24 março, 2013

As nossas cidades, hoje?

Favela do Moinho - SP. Foto: Isadora Pamplona

por: Willian Fagiolo

Nós não queremos "uma boa cidade no futuro". Cidade boa queremos agora para que no futuro nossos descendentes se orgulhem disso!

Como arquiteto e urbanista, especializei-me em políticas públicas e ainda continuo motivado a debater os destinos de nossas cidades levantando assuntos de muita importância e interesse. Por incrível que pareça muitas vezes nossas cidades são abordadas com indiferença e até mesmo com certa crueldade por alguns de seus administradores, que lhes causam uma epidemia de maus-tratos. Se ainda, atualmente, muitos não sabem o que fazer com as cidades brasileiras, possivelmente isto vem do fato de que o planejamento urbano de há muito não é entregue a estudiosos das cidades. Digo sempre que o importante é, antes de tudo, olhar as cidades como objeto de análise. Na área de planejamento urbano, no planejamento das cidades em geral, há um conjunto de preconceitos que nos impedem de pensar. Nos países com IDH elevado sempre houve respeito pelos que pensam! Grandes estudos minuciosos de destino de cidades como Oslo, Viena, Zurique, Genebra, Vancouver, Londres, como Paris, como Berlin, Atlanta, Nova York etc., sempre foram feitos. Se há contradições, não só o futuro é a escolha de caminhos para enfrentá-las, mas agora se trata mesmo é do presente. Seguinte, curto e grosso: Nós não queremos "uma boa cidade no futuro". Cidade boa queremos agora para que no futuro nossos descendentes se orgulhem disso!


Como mudar nossas cidades?


No início do século 20, os povos viam nas cidades a oportunidade de serem felizes. A maioria delas, entretanto, guardava um cunho desolador, com ruas estreitas, vielas sujíssimas, becos onde se avolumava lixo, panorama este que já denotava a falta de um planejamento urbano e o descaso para com o saneamento básico, a saúde pública.

Por volta de 1850, o mundo não conhecia, ainda, os micróbios. Sem antibióticos, e sem medidas de higiene, a população das cidades estava à mercê de epidemias como peste bubônica, varíola, febre amarela, sífilis, tuberculose, etc.

No Brasil, naquela época, só no Rio de Janeiro, antiga capital federal, 6.500 pessoas morreram de febre amarela.

Metade do crescimento das cidades é proporcionado pelo fluxo migratório, na sua maioria composto de pessoas pobres que não têm dinheiro para comprar ou alugar uma casa. O resultado uma explosão de cortiços e favelas, é a formação de cidades sem ter vida urbana digna desse nome. A cidade humana é aquela em que o habitante passa a ter direitos à justiça social, à cidadania. A definição clássica de cida­dania é aquela em que o interesse priva­do, o raciocínio individual, de al­guma forma, deve render-se ao bem estar coletivo. O balanço entre vontade geral e vontade particular é, desde o sé­culo 18, o fundamento da vida política, da vida urbana. Nas cidades, muitas vezes, pobreza e luxo são como o cinzel que esculpe a desfiguração de seus contornos urbanos expondo a degradação das comunidades, a debilidade do Estado e a falência de políticas sociais.

A febre amarela, cólera, varíola e a peste bubônica foi o alto preço que cidades, como Rio de Janeiro e São Paulo, pagaram por um crescimento desordenado a partir da segunda metade do século 19. A princípio, tentou-se minimizar o problema, mas quando as epidemias começaram a rondar as classes abastadas, a questão ganhou foros de escândalo. Como as famílias de posse começaram a abandonar as cidades, o governo tomou a si a tarefa de torná-las habitáveis. A necessidade de uma ação sanitarista e de saúde pública empreendida por médicos e engenheiros, no começo do século 20, provocou, em algumas cidades brasileiras, uma intervenção e remodelação urbanas, como alargamento das ruas mais movimentadas, destruição de cortiços, limpeza de quintais, elaboração de um código sanitário, etc. Assim, em curto prazo, desapareceram os ratos e as epidemias.

