27 abril, 2013

Reforma agrária, urgente, necessária e esquecida


Foto João Roberto Ripper
Editorial do Brasil de Fato

O governo Dilma está em dívida com os trabalhadores rurais sem terra. Seu desempenho nesta área é tão pífio que corre o risco de entrar para a história como o pior governo para a reforma agrária desde a redemocratização do país. Os movimentos sociais seguem fazendo sua parte, com pressão. Na última semana houve a jornada nacional de luta pela reforma agrária, em que o MST e outros movimentos da Via Campesina se mobilizaram em 18 estados. Em Brasília, mais de 500 trabalhadores estão acampados desde 8 de março, fazendo vigílias e pressões.

Os sem terra interromperam o trânsito em mais de 60 rodovias em todo país, para pedir justiça pela impunidade dos fazendeiros, nas centenas de casos de assassinatos de trabalhadores ainda impunes. Da parte dos povos indígenas, aproveitaram também a semana para protestar. Mais de 700 integrantes de diversas etnias ocuparam o plenário da Câmara dos Deputados e depois o Ministério da Justiça.

Mas nada disso parece sensibilizar as autoridades federais, em especial o segundo escalão responsável pelas medidas concretas para resolver os problemas sociais que se multiplicam pelo interior do país. Parece repetir- se a máxima de que “os muros dos palácios são tão altos, que deixam os governantes surdos e cegos” para o povo. Os problemas relacionados com a ausência de uma política séria e verdadeira de reforma agrária só se acumulam.

Nesses dois anos de governo Dilma, tivemos o menor número de desapropriações de toda história recente. Há no poder Judiciário 581 processos de desapropriações parados, alguns com os recursos depositados pelo Incra. E nenhuma instância do governo se mexe para pressionar o Judiciário a ser mais célere, já que é um programa social cumprindo o que determina a Constituição. Nas beiras das estradas do país se amontoam mais de 120 mil famílias de sem terras acampados, ligados a diversos movimentos sociais, como da Contag, MST, MLST, sindicatos de trabalhadores rurais e CUT.

Com frequência ouvem-se desculpas na imprensa que seria muito caro desapropriar terras, em temos do agronegócio e da valorização da renda da terra. É a surrada desculpa das elites, sempre que se trata de programas sociais. Da elevação das taxas de juros, dos bilhões pagos em juros para os bancos, das obras públicas desperdiçadas, dos bilhões repassados ao agronegócio, ninguém reclama! Na imprensa, ouvem-se vozes governamentais dizerem que agora a prioridade é a qualidade dos assentamentos e depois resolveriam dos sem terra. Outro disparate. Seria como dizer aos sem-tetos da cidade, que primeiro vamos reformar as casas de quem tem, para depois construir novas. Uma coisa não exclui a outra, ao contrário, são complementares.

Mas mesmo assim, se o argumento fosse válido, qual é a situação dos assentamentos no Brasil? Os dados do Incra são reveladores, da inoperância do governo. Há 180 mil famílias de sem-terra que já foram assentadas e ainda não têm casa. Depois de dois anos, o governo baixou portaria incluindo os assentados no programa Minha Casa, Minha Vida, mas agora falta outra portaria para regulamentar a primeira. E nenhuma casa foi construída ainda pelo programa. Os assentados não têm acesso a crédito. O MST sempre alertou que o Pronaf era apenas um crédito para o pequeno agricultor já estabilizado e integrado ao mercado.

Hoje, das 800 mil famílias assentadas, cerca de apenas 50 mil têm acesso ao Pronaf, e ainda ficam endividadas. Portanto, é urgente implementar uma nova forma de apoio ao crédito às famílias assentadas.

O Programa de compra antecipada de alimentos da Conab é excelente. Talvez uma das melhores heranças do governo Lula para a agricultura familiar. Porém, menos de 30 mil famílias assentadas têm tido acesso. Da mesma forma o programa que obriga cada prefeitura comprar no mínimo 30% dos alimentos da merenda escola de agricultores familiares. Os assentados têm muito pouco acesso a esse programa, tal a burocracia de editais, concorrências, e má vontade da maioria dos prefeitos, que preferem seguir com suas negociatas com as grandes empresas fornecedoras pelo atacado, das bolachas, leite em pó e outras enrolações.

O tema da educação no campo também está pendente. Os movimentos do campo denunciaram que nos últimos 15 anos, desde FHC até o governo Dilma foram fechadas mais de 20 mil escolas fundamentais no campo. Em troca o MEC financia vans para os prefeitos trazerem as crianças do campo para estudarem na cidade. Todos os dias se obrigam a fazer 20, 30 até 100 quilômetros de distância. Uma tragédia.

Os movimentos insistem. É preciso retomar a necessidade de que as escolas estejam nas comunidades rurais, próximo das moradias dos trabalhadores. E inclusive organizar escolas de ensino médio, onde o transporte dos alunos seja entre as comunidades rurais, sem levar para a cidade. E ampliar as vagas e cotas para filhos de camponeses acessarem o ensino superior, pelo Programa Nacional de Ensino da Reforma Agrária (Pronera), que adota o sistema de cursos especiais, em alternância para filhos de camponeses, e assim evita a migração para a cidade, mesmo durante o curso superior.

A situação é grave. E o governo se faz de desentendido, se iludindo com a falsa propaganda do sucesso do agronegócio. O agronegócio é o modelo do capital, dá lucro para alguns fazendeiros e para as empresas transnacionais, mas não resolve os problemas dos pobres do campo; ao contrário, os amplia.

Classe média

dica @cmarinsdasilva 

Dias de Abril: o piloto sumiu?

por Saul Leblon
do Carta Maior




Há três semanas, o conservadorismo comanda as expectativas do país. 

O carnaval do tomate e a furor rentista marcaram a segunda quinzena de abril. 

Deu certo. 

No dia 17, o BC elevou os juros.

Ato contínuo, vários indicadores desautorizaram as premissas da terapia ortodoxa. 

Os preços dos alimentos – não o único, mas um fator sazonal importante na pressão inflacionária – perderam fôlego. O do tomate desabou. 

Não apenas isso. 

O cenário internacional desandou.

Recordes de desemprego na Europa vieram se somar à deflação das commodities, ademais da decepção com a velocidade da retomada nos EUA. 

Tudo a desaconselhar o arrocho pró-cíclico evocado pelos especialistas em incursões aos abismos e às bancarrotas. 

Há cinco anos eles advertem que a resistência do Brasil à crise é um crime contra o mercado. (Leia também: ‘O Brasil é um crime contra o mercado’)

Nenhuma voz do governo ou do PT soube salgar o diagnóstico conservador com a salmoura pedagógica das evidências opostas.

Dilma poderia ter ido à TV. É sua responsabilidade esclarecer a opinião pública quando o futuro do país esta sendo ostensivamente jogado na sarjeta das manipulações.

Não significa mistificar os problemas de uma transição macroeconômica difícil rumo a um novo ciclo de investimento. 

Mas, sim, separa-los de interesses que não são os da nação. 

Disputar as expectativas, em certos momentos, é tão decisivo quanto ajustar as linhas de passagem entre um ciclo e outro. 

Se Lula ficasse mudo em 2008, o jogral pró-cíclico faria do Brasil um imenso Portugal . 

O quadro hoje é outro?

Sempre é outro. 

É para isso que existe governo. Se a história fosse estável e previsível , bastariam burocracias administrativas. 

Veio a terceira quinzena de abril. 

Enquanto o PT se preocupa com Eduardo Campos, o verdadeiro partido oposicionista alimentava um clima de dissolução institucional. 

É só aquecimento: o lacerdismo togado e seu diretório midiático podem muito mais. 

A pauta da ‘caça ao Lula’ voltou às manchetes.

Grunhida pela boca do casal Gurgel e esposa, sub-procuradora Claudia Sampaio. 

Estamos em linha com a nova tradição latino-americana.

A implosão institucional de governos progressistas tem no lacerdismo togado um laboratório de ponta no país.

São sucessivas as contribuições ao modelo.

Na desta semana, o STF desautorizou o Congresso a analisar a PEC sobre novos partidos, subtraindo o espaço do Legislativo na divisão dos poderes. 

A ideia de um Judiciário que diga ao Congresso o que ele pode e o que ele não pode discutir e votar é estranha à democracia. 

Mas não ao método conservador, que pauta um Brasil cada vez mais explícito, à direita, em seus duetos e sintonias .

Há certeza de uma impunidade consagrada no poder de difusão conservador.

Ela explica a desenvoltura de personagens que se dispensam do recato e da liturgia observada nos velhos conspiradores. 

Joaquim Barbosa se manifesta como uma extensão de Merval Pereira. 

E vice-versa. 

Gurgel acossa Lula e agasalha o líder de Carlinhos Cachoeira no Congresso, Demóstenes Torres, com uma aposentadoria de R$ 22 mil. 

E ninguém dá gargalhadas. 

Como diz o senador Requião, falta humor à crítica política. 

Falta também capacidade de se escandalizar.

Um delegado ex-integrante do aparato da ditadura diz que Otávio Frias e Sergio Fleury eram parceiros de teoria e prática. 

Tomavam chá das cinco no DOPS. 

Dá para acreditar? 

Dá para ter certeza de que as veladas ligações entre o dispositivo midiático e a ditadura precisam ser investigadas. Por uma comissão de verdade.

Quem se dispõe? 

Silêncio constrangedor.

O ministro Mercadante defende a Folha e o ‘seu’ Frias – como ele se refere ao falecido pai de Otavinho, em nota tocante.

Toffoli, ministro do Supremo, dá ultimato à Câmara: os representantes do povo tem 72 horas para explicar o que estão pretendendo com a PEC-33 que determina que algumas decisões do STF sejam submetidas ao Congresso e eleva de seis para noves votos o quórum do Supremo ao invalidar emendas constitucionais do Legislativo. 

Paulo Bernardo alia-se ao oligopólio da mídia . 

