27 setembro, 2014

Brasil: a rua e as presidentas, por Manuel Castells

tradução de Denise Queiroz

O que está em jogo é um modelo de desenvolvimento que serve mais ao 
Estado que à economia, e um tipo de política para benefício dos políticos

O amplo movimento de protestos que balançou a sociedade brasileira de junho a setembro de 2013 parece ter se diluído com o passar do tempo, ao ter enfrentado o repúdio dos políticos, a brutal repressão da polícia militar e a manipulação da extrema-direita. A tentativa de boicote à copa do mundo foi um fracasso. Muitas reivindicações locais foram satisfeitas como resultado deles. E a presidenta Dilma Rousseff do PT prometeu mais investimentos públicos em educação e saúde. O efeito político do movimento pode ter sido fundamental: a presidenta declarou “ouvir a voz das ruas”, legitimou suas reivindicações e assumiu as críticas à corrupção política e à partidocracia. Propôs uma assembléia constituinte para uma nova constituição que controle o poder dos partidos. Mas a classe política se opôs. Apesar do apoio de Lula, inclusive o PT manobrou com o PMDB para bloquear qualquer reforma no Congresso. Com a copa e as eleições à vista, Rousseff deixou o tema de lado, ainda que recentemente, diante de suas dificuldades eleitorais, tenha ressuscitado a ideia de reforma política.

Acontece que, o que parecia uma eleição fácil se tornou incerta pelo surgimento da única líder política que apoiou o movimento e foi respeitada por ele. Marina Silva declarou em setembro de 2013 que os protestos constituíam “um movimento de beleza e majestade com o potencial de mudar o país”. E há dez dias insistiu: “não são os partidos ou líderes políticos que vão trazer a mudança. É o movimento que nos muda”. De fato, as pesquisas comprovam que sua popularidade atual está ligada ao apoio de quem concordava com o movimento e suas críticas à política tradicional. A personalidade e a biografia de Marina Silva (a quem conheci em Berkeley), junto à sua valentia em defensa de suas convicções, fascinaram o Brasil e o mundo, e poderão transformá-la na presidenta do Brasil em 26 de outubro. As pesquisas dão agora um empate com Rousseff. 
O simbolismo não poderia ser maior. Mulher, negra, nascida no estado amazônico do Acre, numa família de trabalhadores em um seringal, vivendo na extrema pobreza e gravemente doente em toda sua infância, ficou órfã aos 15 anos. Foi acolhida por irmãs católicas num convento onde aprendeu a ler e escrever e aos 16 anos trabalhou como empregada, mas estudou à noite e conseguiu o diploma de Historia. Ao lado de Chico Mendes organizou o sindicato dos trabalhadores da floresta, exemplo mundial de defesa simultânea dos direitos dos trabalhadores e do desenvolvimento sustentável. Chico Mendes foi assassinado por grileiros, mas seu legado levou à políticas de proteção da Amazônia, em cuja defesa o trabalho de Marina Silva como ministra do Meio Ambiente se destacou, no primeiro governo de Lula da Silva, em 2003.

Logo Marina Silva descobriu a dificuldade de enfrentar não somente o agronegócio, senão a ideologia desenvolvimentista da esquerda brasileira, de colocar o crescimento econômico a qualquer custo e por cima da conservação do meio ambiente e da qualidade de vida. Foi precisamente Dilma Rousseff, como ministra das Minas e Energia a que deu prioridade às políticas energéticas da Petrobrás, a gigante petroleira, sobre qualquer outra consideração. Desenvolvimento energético e produtivo para gerar recursos que permitiriam remediar a pobreza. Silva, vindo de onde veio, fez parte da luta contra a pobreza apoiando o programa bolsa família de Lula/Rousseff, que tirou 40 milhões dessa condição. Mas propôs conciliar valores diversos frente ao produtivismo unidimensional do Estado desenvolvimentista. Por isso, o que se enfrenta nesta eleição não são duas pessoas que se opõem, mas duas concepções de desenvolvimento.  

A defesa da sustentabilidade levou Silva a abandonar o governo e criar uma Rede de Sustentabilidade, com a qual obteve 19% dos votos, como candidata verde, nas eleições presidenciais de 2010. Em 2014 não pode superar entraves legais para registrar sua candidatura e se incorporou, como vice-presidenta, na candidatura do pequeno Partido Socialista Brasileiro, liderado por Eduardo Campos. Em 13 de agosto Campos morreu num acidente de avião. Silva o substituiu como candidata presidencial e rapidamente apareceu à frente nas pesquisas para segundo turno.

A campanha de Marina Silva reflete sua complexa biografia. Sua oposição ao estatismo do PT e à corrupção dos partidos, que sangra empresas públicas como a Petrobrás (obrigada a comissões de 3% dos contratos) a leva a propor a independência do Banco Central e uma economia menos condicionada pela política. Com isso conseguiu o apoio de instituições financeiras como o banco Santander. Ainda assim, Dilma recebeu cinco vezes mais em doações do que Marina. As convicções cristãs pentecostais de Silva lhe aportam o apoio dos evangélicos que são mais ou menos 22% da população. Coerente com sua fé, se opõe ao aborto  e ao matrimônio gay, mas defende a união civil, o que gera críticas. A campanha do PT contra ela está sendo feroz, mentindo sobre suas posições em várias questões de impacto social, segundo consegui me informar. 
Ocorre que o que esta em jogo é um modelo de desenvolvimento que serve ao Estado mais que à economia, e um tipo de política para benefício dos políticos, de esquerda ou direita. Demasiados interesses criados. Diante dessa máquina uma mulher que nunca renunciou aos seus princípios e que se conecta com um Brasil jovem que disse não nas ruas e agora tem a oportunidade nas urnas. Marina Silva é a esperança de um novo Brasil capaz de abrir vias inovadoras de vida e política, para além de ideologias obsoletas.  


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