Dentro de toda cidade rica há uma cidade pobre em seu interior e vice-versa. Isto faz, cada vez mais, a população ficar dependente e aprisionada pelos espaços privados. Os interesses privados tomam o lugar dos interesses públicos. O espaço público e a coletividade tornam-se pra­ticamente desconhecidos, dissociados. Antigamente as pessoas moravam e trabalhavam no mesmo lugar. Nenhum bairro tinha o rótulo de uma classe social particular. A população se misturava, mais ou menos harmoniosamente, provocando uma interferência maior entre as diferentes atividades dos habitantes. A cidade formava o pequeno mundo que continha todas as funções da vida humana e social. Após o fim da 2ª guerra mundial, as atividades industriais e as classes populares são empurradas para fora, para a periferia. Os centros das cidades perdem suas funções de produção, suas oficinas. Ao mesmo tempo, ocorre a substituição do modelo agrícola pelo modelo industrial, acentuando ainda mais a desorganização das cidades. Aprofunda-se a luta contra a exclusão social em favor da coesão ampliando o conhecimento das dinâmicas sociais, territoriais e do governo da cidade.


Ainda hoje???


Nossas cidades estão com agenda no século 20! Várias no período paleolítico (fazendo justiça)! Na cidade moderna, século 20, é no espaço mal planejado onde as contradições e o caos se realizam, restando muito pouco (pelo atraso e ignorância) à arquitetura. Brasil necessita urgente de Urbanismo Corretivo, de modo a corrigir os erros cometidos e preparar as cidades para as necessidades imediatas. A erosão permanente da urbanidade instalou-se pela incapacidade do poder público de entender o papel contemporâneo das cidades. A questão torna-se mais desastrosa pela incapacidade dos governantes em deixar arquitetos exporem qualquer convicção sobre a organização da vida nas cidades! Cidades mal planejadas e administradas nas coxas fazem mal a saúde e podem matar! “Pragmáticos”, praga que domina o país, governantes se distanciaram da Utopia e fizeram da Distopia um mantra! Distopia é igual a: cidades genéricas, cidades mortas, desastres ambientais, tragédias humanas irreparáveis.

Uma cidade se muda por projetos porque a forma e as dimensões das cidades mudam e se transformam fisicamente, revelando mudanças demográficas, culturais, econômicas, tecnológicas, sociológicas, geológicas etc. Capturar e entender as mudanças morfológicas das cidades nos ajuda a entender outros parâmetros das transformações. Para isso, podemos utilizar os desenhos – no sentido de representação gráfica – ou os desenhos – no sentido de projetos – das cidades. Não prevemos o futuro! Esse método possibilita que os governantes se preparem para cada um dos "cenários" imaginados. Cenários são “visões do futuro”, e não previsões. Isso já será suficiente para que o administrador público consiga responder com mais rapidez diante das eventuais acusações de inércia e desgoverno, não deixando, portanto, que a improvisação lhe diga o que fazer, o que, digamos, é o que ocorre!

Para agravar, estamos assistindo, perplexos, a uma crise crescente que se expressa no aumento da violência, na permanente privatização do espaço público, no domínio do narcotráfico, na falta de regulação da vida nas cidades.

Mas, como saber se nossas cidades caminham no passo certo, se vivemos com qualidade de vida elevada, ou não?

Além do IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) há outro índice que também avalia as condições de vida da população. É o Índice de Condições de Vida (ICV) que também utiliza o município como unidade geográfica de referência, mas engloba um número maior de dimensões e indicadores básicos em sua constituição. Leva-se muito em conta se a cidade possui um sistema de transporte público eficiente, se há escolas de qualidade, hospitais e postos de saúde suficientes para atender toda a população. Áreas de lazer, saneamento básico e baixos índices de violência também contam pontos, assim como quantidade de teatros e cinemas disponíveis.

O ICV tem um número maior de dimensões, as quais, por sua vez, reúnem um conjunto de dezoito indicadores. Esses indicadores utilizados para a construção do ICV foram agregados em 5 grupos, de modo a retratar 5 diferentes dimensões das condições de vida: renda, educação, infância, longevidade e habitação, sendo que com este último procura-se descrever as condições de moradia através da aferição da parcela que vive em domicílios com abastecimento adequado de água tratada e com instalações adequadas de esgoto, dentre outros aspectos. Da mesma forma que o IDH, o ICV situa-se entre os valores de 0 e 1, e é considerado baixo quando for menor que 0.5, médio quando estiver entre 0.5 e 0.8, e alto quando for superior a 0.8 .