A Secom sustenta a Globo. 

E o sub do sub do Banco Central vai discursar no Banco Itaú, espécie de diretório informal do PSDB. Prega o choque de juros.

O piloto sumiu.

Esse filme não é novo.

E nunca acaba bem.

26 abril, 2013

STF x Congresso: uma disputa imatura

Imagem do jornal O Expresso 


por Pedro Estevam Serrano

da Carta Capital

A separação de Poderes em nossa Constituição é clausula pétrea. Não existe emenda constitucional tendente a aboli-la.

A expressão “tendente a abolir” significa não apenas que é inconstitucional a emenda que pretenda a extinção da separação como também a que altere o modelo especifico de separação adotado pela Constituição de 1988.

Diversos são os modelos de separação de Poderes existentes no mundo. Há os que dão preponderância ao Legislativo, como no caso dos parlamentarismos; em outros, o Executivo – ou mesmo o Judiciário e as Cortes Constitucionais – tem preponderância. Nossa Constituição não adotou nenhum deles. Promoveu um mix pelo qual, dentre outras características, cabe ao Legislativo a inovação primária da ordem jurídica criando originariamente direitos e obrigações por meio da lei e ao STF o controle de constitucionalidade das leis e emendas constitucionais com definitividade no sistema.

Nossa Constituição, no inciso III do paragrafo 4º do seu artigo 60 tornou intangível e imutável tal modelo. Só pode mudar por uma nova Constituinte.

Nos meios de comunicação, durante a semana, tivemos a oportunidade de constatar uma “queda de braço” entre Legislativo e Judiciário. A meu ver, nenhum lado tem razão integral.

De um lado, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara aprovou a chamada PEC 33. O texto pretende submeter à aprovação do Congresso as decisões do STF pela inconstitucionalidade de leis e emendas. Óbvia inconstitucionalidade, ofensiva ao modelo de separação de poderes, e destruidora da principal competência do STF no sistema: interpretar com definitividade a Constituição.

Ao submeter a decisão do Supremo ao crivo do Congresso, a PEC 33 retira da Corte a definitividade de suas interpretações constitucionais no controle de constitucionalidade, a sua principal função e poder como Corte Constitucional. Isso implicaria em seu inconstitucional esvaziamento.

De outro lado, nos mesmos jornais – algumas páginas à frente – vimos notícias da nova decisão liminar do STF, emitida com base em decisões recentes daquela Corte, impedindo a tramitação de projeto legislativo tendo por fundamento a inconstitucionalidade no seu mérito.

Realiza-se aí uma espécie de controle judicial preventivo de constitucionalidade. Isso, a nosso ver, não tem sentido em nosso sistema.

Nossa Constituição autoriza o controle abstrato de constitucionalidade apenas pela via adequada, qual seja a da Ação Direta proposta pelo procurador-geral da Republica ou outro legitimado específico, não por mandado de segurança individual, bem como só em relação a leis e emendas já aprovadas e promulgadas e não quanto a meros projetos e proposituras apresentadas no âmbito interno do Legislativo.

Promover medidas de impedimento de tramitação de projetos legislativos por conta de seu mérito constitucional, e não por aspectos formais da própria tramitação, em essência, é impedir o livre exercício da função parlamentar, que se realiza através da apresentação e debates de tais projetos.

Ao agir assim o STF, a título de defender a Constituição, invade a competência do Parlamento, fere a liberdade parlamentar e – o que me parece mais relevante – restringe indevidamente a soberania popular.

Ambos os Poderes, portanto, ferem com tais medidas a separação de Poderes ao intervir na esfera de competência alheia procurando drenar em proveito próprio a esfera legítima de poder do outro.

É, portanto, benvinda a decisão do presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), de suspender a tramitação da PEC 33. O momento exige equilíbrio e espirito público dos mandatários e togados envolvidos. Ambos os Poderes devem promover medidas de contenção interna para evitar uma crise que tem apresentado pouca maturidade democrática

Na queda de braço entre Legislativo e STF, saem feridas a nossa Constituição, a democracia e nossa cidadania.

25 abril, 2013

O Verniz

Capa do jornal “Salzburger Nachrichten“, anuncia série de matérias “Apocalipse Jamais"



Luis Fernando Veríssimo 
do Estadão


A dúvida sobre tratar o acusado pelas bombas em Boston como cidadão americano, com todos os seus direitos respeitados, ou como "combatente inimigo" julgado por um tribunal militar, com direitos restritos e, se condenado, execução garantida, e a proposta de se baixar a idade para a responsabilização penal no Brasil são questões parecidas. Nos dois casos, o que se propõe é um retrocesso, a suspensão de conquistas da civilização para enfrentar exigências extremas: no caso americano o combate exemplar ao terrorismo, que não comportaria filigranas jurídicas, no nosso caso a evidência de que cada vez mais crimes são cometidos por menores, inimputáveis segundo a legislação. A conclusão nos dois casos é que o processo civilizatório que priorizou a proteção dos direitos de todos, inclusive de criminosos, foi uma conquista da retórica dos bons sentimentos, impraticável diante da crua realidade. Os casos extremos testam a possibilidade de a razão e de a ponderação conviverem com o embrutecimento geral da espécie, e para enfrentá-los retrocedemos ao tempo em que não havia proteção alguma contra a prepotência do Estado ou o erro da justiça. Quando não retrocedemos ao tempo da reciprocidade bíblica, do olho por olho, de uma atrocidade vingando outra. E o verniz da civilização se despedaça.

Nos Estados Unidos, pelo menos em teoria (ou no cinema), todo preso tem direito de saber seus direitos na hora da prisão: de manter-se em silêncio, de não se incriminar e de ter um advogado. Principalmente depois dos atentados de 11/9, quando o Bush declarou guerra ao terrorismo mundial, os Estados Unidos têm enfrentado o dilema de serem - na sua própria avaliação - a única nação moral do mundo, obrigada a recorrer a todos os meios para se defender do terror, inclusive a oficialização mal disfarçada da tortura. Os presos sem direitos em Guantánamo são um embaraço permanente para os americanos e tornam hipócrita a condenação dos presos políticos em Cuba. O que fazer para satisfazer a revolta nacional com o ataque covarde em Boston é outro desafio moral para a justiça americana. Parece que escolheram processar o prisioneiro como cidadão do país. Ponto para a civilização, ou o que resta dela.

No Brasil a questão da maioridade penal ainda está para ser decidida. Talvez o verniz ainda resista mais um pouco.

A trampa Boston-Chechênia do FBI

Imagem via Facebook 

do Brasil de Fato
A imprensa independente não se intimidou. Encontram-se fotos, em Natural News, um achado, um perfeito tesouro de fotos e mais fotos que mostram empregados da Craft no local da Maratona, em uniforme completo de combate, mochilas pretas, equipamento tático, portando até detector de radiação. As fotos, portanto, existem. E como reagiu o FBI? Impôs total blecaute. Censura total de imagens, coisa do tipo “nenhuma outra imagem será confirmada” – só imagens que mostrem os irmãos Tsarnaev. A empresa Craft é intocável. 

por Pepe Escobar
Asia Times Online (Tradução: Vila Vudu)
 
As bombas em Boston foram tiro pela culatra. Disso já não há qualquer dúvida. O que ainda não se sabe é que nível de tiro saiu-lhes pela culatra.

Pode ter sido operação clandestina que deu saiu totalmente errada. Pode ter sido tiro que saiu pela culatra de ex “combatentes da liberdade” – nesse caso chechenos étnicos – reconvertidos em terra-rists [como Bush pronunciava a palavra terrorists (NTs)]. Pode ter sido tiro saído diretamente pela culatra da política externa dos EUA contra muçulmanos, que só existe para mandá-los para Guantanamo, Abu Ghraib ou Bagram, entregá-los “extraordinariamente” (mas frequentemente) para serem torturados em solo estrangeiro ou para assassiná-los ‘legalmente’.

O FBI, como se poderia facilmente prever que faria, não admite nenhuma dessas opções. Mantém-se agarrado a um roteiro enroladíssimo, digno desse pessoal mais completamente movido à cocaína. Noites hollywodianas dos anos 1980s: uma dupla de bandidos que “odeiam nossas liberdades”, porque... odeiam.

Como já escrevi, numa espécie de preâmbulo ao que aqui se lê, há buracos de dimensões intergalácticas na história dos irmãos Tsarnaev.[1] Já se sabe – pela mãe dos dois rapazes[2] – que o FBI (Federal Bureau of Investigation) seguia o irmão mais velho, Tamerlan, há, no mínimo, cinco anos. Em entrevista posterior a Piers Morgan da CNN, a mãe falou, sim, claramente, sobre “orientações” que o filho recebera.

Simultaneamente, o FBI foi obrigado a admitir que, no início de 2011 aceitou o pedido de “um governo estrangeiro” (expressão-código para “Rússia”) para não perder de vista o mais velho dos irmãos, Tamerlan. Aparentemente foi o que fizeram – e nada encontraram que sugerisse atividade terrorista.

Assim sendo, o que aconteceu depois? Alguém no FBI, dos que têm QI superior a 50, devem ter percebido que, por causa do pedido dos russos, o FBI ‘descobrira’ um precioso ‘operativo’ checheno-americano. E Tamerlan tornou-se informante do FBI. Podia ser tocado como se toca rabeca, para produzir qualquer som – como tantos outros tolos antes dele.

Portanto, se não o afinaram corretamente, pode-se acusar o FBI, com todo o direito, de incompetência devastadora (e não seria a primeira vez). Porque o FBI está dizendo agora que jamais suspeitou de que seu ‘operativo’ estivesse construindo alguma bomba, que desejasse testá-la ou que andasse de bomba da mochila pelas calçadas da maratona de Boston.

