28 setembro, 2014

1989, 2014

por Denise Queiroz

Já escrevi aqui sobre 1989 e o que foi aquilo tudo de esperança de festa de democracia. Não escrevi sobre o horror da campanha suja, podre, nojenta e de baixo nível. Dias antes do segundo turno, Lula à frente nas pesquisas, frente de partidos de esquerda e centro aglutinados, aparece na propaganda de Collor a senhora Miriam Cordeiro, mãe de uma filha de Lula. Ela contava que Lula queria que ela abortasse e mais um sem fim de blás e blás. Verdade ou não, pouco importou. Foi a facada que terminou de sangrar a imagem de monstro que todos os dias vinham homeopaticamente pintando de Lula, do PT. O final todos sabem: quase tudo que Collor dizia que Lula - o analfabeto, o despreparado, o sem apoio no congresso, o pobre, o criminoso por ter proposto aborto à namorada - faria caso fosse eleito (confiscar a poupança e transformar o país num verdadeiro caos) ele o fez no dia da posse, em março de 1990.

Depois do impeachment de Collor em 1992 (ele renunciou horas antes da votação do impeachment que mesmo assim foi realizada, simbolicamente, pelo Congresso que havia encontrado um ‘verdadeiro mar de lama’ na CPI que apurou denúncias de caixa 2 na campanha) o país virou um pandemônio. Assumiu o vice, Itamar Franco que, em meio àquele caos e com as instituições em crise, conseguiu reunir um grupo de políticos de vários partidos para retomar alguma normalidade. Em junho de 1994 lança um plano econômico que anunciado e explicado, rejeitado e apoiado, conseguiu pôr fim a anos de economia descontrolada e inflação criminosa. Com isso credenciou o seu ministro da fazendo para ser o próximo presidente.

De lá até 2010, embora tenhamos vivido momentos de alguma crise e denúncias e mais denúncias de corrupção não tenham parado de aparecer, vivemos um período estável. O país cresceu, com o controle da inflação e políticas de inclusão econômica foram sendo implementadas pelos governos. Os gráficos e os critérios de medição da economia e das melhoras são vantajosos e Lula indica sua ministra da casa civil, a mãe do PAC, para sucedê-lo e continuar o trabalho que vinha desenvolvendo, só que sentando na cadeira que ele mesmo havia ocupado.

Para qualquer conhecedor e observador da política, parecia um despropósito que uma pessoa que nunca havia disputado qualquer cargo pudesse ser eleita presidente do país. Mesmo no círculo dos cartolas do PT a escolha de Lula não foi bem recebida. Mas a verdade é que o partido havia descuidado de formar novos quadros políticos e as chances de qualquer outro nome seriam mínimas. Campanha dura, mas que na verdade já havia sido iniciada com o lançamento do PAC em 2007, quando a ministra começa a aparecer mais e mais na mídia, em entrevistas etc.

Eleita, Dilma nomeia um gabinete que é recebido com narizes tortos. Com exceção de Fernando Haddad na Educação, e alguns outros nomes que trocam de pastas, como Paulo Bernardo e Miriam Melquior, muitos deles desconectados com os meandros técnicos dos ministérios que teriam de tocar.

As promessas de campanha, de continuidade e melhorias, vão sendo pouco a pouco abandonadas, notadamente na área de cultura, direitos humanos, reforma agrária. Áreas essas ‘questão de honra’ e mais que simbólicas para grande parte das pessoas que formaram o PT e elegeram a candidata do Lula. Denúncias pipocam, ministros são trocados. Denúncias pipocam, assessores são demitidos. Denúncias pipocam, novos ministros, mais desconhecidos e alheios às pastas, de partidos quase inexpressivos, vão aparecendo. Novos ministérios criados para acomodar a base aliada e garantir a 'governabilidade'.

Em abril de 2013, em Porto Alegre, movimentos sociais não alinhados aos partidos ‘da base’, de nenhuma base, tomam as ruas de Porto Alegre contra o aumento das passagens do ônibus municipais, motivados por uma ação movida no Ministério Pblico para que os cálculos das tarifas fossem públicos. O movimento se avoluma e,a cada manifestação, mais gente de aglutina. Em junho o Movimento Passe Livre toma as ruas de São Paulo, também apoiado por movimentos não alinhados aos partidos da base, a maioria não alinhada a partido nenhum, mas que viu ali a chance de reivindicar mudanças gerais. Afinal, desde o movimento pela Anistia e depois pelas Diretas, neste país só o povo em massa e nas ruas conseguiu pressionar a modificar minimente estruturas.

Esse movimento se amplifica. A brutal repressão da PM paulista, que fez nas ruas centrais das cidade, à frente das câmaras, o que faz nas periferias dia e noite, revolta movimentos, grupos, sozinhos, gente em rede ou que só fica sabendo mas sofre no dia-à-dia as conseqüências das péssimas políticas públicas, a ir também para a rua. Grandes jornadas passam a ocorrer nas principais capitais, mais concorridas e reprimidas nas que sediariam a copa das confederações.

