha a casa dela. Passava temporadas nas casas dos filhos e filhas mas tinha um quarto reservado na casa de cada um dos filhos e os objetos de vida na do mais velho, que ficou com a casa que era dela. Nós, minha irmã e eu, saindo pra ‘noite’ da cidadezinha, que era uma discoteca onde vinha gente de todas redondezas.  E foi essa noite que ela disse: 'se não te agradar, seja educada, mas manda pastar'.

Obrigada, Catulina! Pratico muito até hoje. Gente ignorante, que vem puxar conversa com maus jeitos e olhares, “vai pastar”. Quando mais nova, chamada de ‘potranca’ na rua: “mas não pro teu potreiro”.

Contam a mãe e as tias que ela, aos quase 92 - única vez que ‘baixou hospital’, 23 dias antes de morrer – recebeu a visita de uma das netas. Indagada se solteira, ela contou que estava vivendo com o então namorado e não sabia se ia casar. “Bem que tu faz, filha, homem, tem que experimentar, nem todos são pra casar”. As filhas pularam “- Mas mamãe, quando a gente se mostrou interessada tu tratou o casamento” ... ”- Naquele tempo era assim, hoje não é mais. Que bom pras meninas”.

Fim

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