O que o FBI jamais, em tempo algum, dirá é quando monitoraram/controlaram/chantagearam Tamerlan pela última vez. Não esqueçamos: trata-se do mesmo FBI que nos ofereceu aquele ‘plano’ tipo “Velozes e Furiosos”, mancomunado com um cartel mexicano para assassinar um embaixador saudita[3] – plano que foi desmascarado e exposto apenas em alguns dias.

Tamerlan, é claro, pode ter dado uma de FBI p’ra cima do FBI (embora, talvez, nem tanto) e, depois de anos de monitoramento/controle/chantagem, passou a trabalhar como agente duplo. Ao que se sabe, trocou os EUA pela Rússia por longo período – de janeiro a julho de 2012. Ninguém sabe o que fez nesse período; o FBI adoraria provar que participou de treinamento terrorista tático. Mas, se era de fato ‘operativo’ tão interessante, bem pode ter sido mandado infiltrar-se nos grupos de jihadis chechenos comandados por Doku Umarov no vizinho Daguestão.

Quanto às relações complexas, cheias de nuances, como são todas as relações muito íntimas, desde os anos 1990s, entre Washington e os terra-rists chechenos – absoluto tabu na imprensa-empresa dos EUA –, ninguém precisa ler mais que o interessantíssimo e surpreendente Sibel Edmonds [19/4/2013, “USA: The Creator & Sustainer of Chechen Terrorism” (EUA: Criador e mantenedor do terrorismo checheno)].[4]

Sobre o tal exercício 

O FBI tem poder suficiente para impor aos EUA e ao planeta qualquer roteiro fantasioso sobre “dois jovens chechenos do mal”. Consideremos então um cenário alternativo crível, para ver a que nos leva.

Em vez de dois sujeitos (estrangeiros) do mal, totalmente americanizados, que repentinamente são inoculados pelo vírus do ódio “contra nossas liberdades” mediante doutrinação jihadista feita principalmente online, vejamos quem realmente se beneficia com o que aconteceu em Boston.

O Boston Globe foi forçado a “fazer desaparecer” a informação sobre um exercício de contraterrorismo – que incluiria cães que farejam bombas – e que aconteceria durante a maratona. O FBI bem pode ter dito ao seu ‘operativo’ Tamerlan que ele participaria do exercício. Tamerlan podia ser sujeito durão, mas seria facilmente chantageado, se sua família fosse ameaçada no caso de ele não cooperar.

Então, entregaram a Tamerlan uma mochila preta com uma falsa bomba de panela-de-pressão e disseram-lhe que a pusesse num local determinado – como um dos procedimentos incluídos no exercício. Nesse ponto, todo o (nosso) cuidado é pouco: não há nenhuma prova conclusiva que autorize a confirmar que se tratasse de simples exercício. Não há como saber se a bomba era falsa ou se estava armada para explodir ou ser explodida.

Digamos que Tamerlan, homem durão, e seu irmão, o impressionável Dzhokhar, tenham sido realmente responsáveis (sem o FBI no quadro). Depois de tanto planejamento, com certeza haveria rota de fuga planejada – transporte, passaportes, dinheiro, bilhetes de avião. E nada disso havia. Dzhokhar foi à escola, treinou na academia, enviou mensagens por Twitter.

Não há absolutamente nenhuma testemunha que diga ter visto os irmãos depositarem as bombas. Eles puseram as bombas onde as puseram, porque essa foi a instrução que receberam do FBI. E dali em diante, já ninguém entende mais nada. Roubaram um Mercedes num posto de gasolina e deixaram partir o motorista – depois de dizerem a ele que eram responsáveis pelas bombas da Maratona. Dzhokhar e a Mercedes conseguem sair vivos de tiroteio cerrado, furando uma muralha de policiais – mas, no percurso, o Mercedes passa por cima do corpo de Tamerlan enrolado em explosivos. Dzhokhar deixa uma trilha de sangue. Mas nenhum cachorro seguiu a trilha.

E há o saborosíssimo exercício em cidade sob lei marcial: toda a cidade foi esvaziada e paralisada – o prejuízo gerado por essa operação é incalculável – por causa de um adolescente em fuga pela cidade. Atenção, EUA! A coisa está só começando!

O que é certo é que os irmãos Tsarnaev absolutamente não eram militantes jihadis; só os viciados nos veículos de esgoto de Murdoch algum dia engolirão a ideia de que fossem.

Basta passar os olhos por uma página de jihadistas autênticos, como o Kavkaz Center [http://en.wikipedia.org/wiki/Kavkaz_Center], muito bem estabelecidos e plenamente representativos do que se conhece como o Emirado Islâmico do Cáucaso, de insurgentes. Ali se fazem boas perguntas. E o Centro Caucasiano desmonta completamente a versão de que os irmãos seriam jihadistas empedernidos.

A [empresa] Craft, que tudo sabe 

Poucas empresas paramilitares e respectivas griffes no ocidente industrializado são mais sinistras que The Craft.[5] Craft foi responsável pelo exercício de guerra. O símbolo é uma caveira, parecida, até, com O Justiceiro, personagem Marvel. O motto chega a ser tímido, ante o que a empresa faz: “Não importa o que sua mãe diga: a violência resolve”. A imprensa-empresa nos EUA fez simplesmente sumir qualquer vestígio da multidão de empregados-agentes da Craft que estavam em todos os pontos, muitos deles, no local da Maratona. Pode-se falar em um blecaute, pelas empresas-imprensa.

Mas a imprensa independente não se intimidou. Encontram-se fotos, em Natural News,[6] um achado, um perfeito tesouro de fotos e mais fotos que mostram empregados da Craft no local da Maratona, em uniforme completo de combate, mochilas pretas, equipamento tático, portando até detector de radiação. As fotos, portanto, existem. E como reagiu o FBI? Impôs total blecaute. Censura total de imagens, coisa do tipo “nenhuma outra imagem será confirmada” – só imagens que mostrem os irmãos Tsarnaev. A empresa Craft é intocável.

O problema é que tudo que tenha a ver com a empresa Craft nesse cenário é problema. (1) A invisibilidade da Craft – toda a imprensa-empresa obedecendo como ovelhinhas ao que o FBI ordenou e apagando do noticiário todos os fatos. (2) A qualidade da expertise “de segurança” – um exército de mercenários ao qual se paga uma fortuna... e os tais hiper treinados ‘especialistas’ armados com o mais pesado armamento high-tech do planeta não conseguem capturar uma dupla de amadores?! E (3) a sinistra possibilidade de tudo tenha sido operação clandestina executada pela empresa Craft.

Se nos mantivermos fieis à realidade, deixando de lado as histórias em quadrinhos by Marvel, todas as evidências apontam para alguma coisa bem semelhante ao modus operandi da galáxia soturna de franquias da al-Qaeda. Consideradas as provas recolhidas da história e do comportamento dos irmãos – nenhuma atividade passada nem militar nem de sabotagem – elas também sugerem que não teriam experiência suficiente para planejar e executar tudo aquilo, sozinhos. Mas pode-se entender sem dificuldade uma operação copiada da al-Qaeda e atribuída a dois rapazes que não teriam como defender-se – algo que, pelo menos em teoria, a empresa Craft poderia facilmente planejar.

Por tudo isso, eis a que nos leva um cenário perfeitamente realista: falsa operação construída por FBI/Craft, a qual (1) pode ter dado terrivelmente errado, motivo pelo qual os autores tiveram de encontrar dois bodes expiatórios, no prazo de algumas horas; ou (2) a sinistra possibilidade de que tudo tenha sido planejado como joguinho de gato-e-rato para produzir exatamente o resultado que produziu – e levar à militarização, agora já quase total, de toda a vida civil nos EUA.

Vale o escrito (em sangue). Estão sumindo os últimos vestígios de Estado de Direito nos EUA – agora que um painel bipartidário de especialistas já descobriu que todos os funcionários em postos de comando do governo George W Bush estiveram, sem dúvida possível, implicados em torturas; e que a tortura foi prática sistemática, mesmo que jamais tenha conseguido impedir qualquer ato terrorista.

Washington está a um passo de ver-se incluída na lista cintilante de estados como o Egito na era Mubarak, Bahrain e Uganda. Como o coronelão-senador Lindsay Graham já declarou, “a pátria é o campo de batalha”. E você, leitor, é “combatente inimigo”. Se decidirmos que é.

[1] 20/4/2013, Russia Today, em http://rt.com/op-edge/boston-bombing-us-chechen-133/
[2] http://www.youtube.com/watch?v=wHfn3bJsg4I
[3]http://www.aljazeera.com/indepth/opinion/2011/10/201110121715573693.html
[4] http://www.boilingfrogspost.com/2013/04/19/usa-the-creator-sustainer-of-...
[5] http://thecraft.com/
[6]http://www.naturalnews.com/039977_The_Craft_Boston_marathon_private_mili...

24 abril, 2013

Haddad e MST constroem parceria

Lei, ignorada pela gestão anterior, exige que 30% da alimentação escolar venha de assentamentos; cooperativas do MST já abastecem escolas de 19 municípios no estado


Uma comissão do MST fez uma audiência com o prefeito de São Paulo Fernando Haddad, na manhã de sexta-feira (19/4), na sede da prefeitura. O MST apresentou a Haddad produtos produzidos por cooperativas organizadas em áreas da reforma agrária, que são a base da alimentação de alunos matriculados nas escolas em diversas prefeituras, por meio do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).

“A prefeitura de São Paulo tem colocado dificuldades para a compra alimentos da reforma agrária para a merenda escolar e para os programas sociais. A gestão anterior não tinha essa preocupação. No entanto, o prefeito Haddad acenou positivamente e ficou muito impressionado com a nossa capacidade de produção”, disse o dirigente do MST Delwek Mateus.

A Lei nº 11.947/2009 determina a utilização de, no mínimo, 30% dos recursos repassados pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) para alimentação escolar, na compra de produtos da agricultura familiar, priorizando os assentamentos de reforma agrária.