Diante do aparente descontrole, gabinete de emergência é formado no Palácio do Planalto que não conseguia entender o que ocorria, ‘se somos tão bonzinhos’ e temos bolsa-família, pronatec, pronaf, fies, cies e não sei mais quantos programas aparentemente inclusivos. Pela primeira vez, desde que assumiu a presidência, a autoridade máxima do país se dignou a receber gente que ela nunca tinha ouvido  nem falar que existia, por não serem ‘representantes’ dos movimentos de sempre - os organizados na década de 80 e que depois foram alinhados ao governo - para dialogar. Em pronunciamento à nação, leu um discurso elaborado pelo marqueteiro João Santana, com medidas imediatas para resolver os problemas. Se eram factíveis de serem implementadas ou não, não importava. O que contava era acalmar a turba ensandecida e parar de aparecer na imprensa internacional como um país desigual, onde problemas estruturais não foram resolvidos depois de 10 anos e meio do mesmo partido presidindo.

Não deu muito certo. As ruas continuaram tendo manifestações. Na copa das confederações, os turistas que foram aos estádios construídos pelas empreiteiras que desde sempre financiam as campanhas políticas, puderam provar da melhor tecnologia nacional produzida por um dos braços da maior empreiteira do pais: o gás de pimenta.

Imagem arranhada, confiança quebrada. Os juros não baixaram. A conta de luz que havia sido reduzida voltou a subir, as creches prometidas em 2010 não foram construídas. Os projetos de mobilidade para a copa continuam, grande parte deles, sendo projetos. O maior campo testado de petróleo da camada do pré-sal foi leiloado, contrariando a lei de 2010 que previa leilões, mas de campos não testados. E mesmo assim as contas não fecharam.

Entre desastres discursivos, locais e internacionais, a balança comercial pendeu pro outro lado. A meta da inflação não foi cumprida e o crescimento do país se aproxima do zero. Embora os institutos, baseando-se em critérios internacionais de emprego e desemprego, mostrem dados a serem comemorados, eles brigam com a realidade da violência material e humana que todos vivenciamos.

E todos se perguntam o que está acontecendo? Se temos porcentagens de pleno emprego, desigualdade menor, porque tanta violência? Temos democracia...

Nos acostumamos tanto a repetir chavões de auto-engano que o enfrentamento da realidade diferente demais dos números nos assusta.

Sempre digo ao filho e amigos que a melhor maneira de avaliar um lugar é a leitura das páginas policiais. Se há furtos e brigas de vizinhos, estamos num local próximo ao paraíso. Mas se há assaltos violentos, roubos, mortes, algo está muito errado e há que prestar mais atenção.

Não é de hoje que horrores acontecem. O ser humano é horroroso, cheio de defeitos, ambições, descontroles. Assassinatos ocorrem ‘nas melhores famílias’. Mas se crimes violentos se sucedem e amontoam, é porque o estado das coisas anda mal. Não há números que sejam convincentes quando alguém querido é morto ou agredido por causa de um celular, um tênis, um carro que seja. Quando o sair a rua é arriscado.

Mas está tudo bem, na propaganda do governo que intercala mensagens edificantes e histórias de melhorias com acusações falaciosas aos adversários. Nos acostumamos a fugir da realidade aflitiva vendo novelas. A linguagem das propagandas políticas (aplausos para os marqueteiros?) captou esse gosto tão latino e transformou momento nobre da democracia em obras de ficção. Para produzi-las, os patrocinadores são os mesmos das novelas.

Dia 5 de outubro vamos lá. Votamos. Elegemos alguém para sentar na cadeira presidencial e no dia seguinte voltamos à rotina de transporte infernal, comida às pressas, trânsito na volta para casa, se conseguirmos chegar, e novela. Para esquecer!

27 setembro, 2014

Brasil: a rua e as presidentas, por Manuel Castells

tradução de Denise Queiroz

O que está em jogo é um modelo de desenvolvimento que serve mais ao 
Estado que à economia, e um tipo de política para benefício dos políticos

O amplo movimento de protestos que balançou a sociedade brasileira de junho a setembro de 2013 parece ter se diluído com o passar do tempo, ao ter enfrentado o repúdio dos políticos, a brutal repressão da polícia militar e a manipulação da extrema-direita. A tentativa de boicote à copa do mundo foi um fracasso. Muitas reivindicações locais foram satisfeitas como resultado deles. E a presidenta Dilma Rousseff do PT prometeu mais investimentos públicos em educação e saúde. O efeito político do movimento pode ter sido fundamental: a presidenta declarou “ouvir a voz das ruas”, legitimou suas reivindicações e assumiu as críticas à corrupção política e à partidocracia. Propôs uma assembléia constituinte para uma nova constituição que controle o poder dos partidos. Mas a classe política se opôs. Apesar do apoio de Lula, inclusive o PT manobrou com o PMDB para bloquear qualquer reforma no Congresso. Com a copa e as eleições à vista, Rousseff deixou o tema de lado, ainda que recentemente, diante de suas dificuldades eleitorais, tenha ressuscitado a ideia de reforma política.

