Em entrevista ao Jornal Sul21, o presidente da FENAJ (Federação Nacional dos Jornalistas) Celso Schröder, fala sobre a CPI e salienta a necessidade do Marco Regulatório das Comunicações.
__________
por Samir Oliveira
"Os jornalistas não estão acima da lei e não podem estar acima dos princípios republicanos"
|
| Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21 |
Sul21 – O
que a CPI do Cachoeira pode nos dizer sobre a mídia brasileira?
Celso Schröder – A CPI está
nos mostrando que a mídia é uma instituição como qualquer outra e precisa estar
submetida a princípios públicos, na medida em que a matéria-prima do seu
trabalho é pública: a informação. Quanto menos pública essa instituição for e
mais submetida aos interesses privados dos seus gestores ela estiver, mais
comprometida ficará a natureza do jornalismo. Como qualquer instituição, a
mídia não está acima do bem e do mal, dos preceitos republicanos do Estado de
Direito e do interesse público. Do ponto de vista político, a Veja confundiu o
público com o privado. Do ponto de vista jornalístico, comete um pecado
inaceitável: estabelecer uma relação promíscua entre o jornalista e a fonte.
Não é só um repórter, mas é a organização, a chefia da empresa, que conduz e
encaminha uma atividade tecnicamente reprovável e eticamente inaceitável. Todo
jornalista sabe, desde o primeiro semestre da faculdade, que a fonte é um
elemento constituidor da notícia na medida em que ela for tratada como fonte. A
fonte tem interesses e, para que eles não contaminem a natureza da informação,
precisam ser filtrados pelo mediador, que é o jornalista. A fonte, ao mesmo
tempo em que dá credibilidade e constitui elemento de pluralidade na matéria,
por outro lado, se não for mediada e relativizada pelo jornalista, pode
contaminar o conteúdo.
Sul21 – Em
que pontos a relação entre Policarpo Júnior e Cachoeira extrapolaram uma
relação saudável entre repórter e fonte?
Schroder – Ele não tratou o Cachoeira como fonte.
O problema é um jornalista ou uma empresa jornalística atribuir a alguém uma
dimensão de fonte única, negociando com ela o conteúdo e a dimensão da matéria
e, principalmente, conduzindo a Veja para uma atuação de partido político. Esse
é um pecado que a Veja vem cometendo há algum tempo. A oposição no Brasil é
muito frágil. Por não existir uma oposição forte, a imprensa assume esse papel,
o que é uma distorção absoluta. A imprensa não tem que assumir essa função, a sociedade
não atribui a ela uma dimensão político-partidária, como a Veja se propõe. A
Veja acaba de nos produzir um dos piores momentos do jornalismo. Quando houve o
episódio da tentativa de invasão do apartamento do ex-ministro José Dirceu (PT)
por um repórter da Veja, eu escrevi um artigo dizendo que, assim como Watergate
tinha sido o grande momento do jornalismo no mundo, a atuação da Veja no quarto
de Dirceu foi um anti-Watergate. Mal sabia eu que teríamos um momento ainda
pior. Não foi a ação individual de um repórter sem capacidade de avaliação. Foi uma ação premeditada e sistêmica de uma empresa de comunicação, de
um chefe que conduzia seu repórter para uma ação imoral, tangenciando
perigosamente a ilegalidade.
Sul21 – O
mesmo pode ser dito para o episódio recente entre Policarpo Júnior e Cachoeira?
Schröder - Neste momento, isso se consolida. É uma revista que coloca em jogo
a matéria-prima básica da sua existência: a credibilidade. Parece-me um
suicídio, inclusive do ponto de vista de um negócio jornalístico. A não ser que
a Veja esteja contando com um outro tipo de financiamento, ou já esteja sendo
subsidiada por outro mecanismo que não seja decorrente da credibilidade e da
inserção no público. Não temos dados concretos sobre isso, mas tudo leva a crer
que, nesse momento, o financiamento da Veja esteja se dando por outro caminho.
O comprometimento e o alinhamento inescrupuloso da revista a uma determinada
visão de mundo conduz à ideia de que a Veja possa ter aberto mão de ser um
veículo de comunicação para ser um instrumento político com financiamento deste
campo.
Sul21 – Mas
a revista já passou por períodos em que era mais comprometida com o jornalismo.