Apenas no estado de São Paulo, as cooperativas do MST já fornecem alimentos para a alimentação escolar para as prefeituras de São Bernardo, Guarulhos, Campinas, São Caetano do Sul, Suzano, Ribeirão Pires, Mairiporã, Praia Grande, São Vicente, Guarujá, Registro, Bauru, Ourinhos, Sertãozinho, Araras, Ibiúna, Pederneiras, Itapeva e Porto Feliz.

Os alimentos fornecidos são arroz orgânico e convencional, feijão, macarrão, leite de caixinha e em pó, achocolatado, suco de uva, iogurtes e queijo mussarela, entre outros. Em São Bernardo, o MST abastece 100% da demanda de arroz e feijão, garantindo a alimentação de todas as crianças e jovens do ensino municipal.

Em alguns municípios, as prefeituras tem sido coniventes com empresários da área de distribuição de alimentos, que atuavam como intermediários, criaram cooperativas de fachada para disputar as chamadas públicas, desrespeitando a lei.
O MST solicitou também a intervenção da prefeitura para garantir a permanência de 45 famílias que vivem desde 2002 no assentamento Irmã Alberta, localizado na região de Perus, na cidade de São Paulo. A área é de propriedade da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), que tem colocado obstáculos para a cessão da área.

João Pedro Stedile, da Coordenação Nacional do MST, apresentou ao prefeito as prioridades políticas do movimento para o próximo período, como o assentamento das famílias acampadas e o desenvolvimento dos assentamentos, as campanhas pela democratização da comunicação e pela reforma política e a luta contra os leilões do petróleo.

“O MST é um movimento democrático, que tenho todo o respeito e prazer em receber”, disse o prefeito no final da reunião, depois de colocar o boné do Movimento para tirar uma foto.

21 abril, 2013

O esboroamento das instituições políticas

Esboroamento 




por Mauro Santayana*
do Carta Maior

O regozijo explícito dos ingleses pela morte de Margaret Thatcher, as eleições venezuelanas e as bombas de Boston marcaram os últimos dias. São fatos aparentemente desconectados, mas que encontram suas raízes comuns no processo, ainda em marcha, de esboroamento das instituições políticas. Esse processo, que – nunca é demais lembrar – começou exatamente com a ascensão de Margaret Thatcher ao poder, em 1979, não se esgotou. Continua a desenvolver-se, embora com manifestações de resistência, aqui e ali, como ocorreu na Venezuela, com Chávez.

O desaparecimento do líder pode ter significado o indesejável fim de uma experiência que, com seus acertos e seus erros, significou uma esperança para os povos da América Latina e também da África. A vitória efetiva de Nicolas Maduro - não só por ter sido apertada, mas pelo fato de que escasseiam, no eleito, as grandes virtudes de liderança de Chávez - não assegura o desenvolvimento do grande projeto nacional, e, de certa forma, continental, assumido pelo povo venezuelano, ao entregar seu destino ao reabilitado sonho de Bolívar.

De qualquer forma, tampouco será fácil a plena retomada do poder, em Caracas, pelos interesses empresariais associados às multinacionais norte-americanas. Os venezuelanos pobres, que passaram a viver melhor no governo Chávez, não aceitarão, pacificamente, retornar à situação anterior.

A recontagem dos votos, segundo os observadores, não alterará o resultado, mas trará mais dificuldades ao governo e mais estímulo ao esforço desagregador da oposição chefiada por Capriles.

Como advertiram as vozes mais sensatas da Grã Bretanha, o tchatcherismo é ainda a ideologia que comanda o país e continua a fazer suas vítimas, lá e alhures. Na base das contra-reformas houve uma secreta reação do capitalismo liberal aos resultados da 2ª Guerra Mundial. As preocupações filosóficas de Hayek e Von Mises, expostas no livro de Hayek, “ The Road to Serfdom”, encontraram, no Clube de Bilderberg, seu comitê de ação. Há o encadeamento lógico entre os fatos. Na realidade, as duas guerras mundiais do século 20 podem ser vistas como episódios de uma Guerra Civil Mundial, Weltbürgerkrieg, como a definiu Carl Weizsäcker.

A vitória da razão humanística sobre o nazismo foi revertida, solertemente, pela reação dos homens mais ricos e mais influentes do mundo, que passaram a reunir-se a partir de 1954, sob a iniciativa de um príncipe corrupto, Bernard, da Holanda. A aliança entre Thatcher, Reagan e o papa João Paulo II, seguida da submissão abjeta de Gobartchev – tem provocado sofrimento a fome, a morte e desespero a centenas de milhões de seres humanos. É o novo liberalismo que assola a Europa e inúmeros paises dos outros continentes.

Um cartaz expressivo em seus termos fortes e chulos – The bitch is dead – revelou o ódio dos que perderam seus empregos, suas casas, seus benefícios sociais, dos parentes dos que morreram sem assistência médica, nos últimos trinta anos.

Os dirigentes políticos europeus, no entanto, permanecem fiéis à filosofia opressora de Thatcher que, teve a coragem de decretar que a sociedade não existe: só existem “indivíduos” e cabe a esses indivíduos resolver por si mesmos os seus problemas – seja de que forma for. Não é de se estranhar que a criminalidade tenha aumentado tanto: é a regra de nosso tempo. Os banqueiros individualistas roubam, os políticos individualistas se arranjam na extorsão, os comerciantes elevam seus preços, os policiais achacam – como nunca antes na história.

É o ultra-capitalismo triunfante. E como os donos do mundo não descansam, com a morte de Thatcher, eles colocam todo o seu cacife em Frau Merkel, que já assume a presunção de conduzir a Europa. Ângela Merkel acredita que o que Hitler não obteve com as divisões blindadas, ela conseguirá com o marco e os grandes bancos que, com Mario Draghi, comandam o BCE: a hegemonia continental.

No caso das bombas de Boston começam a surgir dúvidas sobre a rapidez da identificação e da localização dos suspeitos, não obstante um deles ter passado as horas seguintes sem mudar seus hábitos. De um deles nada mais a apurar, posto que o mataram.

Do outro, o jovem Dzhokhar Tsaernev, que não foi advertido de seu direito de ficar em silêncio, não se espera muito, ainda que venha a recuperar-se de seus ferimentos. Acaba de sair da adolescência, e é difícil que estivesse, há anos, sob vigilância do FBI, como se noticia.


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*Mauro Santayana é colunista político do Jornal do Brasil, diário de que foi correspondente na Europa (1968 a 1973). Foi redator-secretário da Ultima Hora (1959), e trabalhou nos principais jornais brasileiros, entre eles, a Folha de S. Paulo (1976-82), de que foi colunista político e correspondente na Península Ibérica e na África do Norte.

18 abril, 2013

O avanço solitário do pensamento conservador


Em excelente artigo, Roberto Amaral lista historicamente as mudanças estruturais necessárias e que, diante da falta de discussão e avanços, vão continuar como desafio das esquerdas para as próximas eleições. 
Super vale a leitura.  



Roberto Amaral*

do Brasil de Fato
Retomo à questão das reformas estruturais, esfinge a desafiar nossos governos de centro-esquerda (por que não as fazemos?) e desafio ideológico a provocar as esquerdas brasileiras. Quanto a estas, a evidência é que, afogadas pela necessidade de vitória eleitoral, terminamos renunciando ao debate, abrindo, assim, caminho para o avanço solitário do pensamento/ideário conservador.

O Brasil profundo, até 2012, vem votando na esquerda, ou mais precisamente em candidatos filiados a partidos programaticamente de esquerda, mas os ‘corações e mentes’ são conquistados pelo monopólio da direita impressa, com a demolição da política (de que depende a democracia) e da esperança, de que depende a esquerda. Um só dado: pesquisa em poder do TSE informa que 80% dos jovens brasileiros rejeitam a política, não crêem na política, muito menos nos partidos e nos políticos. A tragédia não diz respeito exclusivamente às esquerdas (embora sua responsabilidade seja dominante) mas a todos que defendem o processo democrático: tire-se da política a política, os partidos e os políticos, o que ficará de pé para dar sustentação à vida democrática?

Já vimos esse filme.

Para ganhar, a esquerda brasileira (e que dizer da francesa de hoje e seu lamentável Partido Socialista?) está convencida de que precisa ganhar setores à sua direita (o centro e a direita propriamente dita) e para ganhá-los torna-se bem comportada nas alianças eleitorais, no discurso, e no programa, o qual, mesmo tímido, é o primeiro a ser jogado de lado, pois no governo a abelha-rainha é a ‘governabilidade’. Para governar se impõem concessões, nas alianças que garantam tranquilidade parlamentar, nas composições políticas, necessárias, com o empresariado e o monopólio da informação (com quem precisa estabelecer um modus vivendi), os movimentos sociais e os sindicatos. Estes são levados à redução corporativa, ou seja, renunciam ao debate político – a vítima de sempre –, em benefício da estabilidade do governo que ajudaram a eleger e têm o dever histórico de sustentar.

Diz-se que essa tragédia política é filha natural do presidencialismo brasileiro, ao possibilitar eleições de quadros populares (Lula e Dilma) e ao, ao mesmo tempo, negar-lhes maioria parlamentar para governar e conservar-se no governo, cujo poder precisam partilhar com outras forças sem abrigo na soberania popular, a começar pelo famigerado ‘mercado’, com tudo o que lhe é implícito. A fragilidade parlamentar é contornada pela construção rentista (daí ‘presidencialismo de coalizão’) de maiorias heterodoxas, internamente contraditórias e conflitivas. Nas composições eleitorais, em prejuízo sempre da grande política, as coligações se fazem e se compram em função dos minutos que o partido agregado traz para a campanha eleitoral do candidato; no governo, a coalizão é determinada pelo número de parlamentares que podem ser arregimentados nas votações de interesse do governo. Collor não caiu por força de seus desmandos, mas, efetivamente, porque não dispunha de maioria congressual, quando perdeu o apoio da ruas. Lula, apoiado nas ruas, conheceu o risco da ausência de base congressual, em 2005, o que quase lhe impôs um impeachment. Corrigiu-se.