Acontece que, o que parecia uma eleição fácil se tornou incerta pelo surgimento da única líder política que apoiou o movimento e foi respeitada por ele. Marina Silva declarou em setembro de 2013 que os protestos constituíam “um movimento de beleza e majestade com o potencial de mudar o país”. E há dez dias insistiu: “não são os partidos ou líderes políticos que vão trazer a mudança. É o movimento que nos muda”. De fato, as pesquisas comprovam que sua popularidade atual está ligada ao apoio de quem concordava com o movimento e suas críticas à política tradicional. A personalidade e a biografia de Marina Silva (a quem conheci em Berkeley), junto à sua valentia em defensa de suas convicções, fascinaram o Brasil e o mundo, e poderão transformá-la na presidenta do Brasil em 26 de outubro. As pesquisas dão agora um empate com Rousseff. 
O simbolismo não poderia ser maior. Mulher, negra, nascida no estado amazônico do Acre, numa família de trabalhadores em um seringal, vivendo na extrema pobreza e gravemente doente em toda sua infância, ficou órfã aos 15 anos. Foi acolhida por irmãs católicas num convento onde aprendeu a ler e escrever e aos 16 anos trabalhou como empregada, mas estudou à noite e conseguiu o diploma de Historia. Ao lado de Chico Mendes organizou o sindicato dos trabalhadores da floresta, exemplo mundial de defesa simultânea dos direitos dos trabalhadores e do desenvolvimento sustentável. Chico Mendes foi assassinado por grileiros, mas seu legado levou à políticas de proteção da Amazônia, em cuja defesa o trabalho de Marina Silva como ministra do Meio Ambiente se destacou, no primeiro governo de Lula da Silva, em 2003.

Logo Marina Silva descobriu a dificuldade de enfrentar não somente o agronegócio, senão a ideologia desenvolvimentista da esquerda brasileira, de colocar o crescimento econômico a qualquer custo e por cima da conservação do meio ambiente e da qualidade de vida. Foi precisamente Dilma Rousseff, como ministra das Minas e Energia a que deu prioridade às políticas energéticas da Petrobrás, a gigante petroleira, sobre qualquer outra consideração. Desenvolvimento energético e produtivo para gerar recursos que permitiriam remediar a pobreza. Silva, vindo de onde veio, fez parte da luta contra a pobreza apoiando o programa bolsa família de Lula/Rousseff, que tirou 40 milhões dessa condição. Mas propôs conciliar valores diversos frente ao produtivismo unidimensional do Estado desenvolvimentista. Por isso, o que se enfrenta nesta eleição não são duas pessoas que se opõem, mas duas concepções de desenvolvimento.  

A defesa da sustentabilidade levou Silva a abandonar o governo e criar uma Rede de Sustentabilidade, com a qual obteve 19% dos votos, como candidata verde, nas eleições presidenciais de 2010. Em 2014 não pode superar entraves legais para registrar sua candidatura e se incorporou, como vice-presidenta, na candidatura do pequeno Partido Socialista Brasileiro, liderado por Eduardo Campos. Em 13 de agosto Campos morreu num acidente de avião. Silva o substituiu como candidata presidencial e rapidamente apareceu à frente nas pesquisas para segundo turno.

A campanha de Marina Silva reflete sua complexa biografia. Sua oposição ao estatismo do PT e à corrupção dos partidos, que sangra empresas públicas como a Petrobrás (obrigada a comissões de 3% dos contratos) a leva a propor a independência do Banco Central e uma economia menos condicionada pela política. Com isso conseguiu o apoio de instituições financeiras como o banco Santander. Ainda assim, Dilma recebeu cinco vezes mais em doações do que Marina. As convicções cristãs pentecostais de Silva lhe aportam o apoio dos evangélicos que são mais ou menos 22% da população. Coerente com sua fé, se opõe ao aborto  e ao matrimônio gay, mas defende a união civil, o que gera críticas. A campanha do PT contra ela está sendo feroz, mentindo sobre suas posições em várias questões de impacto social, segundo consegui me informar. 
Ocorre que o que esta em jogo é um modelo de desenvolvimento que serve ao Estado mais que à economia, e um tipo de política para benefício dos políticos, de esquerda ou direita. Demasiados interesses criados. Diante dessa máquina uma mulher que nunca renunciou aos seus princípios e que se conecta com um Brasil jovem que disse não nas ruas e agora tem a oportunidade nas urnas. Marina Silva é a esperança de um novo Brasil capaz de abrir vias inovadoras de vida e política, para além de ideologias obsoletas.  


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