Como ocorreu essa mudança?
Schroder – Não é de agora que a Veja vem dando
indícios de que abre mão de um papel de referência jornalística. A Veja foi
fundamental para a redemocratização do país, foi referência para jornalistas de
várias gerações e teve em sua direção homens como Mino Carta e Alberto Dines.
Depois de um certo tempo, a revista começa a alinhar-se a um determinado grupo
social brasileiro. É claro que os editores da revista têm opiniões e cumprem um
papel conservador no país. Tudo bem que isso aconteça nas dimensões editoriais.
Agora, que se reserve ao jornalismo informativo um espaço de discussão com
contrapontos. Princípios elementares do jornalismo foram sendo abandonados e
essa revista, que foi importante para a democracia e para o jornalismo, passa a
ser um exemplo ruim que precisa ser enfrentado.
Sul21 –
Como o senhor vê a possibilidade de Policarpo Júnior ser convocado para depor
na CPI?
Schroder – Tenho visto declarações de alguns
políticos, como da senadora Ana Amélia Lemos (PP-RS), que diz que o
envolvimento do Policarpo nisso representa um ataque à imprensa. Os jornalistas
não estão acima da lei e não podem estar acima dos princípios republicanos. Se
ele for convocado pela CPI, tem o direito de não ir. Se ele for, tem o direito
de exercer a prerrogativa do sigilo de fonte. Mas a convocação não representa
uma ameaça. A Veja tem que dar explicações ao Brasil. É preciso explicar como
ela exerce a atividade jornalística com essas veleidades, com descompromisso e
irresponsabilidade em relação a princípios éticos e técnicos consagrados pelo
jornalismo. Questionar isso é fundamental. Os jornalistas e a academia têm
obrigação de fazer esse questionamento.
Sul21 –
Nesse sentido, não seria válido também convocar o presidente do Grupo Abril,
Roberto Civita?
Schroder – Parece que seria deslocar o problema. Na CPI, a Veja é um dos pontos. O
problema é a corrupção entre o Cachoeira e o Parlamento brasileiro. Um depoimento
do Civita geraria um debate que desviaria os trabalhos da CPI. Não há dúvida de
que a Veja praticou um mal jornalismo e deve prestar contas. A CPI tem
gravações de integrantes da revista com o bicheiro. Que eles sejam convocados,
então. Não é pouca coisa trazer o chefe da sucursal da Veja em Brasília para
depor.
Sul21 – As
críticas à Veja costumam ser rebatidas com argumentos que valorizam o trabalho
supostamente investigativo feito pela revista, com diversas denúncias de
corrupção. Entretanto, as gravações entre Policarpo e Cachoeira revelam como
funcionava a engenharia que movia algumas dessas denúncias.
Schroder – Há uma certa sensação de que estamos
vivendo um momento de corrupção absoluta no país. E isso está longe de ser
verdade. Basta olhar a história e ver que agora temos instituições democráticas
funcionando. A imprensa cumpre um papel democrático e fiscalizador importante
com a denúncia. O problema é que alguns setores, ao fazerem denúncias, atribuem
um papel absoluto à ideia da corrupção. No caso da Veja, o pior de tudo é que a
própria revista estava envolvida. Não é só um mau jornalismo sendo praticado.
Há indícios perigosos de uma locupletação – que não precisa ser necessariamente
financeira. Pode ser uma troca de favores, onde o que a Veja ganhou foi a
constituição de argumentos para uma atuação política, não jornalística. Como se
fosse o partido político que a oposição não consegue ser. Se a imprensa se
propõe a esse tipo de coisa, volta a um patamar de atuação do século XVIII.
Se é para ser assim, que a revista mude de nome e assuma o alinhamento a
determinado partido. Agora, ao se apresentar como um espaço informativo, a Veja
precisa refletir a complexidade do espaço político brasileiro. Se ela não faz
isso, está comprometendo o jornalismo e tangenciando uma possibilidade de
ilegalidade que, se houver, precisa ser esclarecida. A Fenaj não vai proteger
jornalistas criminosos.
Sul21 – A
revelação desse modus-operandi da Veja está gerando uma discussão quase inédita
no país: a mídia está debatendo a mídia. A revista Carta Capital tem dedicado
diversas capas ao tema e a Record já fez uma reportagem sobre o assunto. É um
fenômeno comum em outros países, mas até então não ocorria no Brasil.