Como pode ser observado, o ICV é o índice mais apropriado para aferir a qualidade de vida associada aos serviços de saneamento básico, na medida em que leva em conta a dimensão habitação e esta, por sua vez, os indicadores relativos a domicílios com abastecimento adequado de água e com instalações adequadas de esgoto sanitário.

Os municípios que apresentam IDH alto também apresentam ICV alto, o que mostra que os dois índices são bastante próximos, apesar deste último ser mais completo.

A carência de redes de esgoto e de fossas sépticas, que caracteriza a expressiva maioria dos municípios brasileiros, mostra também a relação direta que existe entre o saneamento básico e o nível de desenvolvimento do município, na medida em que os municípios com maior ICV sempre apresentam maiores coberturas com redes de esgoto ou fossas sépticas. Essas informações demonstram que a ocorrência de boas condições de vida e elevado nível de desenvolvimento humano estão diretamente relacionados com a existência de sistemas de esgotamento sanitário e seu devido tratamento.

Um município com um ICV elevado é aquele que está continuamente criando e melhorando o seu ambiente físico e social, com a expansão dos recursos da comunidade que tornam as pessoas capazes de mutuamente se ajudarem na busca de melhorias de vida no seu máximo potencial, não só no sentido de mantê-las, mas, também de melhorá-las.

Para melhorarmos nossas cidades, antes temos que pensá-las criteriosamente para, só assim, atingirmos um ICV bastante elevado.


As metas serão:


> Geração de empregos de forma permanente;

> Crescimento da renda continuadamente;

> Água tratada e esgoto sanitário em todas as casas e posterior tratamento;

> Educação de qualidade e saúde de qualidade acessível a todos;

> Esporte e lazer acessíveis a jovens, adultos e idosos;

> Segurança pública garantida;

> Moradia de qualidade facilitada;

> Transporte público de qualidade eficiente;

> Meio ambiente conservado e respeitado;

> Abordagem exemplar na elaboração do Planejamento e Urbanização;

> Abordagem exemplar da problemática da higiene pública (esgoto, água e resíduos sólidos);

> Abordagem exemplar no licenciamento de atividades comerciais e industriais, tanto Urbanas quanto Rurais;

> Abordagem exemplar na política de equipamentos sociais;

> Abordagem exemplar na relação com os movimentos associativos;

> Abordagem exemplar no trabalho com as escolas;

> Abordagem exemplar ao ordenamento do trânsito e no transporte coletivo;

> Abordagem exemplar no modo de relacionamento dos serviços municipais com os Munícipes.

> Coleta, disposição e reciclagem do lixo.


O esgoto não coletado contamina os corpos d’água e o solo, criando um ambiente propício à propagação de microrganismos patogênicos, os quais, por sua vez, contaminam o córrego de onde a água para consumo na residência é captada.

A implantação de sistemas de coleta, tratamento e disposição adequada do esgoto sanitário criam as condições necessárias para que as empresas instaladas no município possam exportar seus produtos para mercados internacionais sem precisar enfrentar as barreiras não tarifárias relacionadas à qualidade de vida no local em que as fábricas estejam instaladas. As barreiras não tarifárias são aquelas que impedem a entrada de um produto no mercado de um país em decorrência da falta de atendimento a determinados critérios relacionados às suas características ou às do seu processo de produção.

De uma forma cada vez mais frequente, os países desenvolvidos exigem que as empresas que exportam para os seus mercados proporcionem condições de vida adequadas para os seus funcionários, assim como para as comunidades do entorno das suas fábricas. Entretanto, não há como oferecer tais condições se esses funcionários residirem em cidades ou bairros onde não haja sistemas de coleta, tratamento e disposição adequada do esgoto sanitário. Nesse mesmo sentido, os mercados internacionais estão cada vez mais exigentes quanto à maneira como as empresas desenvolvem os processos produtivos. Essa exigência se traduz na crescente necessidade de adequação às normas internacionais conhecidas como ISO 14000. Estas normas referem-se basicamente ao “sistema de gerenciamento ambiental”, ou seja, ao que é feito pelas empresas para minimizar eventuais efeitos negativos sobre o meio ambiente, causados pelas suas atividades.