Por isso mesmo, tendo, pelo menos a partir do segundo governo Lula, maioria congressual suficiente para fazer as reformas estruturais, não as ousamos. Nem mesmo promovemos a institucionalização dos nossos programas sociais – Luz para todos, Minha casa minha vida, Bolsa Família, etc.— os quais, assim simples programas e não políticas de Estado (nível ao qual não são alçados) correm o risco de serem jogados na lata de lixo na primeira derrota eleitoral que soframos, alternativa que não desejamos mas para a qual precisamos estar atentos, pois conquistamos um governo republicano e não uma monarquia

Ora, nossas eleições apenas se justificam – pelo menos esse deveria ser o sentimento coletivo— enquanto instrumento de reforma (isto mesmo, apenas reforma, ainda no âmbito da correlação de forças atual e sem abalar as bases do sistema) do Estado. Fora daí, a política fica reduzida a uma discussão despolitizada, inodora, em face de índices de eficiência administrativa, como se os feitos administrativos não tivessem alma e coração políticos e ideológicos.

A reforma do Estado brasileiro (ou sua simples modernização) se discute desde sempre, mas as transformações significativas se operam na transição da estrutura monárquica para a republicana, quando, numa aparente contradição, se consolida o poder rural-oligárquico, reacionário, anti-desenvolvimentista, ensejando a ditadura da política do ‘café com leite’.

A ‘revolução’, de 30, um conflito inter-oligárquico, se resolveu mediante sua negação, o golpe de 1937, que implantaria a ditadura Vargas. Assim é que, sob o autoritarismo, começaria a construção do moderno Estado brasileiro, tanto do ponto de vista político-social (a estruturação da ordem burocrática com o DASP, a legislação trabalhista e previdenciária etc.), quanto do ponto de vista econômico, criando a infraestrutura sobre a qual poderia o país, no seu capitalismo tardio, ingressar na industrialização, a promessa de nossa libertação de todas as amarras do subdesenvolvimento. São dessa época o Código de Águas, o Conselho Nacional do Petróleo, a Companhia Siderúrgica Nacional, a Justiça do Trabalho e a Consolidação das Leis do Trabalho.

A construção dessa base seria retomada no Segundo período Vargas, o democrático (1951-1954), de viés nacionalista, quando o Estado retoma o papel indutor do desenvolvimento. É dessa fase a Petrobras. Nenhuma reforma do Estado, porém.

A era Vargas, que o tucanato jurou enterrar, renasceria, tênue, no quinquênio JK (1956-1961) e o seu surto industrialista, dependente do capital estrangeiro. Nenhuma reforma estrutural, embora, e talvez seja essa a melhor herança do quinquênio, tenha o país descoberto que o subdesenvolvimento não era um determinismo, como ensinavam os pensadores do conservadorismo e do desenvolvimento nacional dependente dos interesses das grandes potências.

A questão das ‘reformas de base’ veio à tona, com todas as letras e as consequências conhecidas, no governo Goulart (1961-1964). Os pleitos de hoje são ecos do pleito de então: reforma agrária, reforma urbana, a reforma política, a reforma da educação…

A ditadura militar, de Costa e Silva em diante, retoma o projeto modernizante, mas seu objetivo era fortalecer o Estado conservador. A reforma política visa a sufocar a democracia, e a reforma da educação destrói a escola pública.

Os primeiro governos reformistas, após o fim do regime militar, seriam os dois períodos Lula, continuados por Dilma. Mas, não obstante sustentar-se em uma correlação de forças, a qual, ampla, amplíssima, e talvez por isso mesmo (pela sua heterogeneidade), não lhe assegura a realização de uma só das ‘reformas de base’ das quais ainda carecemos no terceiro milênio. Está por ser feita a reforma tributária, a primeira peça da real democratização de nosso país, como a reforma do judiciário, como a reforma política sem a qual a democracia representativa permanecerá como agora, uma promessa frustrada pelo controle do poder econômico e dos meios de comunicação de massa. Não se fez a reforma do ensino militar, que continua reproduzindo o pensamento de direita. Não se reviu o pacto federativo. Ou seja, o Estado da esquerda é, ainda, o Estado deixado pelos militares e aperfeiçoado em suas distorções perversas nos oito anos de FHC.

Aparentemente preocupadas tão-só com a ocupação burocrática do Estado, as esquerdas ficaram à direita dos governos que ajudaram a eleger, e, renunciando nossos partidos aos seus deveres como vanguarda, transformaram-se em instrumento de acomodação das massas, pela via da domesticação dos sindicatos.

Penso que este seria o debate que os partidos de esquerda deveriam, talvez até em conjunto, promover no vestibular das eleições de 2014, quando seremos julgados mais pelos nossos erros e omissões do que pelos nossos muitos méritos como gestores do Estado burguês.
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*Roberto Amaral é cientista político e ex-ministro da Ciência e Tecnologia entre 2003 e 2004.

16 abril, 2013

Um passo à frente



por Venício A. de Lima*
do Observatório da Imprensa

      
Chegou a hora de dar um passo à frente na questão da regulamentação das comunicações no Brasil. Certamente atingimos um ponto de esgotamento no que se refere ao diagnóstico básico da situação e à identificação de atores e de suas posições. As preliminares estão postas. É necessário avançar.

Os fatos conhecidos

Que a legislação do setor está defasada e que normas e princípios constitucionais aguardam regulamentação há quase 25 anos, é fato.

Que as TICs, sobretudo a internet, nunca foram reguladas, é fato.

Que, ao longo dos anos, consolidou-se no Brasil a hegemonia de um sistema privado oligopolizado de comunicações consequência da ausência de qualquer limite legal à propriedade cruzada, é fato.

Que esse sistema é, direta ou indiretamente, vinculado a políticos no exercício de mandatos eletivos (deputados estaduais e federais, senadores, governadores, prefeitos e vereadores), é fato.

Que boa parte dos recursos que sustentam e reproduzem esse sistema oligopolizado se origina de verbas oficiais de publicidade, é fato.

Que a política de distribuição de recursos oficiais e publicidade tem dificultado o surgimento e/ou a consolidação de sistemas alternativos de comunicações, é fato.

Que o poder econômico e político que o sistema privado oligopolizado conquistou e preserva (mesmo após o surgimento das mídias digitais), pela própria natureza da atividade de comunicações, impede qualquer alteração real na sua estrutura, é fato.

Que uma das consequências dessa realidade é a perpetuação da exclusão histórica das vozes da maioria da população brasileira do debate público e a corrupção da opinião pública, é fato.

Que o governo da presidenta Dilma Rousseff anunciou publicamente que não enfrentará essa questão, é fato.

Que os empresários do setor – concessionários do serviço público de radiodifusão e/ou proprietários de jornais e revistas e/ou donos de agências de publicidade – interditam, sem mais, qualquer tentativa de se debater publicamente essas questões como se elas constituíssem uma proposta de censura e ameaçassem a liberdade de expressão, é fato.

Conceito em disputa

Diante desses fatos, simultaneamente à campanha liderada pelo Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) – “Para expressar a liberdade – uma nova lei para um novo tempo”– e ao esforço para a elaboração de uma proposta que possa se transformar em Projeto de Lei de Iniciativa Popular, devemos qualificar e verticalizar o debate público sobre a liberdade de expressão.

É necessário trazer para o contexto histórico do liberalismo brasileiro o debate sobre as ideias de liberdade de expressão e de opinião pública. Essa questão está praticamente ausente da longa tradição de estudos sobre o liberalismo e sobre algumas de suas aparentes contradições – como, por exemplo, a convivência com a escravidão e/ou com regimes autoritários – consolidada dentro da filosofia política e da história das ideias no Brasil.

A hegemonia do conceito liberal de liberdade tem sido a principal responsável não só pela paradoxal interdição do debate público sobre a liberdade de expressão, como também pela ausência da mídia nas teorias democráticas e ainda pela permanente desqualificação da opinião pública.

A liberdade liberal tem sua matriz no liberalismo que se constrói a partir do século 17 na Inglaterra, depois como reação conservadora à Revolução Francesa e se consolida no século 19 em complemento à ideia de mercado livre, isto é, à liberdade privada de produzir, distribuir e vender mercadorias. Prevalece o caráter pré-político da liberdade, como um direito exclusivo da esfera privada. A versão mais conhecida dessa perspectiva é a que reduz a liberdade à ausência de interferência externa na ação do indivíduo, a chamada liberdade negativa.

A liberdade republicana, ao contrário, se associa historicamente à democracia clássica grega, à república romana e ao humanismo cívico do início da Idade Moderna. Nela prevalece a ideia de liberdade associada à vida ativa, ao livre-arbítrio, ao autogoverno e à participação na vida pública.

São tradições distintas: a republicana se origina em Atenas, passa por Roma e se filia modernamente a pensadores como Maquiavel, John Milton e Thomas Paine. A liberal, em Hobbes, Locke, Benjamin Constant e, mais recentemente, em Isaiah Berlin.

Chegou a hora de estudar a construção histórica da hegemonia do conceito liberal de liberdade em busca de suas peculiaridades no Brasil.

Liberdade de expressão é um conceito em disputa. Apesar disso, uma de suas versões – a liberal – tem sido empunhada como bandeira de luta exatamente pelos representantes do sistema privado oligopolizado de comunicações. Paradoxalmente, em nome da liberdade de expressão, interdita-se o debate democrático sobre ela própria.

Talvez compreendendo melhor as peculiaridades do liberalismo brasileiro e suas consequências possamos avançar no debate e na formulação de propostas que possibilitem, afinal, que mais vozes sejam ouvidas e participem da consolidação de um republicanismo verdadeiramente democrático entre nós.

