Por Katarina Peixoto (publicado originalmente no Carta Maior, dica do @BohnGass)
Entre a presença de Dilma Rousseff na abertura da
66ª Assembleia Geral da ONU e a ausência de Barack Obama, explícita no discurso
do presidente dos EUA, abriu-se um flanco. Faltou Obama no discurso de um
presidente enfraquecido e na defensiva, refém de interlocutores ausentes (Bin
Laden e o Hamas). E Dilma Rousseff esteve lá, inteira, com a sua história, os
seus compromissos e uma agenda clara. Ela não tem, perante o mundo, do que se
envergonhar. E o presidente dos EUA tem tanto do que se envergonhar que se
envergonhou, nas palavras, na cabeça baixa, na postura de quem fala no que não
acredita e defende a posição dos seus adversários. Nesta vergonha de Obama está
a vitória palestina. Na ausência explícita do primeiro presidente negro,
advogado ativista dos direitos civis, eleito, entre outras coisas, para recuperar
a moral mundial, Obama compareceu como vergonha. Mas é preciso que se diga, de
novo: na postura evasiva e derrotada do homem mais poderoso do mundo está a
vitória palestina.
É verdade que, de um ponto de vista realista, o movimento da OLP tem pela frente
muitas fronteiras a serem desfeitas, refeitas e estabelecidas. Dentre os árabes
e palestinos há pelo menos os seguintes problemas, na proposta capitaneada por
Abbas: o aparente escanteio dos refugiados palestinos, o pouco ou nenhum debate
relativo a compensações dos direitos destes; há também questões em aberto sobre
o estatuto jurídico e a competência da OLP em se converter ela mesma em Estado,
há o Hamas, que já se retirou da proposta, porque o movimento da OLP não
comporta uma recusa da existência do estado de Israel e há também a histórica
hipocrisia de muitos dos países árabes, frente ao povo palestino, que costuma
deixa-los à própria sorte (não é demais lembrar que Assad mandou bombardear um
campo de refugiados palestinos, na Síria, há menos de um mês). Na relação com
Israel e os israelenses, o problema é antes de tudo de fronteiras e tudo indica
que este confronto, com o reconhecimento do estado palestino, na Assembleia
Geral da ONU, ganhará um estatuto político mais claro na comunidade internacional.
Dilma lembrou algo importante, que serve de pista para entender a enrascada
israelense perante a comunidade internacional, daqui para a frente: “O mundo
sofre hoje as dolorosas consequências das intervenções, possibilitando a
infiltração do terrorismo, onde ele não existia. Muito se fala da
responsabilidade de proteger, pouco se fala da responsabilidade ao proteger”.
Esta afirmação traduz com muita propriedade também a relação dos EUA com
sucessivos governos israelenses, mesmo quando estes seguem violando o direito
internacional. À parte a percepção de que Obama sabe bem da responsabilidade
que seu país tem pela consequências sobre os palestinos de suas decisões e
omissões, o que de fato sobressai é que o governo israelense foi exposto
formalmente hoje como adversário de uma vontade reconhecida da comunidade
internacional. Isso significa, entre outras coisas, que as violações pesarão
mais, que construir assentamentos se tornará mais caro politicamente, que a
defesa da retomada do processo de paz não ficará mais tão facilmente refém do
ardil da “falta de interlocutores” ou da não negociação com terroristas.
Os passos dados pela OLP foram desde o começo de natureza diplomática,
política, voltada à negociação. Por mais que o Hamas tenha fustigado, apesar
das diatribes verbais do presidente do Irã, com a iminência de um atrito maior
entre Egito e Israel, que poderia vir a fortalecer o Hamas, pois bem, apesar de
tudo isso, Abbas seguiu obstinado a via da negociação com a comunidade
internacional.