Em um futuro muito próximo, dificilmente as empresas que não apresentarem conformidade com as normas ISO 14000 poderão colocar seus produtos nos principais mercados internacionais e mesmo no mercado interno.

Entretanto, é praticamente impossível que uma empresa situada num município onde não haja um sistema abrangente de coleta, tratamento e disposição final do esgoto sanitário possa receber a certificação ISO 14000. Mesmo quando essa empresa dispuser de um sistema individual de coleta do seu esgoto industrial, ela poderá enfrentar muitas dificuldades para dar-lhe tratamento e disposição final adequada. Da mesma forma, ela poderá ser responsabilizada por, indiretamente, estar atraindo para o entorno das suas fábricas populações que agravarão os problemas ambientais causados pela ausência de sistemas de esgoto sanitário.

Portanto, os municípios que dispuserem de sistemas de coleta, tratamento e disposição final do esgoto sanitário estarão livrando os produtos das suas empresas de barreiras não tarifárias, facilitando assim o caminho para que essas empresas possam acessar mercados externos ou expandir as suas exportações. Estarão também, é claro, atraindo novas empresas interessadas em ambientes adequados para a instalação de avançadas plantas industriais.

Um dos efeitos mais visíveis dos investimentos em esgoto sanitário é a eliminação da poluição estética que é característica de locais onde os esgotos correm a céu aberto e são despejados em rios, lagoas ou simplesmente no solo.

Nada mais agradável para um cidadão do que visualizar a sua rua ou o seu bairro sem a sujeira que caracteriza a falta de esgotos. Da mesma forma, nada tão aprazível do que observar os rios e as lagoas sem os dejetos trazidos pelos esgotos.

Muitos municípios estão deixando de gerar empregos e arrecadar valiosos tributos por causa da poluição estética causada pela falta de esgoto sanitário e a consequente “repulsa” que essa realidade provoca em turistas potenciais. É amplamente sabido que a limpeza é um dos principais aspectos observados por qualquer turista quando visita uma cidade, e que, quando ele se depara com sujeira, logo se apressa a ir embora para nunca mais voltar.

Por essa razão, investimento em esgoto sanitário é sinônimo de desenvolvimento do potencial turístico do município.

Governantes incompetentes não podem mais evidenciar a pobreza da população com teorias e desculpas conhecidas. Não podemos ser taxados de mercadores da necessidade dos menos favorecidos. Somos edificadores de projetos sociais, ambientais e culturais. Pobreza social, cultural, ambiental e trabalho criativo não são estigmas de privilégios. Pobreza não é sinônimo de sujeira e violência. Tudo faz sentido quando a necessidade bate às portas de alguém. Não queremos edificar essas portas. As respostas a um futuro muito próximo e às dificuldades em nossas cidades poderão ser solucionadas em vários projetos. Em tempo, o "Estatuto da Cidade" e "Planos Diretores" precisam ser submetidos a uma rigorosa Gluteoplastia de urgência.

Qual o fator essencial para o sucesso econômico de uma cidade no século 21? A capacidade de atrair talentos, de se reinventar e inovar. O que construímos e habitamos é político e ideológico. Existe, sim senhores, uma ideologia do espaço. Se inteligente a cidade, assim o será.

20 março, 2013

Governo prepara nova privatização das telecomunicações

do Viomundo

Ilustração do Valter Pomar, no Facebook/ Viomundo 
A história nos prega peças. O Ministro das Comunicações do Governo Dilma, ligado ao Partido dos Trabalhadores, cogita a possibilidade de doar bilhões em bens considerados públicos às teles em troca de investimentos em redes de fibra óptica das próprias empresas. A infraestrutura essencial para os serviços de telecomunicações, minimamente preservada na privatização de FHC, será entregue às mesmas operadoras para que estas façam aquilo que deveria ser obrigação da prestação do serviço.

