05 novembro, 2012

Pânico ou penico?

por Denise Queiroz
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Vi um pedacinho de um desses programas pânico ou cqc junto com o filho quando em 2007, de volta ao Brasil, pediu para assistir pois os colegas tinham falado. Não aguentamos nem 10 minutos e ele, à época com 10 anos, encontrou melhores companhias na escola.

Não é difícil que uma criança entenda que determinadas coisas não servem. Basta que os valores maiores tenham sido sempre colocados, desde a barriga. Boa música, brincadeira de folhear livrinhos de pano quando eles começam a segurar objetos, livrinhos de plástico no banho. Em vez da TV ligada da manhã à noite, alguns dias e horários para ver alguns filmes e, à medida que vão crescendo, programas escolhidos. Na hora de dormir, livros, histórias, música. E pronto. TV passa a ser como qualquer outro eletrodoméstico, só ligado quando necessário.

Mas por diferentes razões, a prática é outra. Gerações de seres humanos foram e são criadas na frente da TV, em casas que reproduzem cenários de programas daquele tipo onde tudo é muito arrumadinho e livro, papel, é visto como ‘coisa que enfeia e junta poeira’. E onde a televisão tem lugar de destaque e está sempre ligada, em qualquer canal...

No estudo da comunicação, várias teorias norteiam a análise do que funciona, e do que não, na hora de atingir o público. Sem entrar no detalhe, a terrível “uma mentira repetida mil vezes se torna verdade”, sintetiza boa parte delas. Isso em termos de notícia, né? Não só. A ficção e alguns programas com grande aceitação, se encarregam de disseminar algumas ‘verdades’ e hábitos que, mil vezes transmitidos sob variados personagens e cenários, acabam sendo incorporados, tanto por quem tem acesso à cultura formal – e boa parte a mal utiliza – quanto por quem não a tem. A maldade, na ficção, está na propagação massiva de estigmas sobre a condição de quem sempre esteve em situação vulnerável diante da cultura dominante.



Um exemplo recente, e revoltante, da incorporação e disseminação de valores nada edificantes, foi vivido nas redes sociais por Thiago Ribeiro e pode ser lido no seu blog. O vídeo que contava detalhes do odioso caso foi retirado do youtube, por decisão judicial que favoreceu ao agressor, um dos apresentadores de um desses programas que difundem preconceito sob o disfarce de humor.

Outros desses valores adulterados, de igual perniciosidade e com efeito danoso imediato, apareceu cerca de uma semana antes dos segundo turno das eleições. Um assessor de mídias sociais do candidato José Serra, pelo twitter e facebook, levava os seguidores a crer que o Enem deste ano havia sido cancelado. Porém, ‘espertamente’, linkando notícia de 2009, quando o exame foi fraudado numa gráfica da Folha de São Paulo



Print de hashtag no twitter. Esse perfil hoje
aparece como inexistente

Sábado, poucas horas antes da prova, nova onda de boatos sobre o cancelamento do exame chegou via twitter. Foi iniciado na noite anterior e os retuitadores da infâmia, apanhados, passaram o dia tentando justificar como “uma brincadeira”. 





Que tipo de sociedade é capaz de gerar pessoas tão insanas a ponto de tentar prejudicar, direta e imediatamente, quase seis milhões de pessoas ? E pior, uma vez expostos, a negar a gravidade dos seus atos?

Sabemos todos que este país é formado por centenas de influências culturais e os primeiros colonizadores eram muito mais 'amigáveis' ao ‘diferente’ que os de outras sociedades, como a norte-americana. Aqui houve miscigenação de etnias e povos, e a pluralidade cultural advinda disso é festejada como uma das nossas maiores riquezas. Mas isso  nunca impediu que o racismo, e outras doenças sociais resultantes do preconceito, existam e sejam evidentes. Tanto que há leis, desde a década de 50 do século passado, prevendo punição aos preconceituosos.

Agora as políticas afirmativas, implantadas na última década, começam a desenhar uma equiparação social que poderá ser contemplada em alguns anos mais. Elas vêm acompanhadas da luta diária das minorias, que de minoria tem muito pouco. A visibilidade nas redes sociais desses movimentos interconectados, a difusão de leis existentes e projetos de novas leis e as ações para diminuir os efeitos do preconceito, seguem a bons e largos passos. 


Evidente que, como toda ação gera reação, é exatamente o inconformismo da parcela de brasileiros que rejeita com o fígado uma sociedade mais igualitária, o que vem sendo despejado, disfarçado de ‘humor’ nos veículos e programas de massa, e muito mais claramente nas redes sociais.

A produção, e midiatização, desses conceitos excludentes é cada vez mais anacrônica: ao atender uma parcela social pouco identificada com os valores da maioria dos brasileiros, a rejeição é imediata pelas redes. E pelas urnas. Ano após ano, há perda de espaço de representação política do tipo de governança que não leva em consideração as legítimas demandas e os evidentes avanços trazidos pela inclusão educativa, econômica e social de milhões de pessoas historicamente à margem.
 

O resultado natural esperado é que o rechaço, já existente na  política e nas redes, se estenda às aberrações do entretenimento. 
A tendência é que por falta de público e, por consequência, de patrocinadores, estes programas desapareçam da grade diária e passem a servir, unicamente, como objeto de estudo de um fenômeno cultural temporal... que tentou ser implantado, mas que acabou não tendo importância na formação do país. 

A regulamentação do capítulo das comunicações da Constituição de 1988 poderia abreviar esse tempo, e evitar muito gasto de energia, tanto dos movimentos sociais quanto dos próprios agentes do Estado.

Enquanto isso não acontece, deixemos que tais programas, e quem está adiante e por trás deles, ocupem seu verdadeiro lugar: o penico.


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