Schroder – Nos anos 1980, quando a Fenaj propôs
uma linha para a democratização da comunicação, partimos da compreensão de que
a democratização do país não havia conseguido chegar à mídia. O sistema
midiático brasileiro, ao contrário de todas as outras instituições, não havia
sido democratizado. Temos cinco artigos da Constituição nessa área que não
estão regulamentados. Durante 30 anos tivemos diversas iniciativas de tentar
construir esse debate. A lógica da regulamentação existe em todos os
países do mundo. Mas, no Brasil, isso enfrenta resistências de uma mídia
poderosa, que fez os dois primeiros presidentes da República após a
democratização. Sarney e Collor são dois políticos que saíram dos quadros da
Rede Globo. Na presidência do Congresso tivemos outros afilhados da Rede Globo,
como Antonio Carlos Magalhães, que também foi ministro das Comunicações. A
mídia não só está concentrada, no sentido de ter monopólios, como está
desprovida de qualquer controle público. Está absolutamente entregue à ideia de
que a liberdade de expressão é a liberdade de expressão dos donos da mídia.
Enquanto que o preceito constitucional diz que a liberdade de expressão é do
povo, e o papel da mídia é assegurar isso.
Sul21 –
Quanto se conseguiu avançar nesse debate desde então?
Schroder – Estamos há 30 anos pautando esse debate até chegarmos a
Confecom (Conferência Nacional de Comunicação, realizada em dezembro de 2009).
A Fenaj consegue constituir a ideia de que esse debate precisa ser público, já
que ele é omitido pela mídia, que atribui à essa discussão uma tentativa de
censura. A Confecom, no início, teve a anuência das empresas. Eu fui junto com
os representantes da RBS e da Globo aos ministros Helio Costa (Comunicações),
Tarso Genro (Justiça) e Luiz Dulci (Secretaria-Geral da
Presidência) propor a conferência. As empresas compreendiam que, naquele
momento, a telefonia estava chegando e ameaçava um modelo de negócios. Mas,
durante a Confecom, a Rede Globo e todos os seus aliados se retiraram, tentando
sabotar mais uma vez o debate. O espírito conservador está no DNA da Rede
Globo. Ela acostumou-se à ideia de que para o seu negócio não deve existir
nenhuma regra. Acostumou-se a impor seus interesses ao país e, portanto, é
ontológicamente contra qualquer regra. Naquele momento em que a Globo se
retirou da Confecom ficou claro que não é possível contar com esses empresários
para qualquer tipo de tentativa de atribuir à comunicação no Brasil uma
dimensão pública, humana e nacional, regida por princípios culturais,
democráticos e educacionais, não simplesmente pelo lucro fácil e rápido.
Sul21 – O
editorial do jornal O Globo defendendo a revista Veja é um indício de que há um
corporativismo muito grande entre os donos da mídia tradicional?
Schroder – O princípio que os une é aquele
verbalizado pela Sociedade Interamericana de Imprensa: Lei melhor é lei
nenhuma. As empresas alinhadas à ideia de que não podem estar submetidas à lei
protegem-se. Abrigadas no manto de uma liberdade de expressão apropriada por
elas, protegem seus interesses e seus negócios, atuando de uma maneira
corporativa e antipública. O jornalismo é fruto de uma atividade
profissional, não é fruto de um negócio. Jornalismo não é venda de anúncios.
Jornalismo é, essencialmente, o resultado do trabalho dos jornalistas.
Portanto, a obrigação dos jornalistas é denunciar sempre que o jornalismo for
maculado, como ocorreu com a Veja. Seria, também, uma obrigação das empresas
jornalísticas, na medida em que elas não estejam envolvidas com esse tipo de
prática. Ao tornarem-se cúmplice e acobertarem esse tipo de prática, as
empresas aliam-se a elas. Essas empresas disputam o mercado, mas protegem-se no
que consideram essencial, no sentido de inviabilizar a ideia de que exercem uma
atividade submetida aos interesses públicos, como qualquer outra.
_________
Sugerimos também a leitura de
Parlamentares da CPMI estão cautelosos quanto à convocação da mídia