Quando o Sistema Telebras foi vendido em 1998, a telefonia fixa passou a ser prestada por concessionárias. Essas empresas receberam da estatal toda a infraestrutura necessária à operação do serviço, a qual foi comprada por alguns bilhões de reais. Definiu-se um prazo para as concessões e os bens a ela relacionados foram regulados como reversíveis, isto é, devem voltar à União ao final dos contratos de concessão para nova licitação. São bens submetidos ao interesse público, que retornam à posse do Poder Público para que, terminada a concessão, a União defina com quem e como deve se dar continuidade à prestação, já que é ela a responsável pelo serviço de acordo com a Constituição Federal.

Esse modelo de concessão foi adotado em razão de uma escolha crucial do Governo FHC, a aplicação de regime jurídico ao serviço de telefonia fixa condizente com sua essencialidade – o regime público. Ele permite ao Estado exigir metas de universalização e modicidade tarifária das empresas concessionárias, além de regular as redes do serviço como reversíveis.

Antes da privatização, de 1995 a 1998, foram investidos bilhões de recursos públicos para preparar as empresas para os leilões. A planta da telefonia fixa quase dobrou. Posteriormente à venda, as redes reversíveis se desenvolveram para cumprir metas de universalização previstas nos contratos de concessão a serem concluídas até 2005. A ampliação da cobertura foi viabilizada pela tarifa da assinatura básica, reajustada durante muitos anos acima da inflação e até hoje com valor injustificadamente elevado.

Além desse incremento dos bens da concessão, a infraestrutura da telefonia fixa se tornou suporte fundamental para a oferta de acesso à banda larga no país. Mesmo as redes que eventualmente não tenham relação direta com o telefone, apresentam ligação financeira com ele. Afinal, também durante anos, e ainda hoje, houve subsídio cruzado ilegal da concessão às redes privadas de acesso à Internet. A telefonia que deveria ter tarifas menores passou a se constituir na garantidora da expansão da banda larga conforme critérios de mercado e de interesse econômico das operadoras.

Assim, a medida cogitada pelo Ministro Paulo Bernardo aponta ao menos dois graves problemas. Primeiro, ela significa a transferência definitiva ao patrimônio das teles de bilhões em bens que constitucional e legalmente deveriam retornar à União, pedindo em troca que essas empresas invistam em si mesmas, ou seja, em redes que serão para sempre delas. Segundo, a doação bilionária envolveria grande parte da espinha dorsal das redes de banda larga no país, enfraquecendo ainda mais o Estado na condução de políticas digitais. Como se não bastasse, essa medida significaria o suspiro final do regime público nas telecomunicações, com a prestação da telefonia fixa passando exclusivamente ao regime privado.

Diante do desafio de especificar quanto das redes atuais de telecomunicações são ligadas à telefonia fixa ou resultado de suas tarifas, o arranjo em avaliação sem dúvida simplifica o processo em favor das operadoras. Não só isso, minimiza as vergonhosas consequências de até agora já ter sido vendido um número considerável de bens reversíveis sem autorização ou conhecimento da Anatel, que deveria tê-los controlado desde as licitações, mas não o fez efetivamente.

Se aprovada tal proposta, o nosso saldo será a privatização do que resta de público nas telecomunicações e o profundo desprezo pelo caráter estratégico da infraestrutura de um serviço essencial como a banda larga. Estaremos diante do desrespeito violento à determinação constitucional de que a União é a responsável pelos serviços de telecomunicações, na medida em que perderá o direito de interferir na gestão de redes que passarão a ser exclusivamente privadas.

A justificativa ensaiada para essa operação é a de que, por um lado, os bens da concessão estão se desvalorizando e, por outro, de que é preciso disseminar fibra óptica pelo país e não há como obrigar as empresas a investirem onde não existe interesse econômico. Porém, o que o Governo quer é encontrar novo subterfúgio para não enfrentar sua falha central nesse campo: o não reconhecimento da banda larga como serviço essencial.

A necessária tarefa de levar banda larga e redes de fibra óptica a todo o Brasil poderia ser realizada sem a transferência de bens de interesse público à iniciativa privada se o Governo garantisse a prestação da banda larga também em regime público. Como visto, esse regime confere ao Estado maiores prerrogativas para exigir o cumprimento de obrigações por parte das empresas. Paralelamente, o modelo regulatório atualmente desenhado prevê mecanismos públicos de subsídio para parte dos investimentos impostos.

