por José Eli da Veiga
do IHU
Cenários sobre o futuro do Brasil precisam se apoiar em boa interpretação dos "sentidos do lulismo," conforme a modesta expressão adotada por André Singer, professor de ciência política da USP, para título do excelente livro que coroou mais de 20 anos de pesquisas empíricas e teóricas sobre o tema.
O lulismo foi um "pulo do gato" consolidado por "ousadia". O pulo veio da opção preferencial por manter a ordem e driblar qualquer tipo de confronto com artilharias de capitalistas, com o objetivo de melhorar as condições de vida das camadas mais miseráveis da população, fortemente concentradas no Nordeste. A ousadia foi turbinar essa orientação sob o choque global de setembro de 2008, ao conclamar a população a "manter a confiança e comprar, arriscando-se a quebrar junto com os endividados".
Os dois movimentos foram confirmados nas eleições de 2006 e 2010. Primeiro os miseráveis substituíram as camadas médias que haviam prevalecido no "lulalá" de 2002, depois essa inversão foi até aprofundada com a votação de Dilma no Nordeste.
Esse ordeiro combate à miséria - essência da agenda lulista - já despontara de forma muito insipiente no segundo mandato de FHC. E só foi mesmo relançado a partir de setembro de 2003, com o descarte dos quase 2.400 "comitês gestores" do programa Fome Zero.
Daí ser das mais cativantes a descrição analítica proposta por André Singer do processo de adaptação do PT ao seu "condottiero". Um ótimo exemplo - mesmo que tardio, além de tropical - de como organizações políticas de anticapitalismo congênito evoluem com desconcertante rapidez ao reformismo gradualista por evitarem confrontos para conseguir governar. Reformismo que só pode ser tachado de "conservador," como faz o subtítulo do livro, na acepção mais tosca desse termo, a de não revolucionário.
Claro, debates infindáveis decorreriam de frágeis analogias históricas, de canhestras avaliações da era FHC, e até de alguns recursos a uma retórica só descodificável por leitores com séria formação marxista. Nada disso diminui, contudo, a extrema utilidade desse livro para exercícios especulativos sobre os desdobramentos do processo civilizador nestas paragens.
Tudo indica que a agenda lulista permanecerá imprescindível para muitos dos próximos governos, sejam quais forem as oscilações eleitorais. Pois, mesmo que melhore muito a qualidade do crescimento econômico, a efetiva miséria só se tornará comparável à de país desenvolvido lá por 2030, na melhor das hipóteses. Podendo se prolongar ao menos até 2060, caso sejam abalados os fundamentos materiais do lulismo, com destaque para o predatório desempenho do bloco agromineral exportador no aproveitamento das vantagens comparativas oferecidas pela abundância de recursos naturais.
O mais provável, portanto, é que o pós-lulismo - seja lá o que vier a ser - dificilmente surja antes de meados do século, a menos que seja antecipado por circunstâncias excepcionais.
Tais estimativas são necessárias para enfatizar que o ordeiro combate à miséria deverá se manter como importante componente programático de uns dez futuros governos. Isto é, que o sentido fundamental das políticas públicas revigoradas a partir de setembro de 2003 continuará a ser, em caso de alternâncias, dimensão programática básica de quaisquer outras coalizões governamentais.
A grande incógnita se refere ao eixo de uma agenda pós-miséria, a ser adotada quando começarem a surgir os sinais de seu arrefecimento. Talvez um foco explícito no combate às desigualdades, bem mais difícil de ser executado com dribles em setores economicamente dominantes, a começar pelos que estão fazendo a América nos mercados imobiliários (talvez até mais nos rurais que nos urbanos). Poderosos interesses patrimoniais serão ferozes obstáculos para que continuem a ser significativamente reduzidas desigualdades de renda, de acesso, e de oportunidades. Isto é, para que em algumas décadas os níveis de desigualdade do Brasil se aproximem dos de países como o Canadá, por exemplo.
O pior é que, além dessas resistências do patrimonialismo tupiniquim, tudo dependerá demais de fatores que nem podem ser domesticamente controlados. Mesmo na hipótese de que uma guerra nuclear continue a ser evitada, serão inviabilizados até os melhores projetos anti-miséria, quanto mais planos para a redução das desigualdades, caso não venha a ser organizada ainda nesta década uma efetiva governança multilateral do desenvolvimento sustentável.
É isso que escancara a crucial importância da política externa para a viabilização dos interesses nacionais. Se o Brasil persistir em alianças com potências das mais reticentes ao engajamento em favor da sustentabilidade (isto é: descarbonização, conservação da biodiversidade e recuperação do ciclo do nitrogênio), com certeza estará contribuindo para cavar sua própria cova, pois nada será mais sério contra uma plena realização do lulismo, do que a desordem global decorrente de um predomínio do negacionismo ecológico.