E Israel, agora, não pode mais dizer que não tem interlocutor na região, porque
todos querem destruí-lo e não o reconhecem. Este passo foi dado, já, inclusive
por Israel. O país é uma realidade e, fora da retórica oportunista do Hamas e
do Hezbollah, ninguém questiona a legitimidade e o direito de Israel a existir,
como país soberano e autodeterminado e membro da comunidade internacional. É
nota característica da vitória palestina hoje a exposição de que o Hamas e o
Hezbollah só são interlocutores da intolerância, da falta de respeito e do
desprezo ao direito, ao estado de direito e ao direito internacional. Numa
palavra, a exposição de que o interlocutor do Hamas é Avigdor Lieberman.
Resta saber se Israel pretende ser reconhecido se não reconhece. Se pretende
prosseguir na mais longa ocupação militar moderna ou se está disposto a ser um
estado respeitável na comunidade internacional. Hoje, estas considerações se
tornaram muito mais acessíveis ao imaginário e à percepção das pessoas, frente
ao movimento palestino, à celebração nas ruas da Palestina. E ao acontecimento
a um só tempo luminoso e vergonhoso, na Assembleia da ONU.
Obama disse e repetiu o truísmo de que a paz é uma coisa difícil. Disse a
verdade para iludir e, de tanto saber o que estava fazendo, envergonhou-se
antes de dizer não aos palestinos. O presidente dos EUA entrou em campanha pela
reeleição e parece cada vez mais cativo dos seus adversários, inclusive dos
adversários internos, do seu partido. Em 19 de maio deste ano, falou em defesa
das fronteiras de 67 e hoje balbuciou como um boneco de ventríloquo. Quem é o
ventríloquo de Obama, pouco importa, agora. Dizer que é Avigdor Lieberman, ou
Netanyahu é mentir. O ventríloquo de Obama é o medo e a derrota. Essas coisas
que tornaram a sua presença hoje na ONU uma retumbante ausência e uma vergonha.
A paz assim não é difícil, mas impossível.
A possibilidade de paz existe, é difícil mesmo, tornou-se mais complexa e
talvez mais produtiva exatamente porque avança para o campo do direito,
invertendo a prática da região. Na direção oposta à prevalência do fato
consumado da construção e do muro de anexação dos territórios palestinos, o
movimento da OLP, que teve seu ponto alto ou o fim de seu primeiro ato hoje, na
Assembleia Geral, visa a estabelecer as condições de possibilidade de um estado
palestino de fato. É verdade que o fundamento do estado, em boa teoria, é uma
regra de reconhecimento que institui o fundamento último do direito. Também é
verdade que o Estado não é uma obra de arte, mas um produto histórico. É
verdade que os cínicos fizeram e seguem fazendo pouco caso dos palestinos, como
se dizendo que os palestinos e Abbas estão desejando e imaginando que amanhã a
ocupação tenha cessado (sim, todo cínico é um ingênuo arrogante).
Um ex-embaixador israelense disse que essa questão do reconhecimento do estado
palestino virou uma coletiva de imprensa, quando deveria ser tratada de maneira
discreta, em segredo. Talvez ele defenda isso para que as coisas continuassem
como eram, com os israelenses fingindo que negociavam e bancando a expansão
ilegal. Talvez seja só desdém, mesmo. Só que hoje, isso finalmente pouco
importa: os palestinos derrotaram os EUA. E daqui para a frente, apesar dos
pesares, do quão difícil venha a ser a paz, isso além de ser verdadeiro, permanecerá
verdadeiro. Hoje, as desculpas cínicas entoadas por diplomatas entre meia dúzia
de representantes no Conselho de Segurança foram substituídas por uma fala
pública, envergonhada e embaraçosa do homem mais poderoso do mundo, perante os
palestinos.
Poucas, muito poucas vezes na história a verdade irrompe a conjuntura para ser
enunciada como aquilo que é: a norma de si mesma. Hoje foi um dia assim, e por
isso Obama sentiu vergonha, por isso Dilma brilhou. E por isso os palestinos
venceram.
Katarina Peixoto é doutoranda em
Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail:
katarinapeixoto@hotmail.com