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Não é difícil que uma criança entenda que determinadas coisas não servem. Basta que os valores maiores tenham sido sempre colocados, desde a barriga. Boa música, brincadeira de folhear livrinhos de pano quando eles começam a segurar objetos, livrinhos de plástico no banho. Em vez da TV ligada da manhã à noite, alguns dias e horários para ver alguns filmes e, à medida que vão crescendo, programas escolhidos. Na hora de dormir, livros, histórias, música. E pronto. TV passa a ser como qualquer outro eletrodoméstico, só ligado quando necessário.
Mas por diferentes razões, a prática é outra. Gerações de seres humanos foram e são criadas na frente da TV, em casas que reproduzem cenários de programas daquele tipo onde tudo é muito arrumadinho e livro, papel, é visto como ‘coisa que enfeia e junta poeira’. E onde a televisão tem lugar de destaque e está sempre ligada, em qualquer canal...
No estudo da comunicação, várias teorias norteiam a análise do que funciona, e do que não, na hora de atingir o público. Sem entrar no detalhe, a terrível “uma mentira repetida mil vezes se torna verdade”, sintetiza boa parte delas. Isso em termos de notícia, né? Não só. A ficção e alguns programas com grande aceitação, se encarregam de disseminar algumas ‘verdades’ e hábitos que, mil vezes transmitidos sob variados personagens e cenários, acabam sendo incorporados, tanto por quem tem acesso à cultura formal – e boa parte a mal utiliza – quanto por quem não a tem. A maldade, na ficção, está na propagação massiva de estigmas sobre a condição de quem sempre esteve em situação vulnerável diante da cultura dominante.
Um exemplo recente, e revoltante, da incorporação e disseminação de valores nada edificantes, foi vivido nas redes sociais por Thiago Ribeiro e pode ser lido no seu blog. O vídeo que contava detalhes do odioso caso foi retirado do youtube, por decisão judicial que favoreceu ao agressor, um dos apresentadores de um desses programas que difundem preconceito sob o disfarce de humor.
Outros desses valores adulterados, de igual perniciosidade e com efeito danoso imediato, apareceu cerca de uma semana antes dos segundo turno das eleições. Um assessor de mídias sociais do candidato José Serra, pelo twitter e facebook, levava os seguidores a crer que o Enem deste ano havia sido cancelado. Porém, ‘espertamente’, linkando notícia de 2009, quando o exame foi fraudado numa gráfica da Folha de São Paulo.
Print de hashtag no twitter. Esse perfil hoje aparece como inexistente |
Sábado, poucas horas antes da prova, nova onda de boatos sobre o cancelamento do exame chegou via twitter. Foi iniciado na noite anterior e os retuitadores da infâmia, apanhados, passaram o dia tentando justificar como “uma brincadeira”.
Que tipo de sociedade é capaz de gerar pessoas tão insanas a ponto de tentar prejudicar, direta e imediatamente, quase seis milhões de pessoas ? E pior, uma vez expostos, a negar a gravidade dos seus atos?
Sabemos todos que este país é formado por centenas de influências culturais e os primeiros colonizadores eram muito mais 'amigáveis' ao ‘diferente’ que os de outras sociedades, como a norte-americana. Aqui houve miscigenação de etnias e povos, e a pluralidade cultural advinda disso é festejada como uma das nossas maiores riquezas. Mas isso nunca impediu que o racismo, e outras doenças sociais resultantes do preconceito, existam e sejam evidentes. Tanto que há leis, desde a década de 50 do século passado, prevendo punição aos preconceituosos.
Agora as políticas afirmativas, implantadas na última década, começam a desenhar uma equiparação social que poderá ser contemplada em alguns anos mais. Elas vêm acompanhadas da luta diária das minorias, que de minoria tem muito pouco. A visibilidade nas redes sociais desses movimentos interconectados, a difusão de leis existentes e projetos de novas leis e as ações para diminuir os efeitos do preconceito, seguem a bons e largos passos.
Evidente que, como toda ação gera reação, é exatamente o inconformismo da parcela de brasileiros que rejeita com o fígado uma sociedade mais igualitária, o que vem sendo despejado, disfarçado de ‘humor’ nos veículos e programas de massa, e muito mais claramente nas redes sociais.
A produção, e midiatização, desses conceitos excludentes é cada vez mais anacrônica: ao atender uma parcela social pouco identificada com os valores da maioria dos brasileiros, a rejeição é imediata pelas redes. E pelas urnas. Ano após ano, há perda de espaço de representação política do tipo de governança que não leva em consideração as legítimas demandas e os evidentes avanços trazidos pela inclusão educativa, econômica e social de milhões de pessoas historicamente à margem.
O resultado natural esperado é que o rechaço, já existente na política e nas redes, se estenda às aberrações do entretenimento. A tendência é que por falta de público e, por consequência, de patrocinadores, estes programas desapareçam da grade diária e passem a servir, unicamente, como objeto de estudo de um fenômeno cultural temporal... que tentou ser implantado, mas que acabou não tendo importância na formação do país.
A regulamentação do capítulo das comunicações da Constituição de 1988 poderia abreviar esse tempo, e evitar muito gasto de energia, tanto dos movimentos sociais quanto dos próprios agentes do Estado.
Enquanto isso não acontece, deixemos que tais programas, e quem está adiante e por trás deles, ocupem seu verdadeiro lugar: o penico.
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