A ver.
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*Venício A. de Lima é jornalista e sociólogo, professor titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado), pesquisador do Centro de Estudos Republicanos Brasileiros (Cerbras) da UFMG e autor de Política de Comunicações: um Balanço dos Governos Lula (2003-2010), Editora Publisher Brasil, 2012, entre outros livros

14 abril, 2013

Um som de trovão

Imagem: Tempo Libero

Conto de Ray Bradbury

O anúncio na parede parecia tremular sob uma película de água quente. Eckels sentiu suas pálpebras estremecerem sobre seu olhar, e o anúncio queimava, na momentânea escuridão:

SAFARIS NO TEMPO, INC.
SAFARIS PARA QUALQUER ANO DO PASSADO
VOCÊ DIZ QUE ANIMAL.
NÓS O LEVAMOS LÁ.
VOCÊ O ABATE.

Uma flegma quente acumulou-se na garganta de Eckels; engoliu e empurrou-a para baixo. Os músculos ao redor de sua boca forma­ram um sorriso enquanto ele estendeu sua mão lentamente pelo ar, e naquela mão, balançava-se um cheque de dez mil dólares, para o ho­mem atrás da escrivaninha.
— Este safári garante que eu volte vivo?
— Não garantimos nada — falou o funcionário — exceto os dinos­sauros. — Voltou-se. — Este é o Sr. Travis, seu Guia, no safári ao pas­sado. Ele vai dizer-lhe o que e aonde atirar. Se ele disser para não ati­rar, não se atira. Se desobedecer às instruções, há uma pesada multa de mais de dez mil dólares, mais um possível processo do governo, quando voltar.
Eckels olhou, através do amplo escritório, numa completa con­fusão disforme, de fios entrelaçados e caixas de aço zumbindo, para uma aurora que agora reluzia laranja, então prateada, e então, azul. Havia um som como uma descomunal pira queimando todo o Tempo, todos os anos e todos os calendários, todas as horas empilhadas e incendiadas.
Um toque da mão e esta queima, instantaneamente, se reverteria lindamente. Eckels lembrou-se literalmente das palavras da propagan­da. De carvões e cinzas, da poeira e das brasas, como salamandras douradas, os velhos tempos, os anos jovens, podem saltar; rosas sua­vizando o ar; cabelo branco enegrecendo-se, rugas desaparecendo; tu­do ,voltando totalmente à origem, fugir à morte, precipitar-se para o começo de tudo, o sol nascendo nos céus ocidentais, e pondo-se glo­riosamente no leste, luas devorando-se a si mesmas no sentido oposto ao costumeiro, e tudo se sobrepondo, como caixas chinesas, coelhos em cartolas, tudo e todos retornando à morte viva, a morte da se­mente, a morte verde, ao tempo de antes do começo. O toque da mão poderia fazê-lo, o mero toque da mão.
— Inacreditável. — Eckels respirava, com a luz da Máquina sobre seu rosto fino. — Uma verdadeira Máquina do Tempo. — Abanou a cabeça. — É de fazer pensar. Se a eleição tivesse ido mal ontem, eu poderia estar agora me afastando dos resultados. Felizmente Keith ganhou. Será um bom presidente para os Estados Unidos.
— Sim — falou o homem por trás da mesa. — Temos sorte. Se Deutscher tivesse ganho, teríamos a pior ditadura. Há sempre um homem anti-tudo, um militarista, um anti-Cristo, anti-humano, anti-intelectual. O povo nos requisitou, sabe, como que brincando, mas a sério. Diziam que se Deutscher se tornasse presidente, queriam vi­ver em 1492. Claro, não é o nosso negócio conduzir Fugas, mas orga­nizar Safáris. De qualquer maneira, Keth é o presidente, agora. Tudo com que precisa preocupar-se agora é...
— Caçar meu dinossauro — Eckels acabou para ele.
— Um Tyranossaurus rex. O Lagarto Tirano, o monstro mais ina­creditável de toda a história. Assine este termo. O que quer que aconteça com você, não somos responsáveis. Esses dinossauros são muito vorazes.
Eckels animou-se, nervoso. — Tentando assustar-me!
— Francamente, sim. Não queremos que vá alguém que entre em pânico ao primeiro tiro. Seis lideres de safári foram mortos no ano passado, e uma dúzia de caçadores. Estamos aqui para dar-lhe a maior emoção que um caçador de verdade jamais almejou. Mandá-lo de volta sessenta milhões de anos, para pegar a maior caça de to­dos os tempos. Seu cheque ainda está aqui. Pode rasgá-lo.
O Sr. Eckels olhou para o cheque. Seus dedos retorceram-se.
— Boa-sorte — falou o homem atrás da escrivaninha. — Sr. Tra­vis, ele é todo seu.
Moveram-se silenciosamente, atravessando a sala, levando suas armas com eles, em direção à Máquina, rumo ao metal prateado e às luzes gritantes.
Primeiro, um dia e então uma noite e então um dia e então uma noite, e então era dia-noite-dia-noite-dia. Uma semana, um mês, um ano. uma década! 2 055 a. D., 2 019 a. D., 1 999! 1 957! Partida! A máquina rugia.
Puseram suas máscaras de oxigênio e testaram os intercomunica­dores.
Eckels inclinou-se no assento estofado, rosto pálido, maxilar enrijecido. Sentia o tremor em seus braços, olhou para baixo e achou suas mãos firmes no novo rifle. Haviam quatro outros homens na Máquinas. Travis, o líder do Safári, seu assistente, Lesperance, e mais dois outros caçadores, Billings e Kramer. Sentavam-se olhando uns para os outros, e os anos ardiam à volta deles.
— Estas armas podem dar conta de um dinossauro? — Eckels sentiu sua boca dizendo.
— Se os acertar direito — disse Travis pelo rádio do capacete. — Alguns dinossauros têm dois cérebros, um na cabeça e outro no fim da espinha. Ficamos longe destes. É abusar da sorte. Atire as duas primeiras vezes nos olhos, se puder, e cegue-os, e volte a atirar no cérebro.
A Máquina bramia. O Tempo era um filme passado ao contrá­rio. Os sóis voavam e dez milhões de luas, atrás deles. — Pense só — disse Eckels. — Todos os caçadores que jamais viveram nos inveja­riam hoje. Isto faz a África parecer com o Illinois.
A Máquina desacelerou; seu grito caiu para um sussurro. A Má­quina parou.
O sol parou no céu.
A névoa que envolvera a Máquina dissipou-se e estavam num tempo antigo, muito antigo mesmo, três caçadores e dois chefes de safári com suas armas metálicas sobre os joelhos.
— Cristo ainda não nasceu — disse Travis. — Moisés ainda não foi à montanha, para falar com Deus. As pirâmides ainda estão na terra, esperando para serem recortadas e montadas. Lembrem-se disso. Ale­xandre; César; Napoleão; Hitler; nenhum deles existe.
O homem fez que sim.
— Aquilo. — Apontou o Sr. Travis — é a selva de sessenta milhões dois mil e cinqüenta e cinco anos antes do presidente Keith.
Mostrou o caminho de metal que cruzava o verde selvagem, so­bre um amplo pântano, por entre fetos e palmeiras.
E aquele — disse — é o Caminho, colocado por Safáris no Tem­po, para seu uso. Flutua a seis polegadas acima da terra. Não toca se­não no máximo uma grama, flor ou árvore. É um metal antigravitacional. Seu propósito é evitar que vocês toquem, de qualquer manei­ra que seja, este mundo do passado. Fiquem no Caminho. Não saiam dele. Repito. Não saiam. Por qualquer razão que seja! Se caírem, se­rão multados. E não disparem em nenhum animal que não aprove­mos.
— Por quê? — perguntou Eckels.
Sentaram-se, na floresta antiga. Gritos distantes de pássaros vie­ram com o vento, e o cheiro de alcatrão e de um velho oceano salga­do, grama úmida, e flores da cor de sangue.
— Não queremos mudar o Futuro. Não pertencemos ao Passado. O governo não gosta de nós aqui. Temos que pagar muita propina para garantir nossa licença. A Máquina do Tempo é um negócio ex­tremamente delicado. Sem saber, poderíamos matar um animal im­portante, um pequeno pássaro, uma barata; mesmo uma flor, assim destruindo um elo importante, numa espécie em evolução.
— Isso não fica muito claro, — falou Eckels.
— Está bem — continuou Travis, — suponhamos que acidental­mente matemos um rato, aqui. Isso quer dizer que todos as futuras famílias deste rato, em particular, serão destruídas, certo?
— Certo.
— E todas as famílias das famílias, daquele rato! Com um pisão de seu pé, você aniquila primeiro um, então uma dúzia, então mil, um milhão, um bilhão de ratos, possivelmente!
— Então estarão mortos; e daí?
— E daí? — Travis torceu o nariz. — Bem, e as raposas que preci­sariam daqueles ratos para sobreviver? Para cada dez ratos a menos, morre uma raposa. Para cada dez raposas a menos, um leão morre de fome. Para cada leão a menos, insetos, abutres, infinitos bilhões de formas de vida são lançados ao caos e à destruição. Eventualmente, tudo recai no seguinte: cinqüenta e nove milhões de anos depois, um troglodita, um, de uma dúzia no mundo inteiro, vai caçar javalis ou tigres de dentes de sabre para comer. Mas você, amigo, pisou em todos os tigres daquela região. Pisando num só rato. Assim o troglodita morre de fome. E este homem das cavernas, note bem, não é qualquer um dispensável, não senhor! Ele é toda uma nação futura. Dele, teriam saído dez filhos. E destes, mais cem, e assim por diante, até a civilização. Destruindo este único homem, destrói-se uma raça, um povo, toda uma história. É comparável a matar um neto de Adão. O pisão de seu pé, num rato, poderia principiar um terremoto, cujos efeitos poderiam abalar nossa terra e destinos pelo Tempo afo­ra, até seus alicerces. Com a morte daquele troglodita, um bilhão de outros ainda não nascidos são mortos no útero. Talvez Roma nunca se erga sobre suas sete colinas. Talvez a Europa fique para sempre uma floresta espessa, e apenas a Ásia cresça, forte e saudável. Pise num rato e esmagará as Pirâmides. Pise num rato e deixará sua mar­ca, como um Grand Canyon, pela Eternidade. A rainha Elizabete poderá nunca nascer. Washington poderá não cruzar o Delaware, po­derá nunca haver Estados Unidos. Portanto, seja cuidadoso. Fique no caminho. Nunca pise fora!
— Percebo — comentou Eckels. — Então não poderíamos nem tocar a grama?
— Exato. Esmagar certas plantas poderia causar somas infinitesi­mais. Um erro mínimo seria multiplicado por sessenta milhões de anos, desmesuradamente. Claro, talvez nossa teoria esteja errada. Tal­vez o Tempo não possa ser alterado por nós. Ou talvez só possa ser alterado de maneiras sutis. Um rato morto aqui causa um desequilí­brio dos insetos ali, uma desproporção populacional mais tarde, uma colheita má mais adiante, uma depressão, fome, e finalmente uma mudança no temperamento social em países remotos. Algo muito mais sutil, como isso. Talvez algo ainda muito mais sutil. Talvez ape­nas uma respiração, um sussurro, um cabelo, um pólen no ar, uma mudança tão levezinha que se olhasse atentamente, não notaria. Quem sabe? Quem pode dizer que realmente sabe? Não sabemos. Estamos só adivinhando. Mas até que tenhamos certeza, se nossos passeios pelo Tempo podem fazer um barulhão ou um barulhinho na História, seremos cuidadosos.. Esta Máquina, este Caminho, suas rou­pas e corpo, foram esterilizados, como sabem, antes da viagem. Usa­mos estes capacetes de oxigênio de modo que não possamos introdu­zir bactérias nesta atmosfera primitiva.
— Como sabemos que animais abater?
— Estão marcados com tinta vermelha — explicou Travis. — Ho­je, antes da viagem, mandamos Lesperance aqui com a Máquina. Ele veio a esta época em particular e seguiu certos animais.
— Estudando-os?
— Isso — falou Lesperance. — Sigo-os por toda sua vida, obser­vando quais vivem mais. Quantas vezes se acasalam. Poucas vezes. A sua vida é curta. Quando vejo que algum vai morrer com uma árvore caindo em cima dele, ou um que se afoga num poço de alcatrão, ano­to a hora, minuto, e segundos exatos. Disparo um revólver de tinta. Deixa uma marca vermelha em seus flancos. Não podemos nos enga­nar. Então correlaciono com a chegada ao Caminho, de modo que encontremos o monstro a não mais de dois minutos de sua morte, inevitável. Desta forma, matamos apenas animais sem futuro, que nunca vão se acasalar de novo. Vê como somos cuidadosos?
— Mas se esta manhã você voltou no tempo, deve ter cruzado conosco mesmos, nosso safári! Como nos saímos? Tivemos sucesso? Conseguimos voltar todos... vivos?
Travis e Lesperance entreolharam-se.
— Isso seria um paradoxo, — falou este último. — O tempo não permite esse tipo de confusão; um homem encontrando a si mesmo. Quando há o risco de tais situações, o tempo desvia-se. Como um avião passando por um vácuo. Sentiu a Máquina pular antes de pararmos? Éramos nós passando por nós mesmos, a caminho do Futuro. Não vimos nada. Não há meio de dizer se esta expedição teve suces­so; se pegamos nosso monstro, ou se todos nós, isto é, o senhor, Sr. Eckels, saiu vivo.
Eckels sorriu, palidamente.
— Parem com essa conversa — interrompeu Travis. — Todos de pé!
Estavam prontos para deixar a Máquina.