O lulismo foi um "pulo do gato" consolidado por "ousadia". O pulo veio da opção preferencial por manter a ordem e driblar qualquer tipo de confronto com artilharias de capitalistas, com o objetivo de melhorar as condições de vida das camadas mais miseráveis da população, fortemente concentradas no Nordeste. A ousadia foi turbinar essa orientação sob o choque global de setembro de 2008, ao conclamar a população a "manter a confiança e comprar, arriscando-se a quebrar junto com os endividados".
Os dois movimentos foram confirmados nas eleições de 2006 e 2010. Primeiro os miseráveis substituíram as camadas médias que haviam prevalecido no "lulalá" de 2002, depois essa inversão foi até aprofundada com a votação de Dilma no Nordeste.
Esse ordeiro combate à miséria - essência da agenda lulista - já despontara de forma muito insipiente no segundo mandato de FHC. E só foi mesmo relançado a partir de setembro de 2003, com o descarte dos quase 2.400 "comitês gestores" do programa Fome Zero.
Daí ser das mais cativantes a descrição analítica proposta por André Singer do processo de adaptação do PT ao seu "condottiero". Um ótimo exemplo - mesmo que tardio, além de tropical - de como organizações políticas de anticapitalismo congênito evoluem com desconcertante rapidez ao reformismo gradualista por evitarem confrontos para conseguir governar. Reformismo que só pode ser tachado de "conservador," como faz o subtítulo do livro, na acepção mais tosca desse termo, a de não revolucionário.
Claro, debates infindáveis decorreriam de frágeis analogias históricas, de canhestras avaliações da era FHC, e até de alguns recursos a uma retórica só descodificável por leitores com séria formação marxista. Nada disso diminui, contudo, a extrema utilidade desse livro para exercícios especulativos sobre os desdobramentos do processo civilizador nestas paragens.
Tudo indica que a agenda lulista permanecerá imprescindível para muitos dos próximos governos, sejam quais forem as oscilações eleitorais. Pois, mesmo que melhore muito a qualidade do crescimento econômico, a efetiva miséria só se tornará comparável à de país desenvolvido lá por 2030, na melhor das hipóteses. Podendo se prolongar ao menos até 2060, caso sejam abalados os fundamentos materiais do lulismo, com destaque para o predatório desempenho do bloco agromineral exportador no aproveitamento das vantagens comparativas oferecidas pela abundância de recursos naturais.
O mais provável, portanto, é que o pós-lulismo - seja lá o que vier a ser - dificilmente surja antes de meados do século, a menos que seja antecipado por circunstâncias excepcionais.
Tais estimativas são necessárias para enfatizar que o ordeiro combate à miséria deverá se manter como importante componente programático de uns dez futuros governos. Isto é, que o sentido fundamental das políticas públicas revigoradas a partir de setembro de 2003 continuará a ser, em caso de alternâncias, dimensão programática básica de quaisquer outras coalizões governamentais.
A grande incógnita se refere ao eixo de uma agenda pós-miséria, a ser adotada quando começarem a surgir os sinais de seu arrefecimento. Talvez um foco explícito no combate às desigualdades, bem mais difícil de ser executado com dribles em setores economicamente dominantes, a começar pelos que estão fazendo a América nos mercados imobiliários (talvez até mais nos rurais que nos urbanos). Poderosos interesses patrimoniais serão ferozes obstáculos para que continuem a ser significativamente reduzidas desigualdades de renda, de acesso, e de oportunidades. Isto é, para que em algumas décadas os níveis de desigualdade do Brasil se aproximem dos de países como o Canadá, por exemplo.
O pior é que, além dessas resistências do patrimonialismo tupiniquim, tudo dependerá demais de fatores que nem podem ser domesticamente controlados. Mesmo na hipótese de que uma guerra nuclear continue a ser evitada, serão inviabilizados até os melhores projetos anti-miséria, quanto mais planos para a redução das desigualdades, caso não venha a ser organizada ainda nesta década uma efetiva governança multilateral do desenvolvimento sustentável.
É isso que escancara a crucial importância da política externa para a viabilização dos interesses nacionais. Se o Brasil persistir em alianças com potências das mais reticentes ao engajamento em favor da sustentabilidade (isto é: descarbonização, conservação da biodiversidade e recuperação do ciclo do nitrogênio), com certeza estará contribuindo para cavar sua própria cova, pois nada será mais sério contra uma plena realização do lulismo, do que a desordem global decorrente de um predomínio do negacionismo ecológico.
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