A selva era alta, a selva era larga, e a selva era todo o mundo, pa­ra sempre. Sons como música, e sons como tendas voando, encheram o ar, e eram pterodátilos planando com cavernosas asas cinzentas, morcegos gigantescos de delírio e febre noturna. Eckels, equilibrado no estreito Caminho, apontou seu rifle, bem-humorado.
— Pare! — falou Travis. — Não aponte nem mesmo por brinca­deira, idiota! Se a arma dispara...
Eckels enrubesceu. — Aonde está nosso Tyranossaurus?
Lesperance checou seu relógio de pulso. — Logo à frente. Vamos estar no caminho dele em sessenta segundos. Atenção para a tinta vermelha! Não atire até que eu mande. Fique no caminho. Fique no Caminho!
Moveram-se adiante, pelo vento da manhã.
Estranho — murmurou Eckels. — Lá adiante, daqui a sessenta milhões de anos, fim das eleições. Keith presidente. Todos celebran­do. E aqui estamos, perdidos num milhão de anos, e eles não existem ainda. As coisas que nos preocuparam por meses, por uma vida intei­ra, nem nasceram nem foram idealizadas, ainda.
— Soltar as travas, todos! — ordenou Travis. Você dá o primeiro tiro, Eckels, Billings o segundo, e Kramer o terceiro.
— Já cacei tigre, javali, búfalo, elefante, mas agora, isto é incomparável — disse Eckels. — Estou tremendo como uma criança.
— Ah — fez Travis. Todos pararam.
Travis ergueu a mão. — À frente — falou, em voz baixa. — Na ne­blina. Lá está ele. Ali está Sua Majestade Real, agora.
A selva era ampla, e cheia de gorjeios, farfalhares, murmúrios e suspiros.
Subitamente, tudo cessou, como se alguém tivesse fechado a porta.
Silêncio.
Um som de trovão.
Da neblina, a cem jardas, vinha o Tyranossaurus rex.
— É ele — cochichou Eckels, — é ele... —Psss!
Ele veio sobre grandes pernas, oleosas, resilientes. Erguia-se a trinta pés, acima da metade das árvores, um grande deus do mal, do­brando suas delicadas garras de relojoeiro perto de seu peito oleoso, reptílico. Cada pata inferior era um pistão, mil libras de osso branco, mergulhadas em grossas cordas de músculos, revestidas por um brilho de uma pele pedregosa, como a malha de um terrível guerreiro. Cada coxa, uma tonelada de carne, marfim, e aço trançado. E da grande gaiola arquejante da parte superior do corpo, aqueles dois braços de­licados pendurados para a frente, braços que poderiam erguer e exami­nar os homens como brinquedos, enquanto se dobrava o pescoço de serpente. E a cabeça mesmo, uma tonelada de pedra esculpida, ergui­da com facilidade contra o céu. Sua boca escancarava-se, expondo uma cerca de dentes como dardos. Seus olhos rolavam, ovos de aves­truz, vazios de qualquer expressão, exceto fome. Fechava a boca num sorriso da morte. Corria, seus ossos pélvicos derrubando para os lados árvores e arbustos, seus pés, com garras, afundando-se na terra úmida, deixando marcas de seis polegadas de profundidade aonde quer que apoiasse seu peso. Corria com um passo deslizante de ballet, muito aprumado e equilibrado para suas dez toneladas. Movia-se, cansado, numa arena ensolarada, suas mãos lindamente reptilianas tateando o ar.
— Ora, vejam — Eckels torceu a boca. — Poderia esticar-se e pegar a lua.
— Pssst! — fez Travis, nervoso. — Ele ainda não nos viu.
— Não pode ser morto. — Eckels pronunciou seu veredito, quie­to, como se não pudesse haver discussão. Tinha avaliado a evidência, e era esta sua abalizada opinião. O rifle em sua mão parecia uma ar­ma de brinquedo. — Fomos loucos de ter vindo. Isto é impossível.
— Cale-se! — silvou Travis.
— Pesadelo.
— Dê meia volta — comandou Travis. — Vá em silêncio para a Máquina. Podemos reembolsar-lhe metade de sua passagem.
— Não percebia como seria grande, — falou Eckels. — Avaliei mal, foi isso. E agora, quero desistir.
— Ele nos viu!
Lá está a tinta vermelha em seu peito!
O Lagarto Tirano levantou-se. Sua carne de armadura rebrilhava como mil moedas verdes. As moedas, com uma crosta de lama, fer­viam. No lodo, pequenos insetos esperneavam, de modo que todo o corpo parecia retorcer-se e ondular, mesmo enquanto o monstro não se movia. Expirou. O cheiro de carne crua foi soprado pelos ermos.
— Deixe-me sair daqui — disse Eckels. — Nunca foi como isto, agora. Eu sempre estava certo de que poderia sair vivo. Eu tinha bons guias, bons safáris, e segurança. Desta vez, enganei-me. Encontrei algo que me supera, e reconheço. É demais para eu enfrentar.
— Não corra — falou Lesperance. — Dê a volta. Esconda-se na Máquina.
— Sim, — Eckels parecia entorpecido. Olhou para seus pés, como que tentando fazê-los mover-se. Deu um grunhido, incapaz.
— Eckels!
Deu alguns passos, piscando, hesitante,
— Não por aí!
O Monstro, ao primeiro movimento, impulsionou-se para a fren­te com um grito terrível. Cobriu cem jardas em seis segundos. Os rifles ergueram-se rapidamente e iluminaram-se, com o fogo. Um ven­daval da boca da besta engolfou-os na fedentina do lodo, e sangue envelhecido. O Monstro rugiu, dentes brilhando ao sol.
Eckels, sem olhar para trás, caminhou cegamente para a borda do Caminho, sua arma carregada frouxamente em seus braços, saiu do caminho, e andou, inadvertidamente, pela floresta. Seus pés afun­daram em musgo verde. Suas pernas o carregavam, e ele se sentia só e afastado dos eventos lá atrás.
Os rifles dispararam de novo. O som perdeu-se no grito e no tro­vão do lagarto. O grande volume da cauda do animal lançou-se para cima, e para o lado. Árvores explodiram em nuvens de folhas e ra­mos. O Monstro torceu suas mãos de joalheiro para acariciar os ho­mens, para dobrá-los ao meio, para esmagá-los, como frutinhas, para empurrá-los para seus dentes e sua garganta ruidosa. Seus olhos, quais rochedos, estavam ao nível dos homens. Viram-se espelhados. Dispararam nas pálpebras metálicas e na luminosa íris.
Como um ídolo de pedra, como uma avalanche de montanha, o Tyranossaurus caiu. Trovejando, agarrou árvores, e puxou-as consigo. Agarrou e cortou o Caminho. Os homens precipitaram-se para trás, e para longe. O corpo abateu-se, dez toneladas de carne fria e pedra. Os rifles dispararam. O Monstro brandiu sua cauda blindada, crispou suas mandíbulas de serpente, e imobilizou-se. Uma fonte de sangue jorrava de sua garganta. Em algum lugar lá dentro, um saco de fluido estourou. Borbotões nauseantes inundaram os caçadores. Lá estavam vermelhos, brilhantes.
O trovão dissipou-se.
A selva estava silenciosa. Depois da avalanche, uma paz verde. Depois do pesadelo, o amanhecer.
Billings e Kramer praguejavam pesadamente, com seus rifles ain­da fumegando.
Na Máquina do Tempo, face abatida, Eckels tremia. Tinha con­seguido voltar ao caminho, e subira na Máquina.
Travis chegou, olhou para Eckels, pegou gaze de algodão e, virou-se para os outros, que estavam sentados sobre o Caminho.
— Limpem-se.
Limparam o sangue de seus capacetes. Começaram a resmungar, também. O Monstro jazia ali como uma montanha de carne. Dentro dele, podia-se ouvir os sopros e murmúrios, enquanto seus recessos iam morrendo, os órgãos parando de funcionar, líquidos circulan do um último instante, de saco para a bolsa, para vesícula, tudo des­ligando-se, parando para sempre. Era como ficar perto de uma loco­motiva acidentada, ou uma escavadeira a vapor, no momento de des­ligar, com todas as válvulas sendo desativadas. Ossos estalavam; a tonelagem de sua própria carne, desequilibrada, peso morto, quebrava os delicados braços, do lado de baixo. A carne se assentava aos tre­mores.
Outro estalido. Mais acima, um enorme galho de árvore partiu de sua pesada ancoragem, caiu. Golpeou certeiramente a fera morta.
— Pronto. — Lesperance verificou seu relógio. — Bem na hora. Essa era a grande árvore que deveria cair e matar este animal, origi­nalmente. — Olhou para os dois caçadores. — Querem tirar a foto de troféu?
— Quê?
— Não podemos levar o troféu para o Futuro. O corpo deve fi­car aqui, aonde deveria originalmente morrer, de modo que os inse­tos, pássaros, e bactérias possam devorá-lo, como devem. Tudo equi­librado. O corpo fica. Mas podemos tirar uma fotografia de vocês a seu lado.
Os dois homens fizeram força para pensar, mas desistiram, aba­nando as cabeças.
Deixaram-se guiar ao longo do Caminho de metal. Afundaram cansados, nos assentos da Máquina. Olharam de novo para o Monstro arruinado, o montículo em estagnação, aonde já estranhos pássaros reptilianos e insetos dourados estavam ocupados com a fumegante armadura.
Um som no chão da Máquina do Tempo deixou-os tensos. Eckels estava lá, tremendo.
— Lamento muitíssimo — disse.
— Levante-se! — gritou Travis. Eckels levantou-se.
— Vá para o Caminho sozinho — falou Travis, com seu rifle apontado. Não vai voltar para a Máquina. Vamos deixá-lo aqui!
Lesperance agarrou o braço de Travis. — Espere...
— Fique fora disto! — Travis desvencilhou-se de sua mão. — Este louco quase matou-nos. Mas isso não é tanto assim. Vejam seus sapa­tos! Vejam! Ele saiu do Caminho. Isso nos arruína! Seremos multa­dos! Milhares de dólares de seguro! Garantimos que ninguém deixa o Caminho, e ele o deixou. Ora, o louco! Terei de informar o Governo
Poderão cancelar nossa licença para viajar. Quem sabe o que ele fez ao Tempo, à História!
— Calma, tudo o que ele fez foi pisar em alguma sujeira.
— Como saber? — gritou Travis. — Não sabemos nada! É um mistério! Saia, Eckels!
Eckels mexeu em sua camisa. — Pago qualquer coisa. Mil dóla­res!
Travis olhou para o talão de cheques de Eckels e cuspiu. — Saia. O Monstro está perto do Caminho. Afunde os braços até os cotove­los na boca dele. Então poderá voltar conosco.
— Isto é irrazoável!
— O Monstro está morto, seu idiota. As balas! As balas não po­dem ser deixadas para trás. Elas não pertencem ao Passado; poderão mudar alguma coisa. Aqui está a minha faca. Cave-as!
A selva estava viva de novo, cheia de antigos tremores e do baru­lho dos pássaros. Eckels voltou-se lentamente para olhar o monte de carniça primordial, aquela montanha de pesadelos e terror. Depois de um longo tempo, como um sonâmbulo, arrastou-se ao longo do Caminho.
Voltou, tremendo, cinco minutos depois, com seus braços enso­pados e vermelhos até os cotovelos. Estendeu as mãos. Cada uma se­gurava algumas balas de aço. Então caiu e ficou lá, imóvel.
— Você não precisava obrigá-lo a isso — comentou Lesperance.
— Não? É cedo ainda para dizer. — Travis tocou o corpo, com o pé. — Viverá. Da próxima vez não vai sair para caçar este tipo de ca­ça. OK. — Ergueu o polegar para Lesperance. — Dê a partida. Vamos para casa.
1492 . 1776 . 1812 .
Limparam suas mãos e faces. Trocaram de roupa. Eckels estava de pé de novo, mudo. Travis olhou para ele por dez minutos.
— Não olhe para mim, — exclamou Eckels. — Não fiz nada.
— Quem pode saber?
— Apenas saí do Caminho, foi tudo, um pouco de lama em meus sapatos; que quer que eu faça? Que me ajoelhe e reze?
— Talvez precisemos disso. Estou lhe avisando, Eckels! Posso matá-lo, ainda. Minha arma está engatilhada.
— Estou inocente. Não fiz nada! 1999 . 2000 . 2055 .
A Máquina parou.
— Saia — ordenou Travis.
A sala lá estava, tal como quando saíram. Mas não exatamente a mesma. O mesmo homem atrás da mesma escrivaninha. Mas o mes­mo homem não parecia estar sentado exatamente atrás da mesma escrivaninha.
Travis olhou em volta, depressa. — Tudo em ordem por aqui? — foi logo perguntando.
— Claro. Bem vindos ao lar!
Travis não relaxou. Parecia estar olhando para os próprios áto­mos do ar, e para o modo pelo qual o sol entrava pela janela alta.
— OK, Eckels, saia. E nunca mais volte. Eckels não podia mover-se.
— Ouviu-me, — falou Travis. — Para o quê está olhando? Eckels ficou, cheirando o ar, e havia algo no ar, uma substância tão tênue, tão sutil, que apenas um fraco aviso de seus sentidos su­bliminares avisavam-lhe que estava ali. As cores, branco, cinza, azul, laranja, na parede, na mobília, no céu, pela janela, eram... eram... E havia uma sensação. Sua carne crispava-se. Ficou bebendo aquela estranheza com os poros de seu corpo. Em algum lugar, alguém devia estar soprando naqueles apitos que só os cães podem ouvir. Seu cor­po gritava silenciosamente, em resposta. Além deste aposento, além desta parede, além deste homem, que não era exatamente o mesmo homem que estava sentado àquela mesa, que não era bem a mesma mesa... estava todo um mundo de ruas e gente. Que espécie de mun­do era agora, não havia como dizer. Ele podia senti-los mover-se ali, além das paredes, quase, como peças de xadrez por um vento quen­te...
Mas a coisa mais imediata era o anúncio pintado na parede do escritório, o mesmo que havia lido hoje ao entrar. De alguma forma, o anúncio havia mudado:

SEFARIS NU TENPO, INC.
SEFARIS PRA QUALQUER ANO PAÇADO.
CÊ DIS QUI ANIMAU.
NÔIS LEVAMOS CÊ LÃ.
CÊOABAT.

Eckels sentiu-se caindo numa cadeira. Ficou mexendo, como louco, na lama em suas botas. Ergueu um pedaço de algo enlameado, tremendo. — Não, não pode ser, não uma coisinha assim, não!
Embebida na lama, brilhando em verde e dourado e preto, havia uma borboleta, muito bela, e muito morta.
Não uma coisa assim! Não uma borboleta! — gritou Eckels.
Caiu ao chão, uma coisa exótica, pequena, que poderia desman­char equilíbrios e derrubar uma fila de dominós pequenos, e então grandes dominós, e então dominós gigantes, por todos os anos atra­vés do Tempo. A mente de Eckels turbilhonava. Não podia mudar as coisas. Matar uma borboleta não podia ser tão importante! Ou pode­ria?
Seu rosto estava frio. Sua boca hesitava, ao perguntar: — Quem... quem ganhou a eleição presidencial ontem?
O homem atrás da escrivaninha riu-se. — Está brincando? Sabe muito bem. Deutscher, claro! Quem mais? Não aquele maluco pusi­lânime do Keith. Temos um homem de ferro, agora, um homem de peito! — O funcionário parou. — O que há de errado?
Eckels gemeu. Caiu de joelhos. Examinava a borboleta dourada com dedos trêmulos. — Não podemos — implorava ao mundo, a si mesmo, aos funcionários, à Máquina. — Não podemos levá-la de vol­ta, não podemos fazê-la viver de novo? Não podemos recomeçar? Não poderíamos...
Não se moveu. Olhos fechados, esperou, abalado. Ouviu Travis ofegando, na sala; ouviu Travis apontar o rifle, destravá-lo.
Houve um som de trovão.
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Texto pescado do blog Contos Fantásticos 

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