O principal deles é o Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (FUST), com recursos constantemente contingenciados pelo Governo Federal. De acordo com a lei que o instituiu, o FUST só pode ser utilizado para o cumprimento de metas de universalização, obrigação que se refere apenas a serviços prestados em regime público. Nesse caso, o financiamento público para a ampliação das redes das operadoras se justifica pelos seguintes motivos: (i) o dinheiro se destina somente à parte dos investimentos que não pode ser recuperada com a exploração do serviço; (ii) os valores das tarifas são controlados para que o serviço seja acessível à população, contemplando-se também acessos gratuitos; e (iii) a rede construída não é patrimônio definitivo das operadora, pois sua posse volta à União ao final da concessão. Com tais garantias, outros subsídios poderiam ser estudados e aplicados sem significar favorecimento das teles.

Entretanto, o Governo mantém a prestação da banda larga exclusivamente em regime privado, criando alternativas ilegais e bastante complicadas para lidar com a demanda de ampliar as conexões à Internet no país e, ao mesmo tempo, evitar o enfrentamento com os poderosos interesses privados. Ao invés de submeter as grandes empresas do setor às obrigações do regime público, opta pela frouxa negociação da oferta de planos de banda larga popular, por empréstimos pouco transparentes do BNDES, pela desoneração de tributos na ordem de 6 bilhões de reais para a construção de redes privadas, pela defesa da utilização do FUST também em regime privado e, agora, considera admissível a doação às teles dos bens que restaram da privatização para que elas invistam em redes próprias, não reversíveis.

Nunca antes na história desse país se tratou com tamanha leviandade serviços essenciais e redes estratégicas!

Assinam, entre outras entidades, as seguintes:

Idec – Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor
Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé
INTERVOZES – Coletivo Brasil de Comunicação Social
PROTESTE – Associação Brasileira de Defesa do Consumidor
ABRAÇO – Associação Nacional das Rádios Comunitárias
ARTIGO 19
Instituto Bem Estar Brasil
Instituto Telecom
Clube de Engenharia do Rio de Janeiro
Fittel – Federação Interestadual dos Trabalhadores em Telecomunicações
FNDC – Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação

Para conhecer a lista completa das entidades que participam da Campanha Banda Larga, Um Direito Seu, clique aqui
__________
Leia também:

Para ministro das Comunicações, PT mistura lei da mídia com investimento


Memorial Euclides da Cunha


Ponte Euclides da Cunha sobre o Rio Pardo

por Willian Fagiolo*

UMA CIDADE SE MUDA POR PROJETOS!

Eis o mantra!

Tenho batalhado para que minha experiência, através da participação em gestões públicas, conjuntamente com a comunidade, não se limite às formulações teóricas e acadêmicas, em si importantes.

Aprendi que conceitos de planejamento e projetos, sempre pragmáticos, devem necessariamente associar a visão de longo prazo, com suas diretrizes, à ação de curto prazo, através de ações estratégicas. Brinco ao dizer que se trata do fazejamento estratégico.

A experiência em planejamento, continuamente participativo, o envolvimento e o compromisso, uma visão teórica acompanhada de ciência, tecnologia e humanismo, critérios do século XXI, levam-me a propor uma nova metodologia de elaboração de planos estratégicos e ação, como uma tarefa a ser desenvolvida mediante a construção de redes proativas de pessoas e entidades interessadas em determinada tarefa. Tal procedimento tem se provado útil por ser altamente mobilizador e sinérgico, diminuindo prazos, corrigindo erros durante o processo de elaboração, garantindo a eficácia dos produtos finais. Lembro-me de uma grata conversa com o brilhante Paulo Gaudêncio em 1991 sobre participação e compromisso. O bife a cavalo, disse-me ele, é o exemplo perfeito. A galinha participa com o ovo. O boi se compromete com a carne!

O compromisso de todos será imprescindível, se quisermos mudar alguma coisa.

Ainda não desisti. Gosto muito daquele provérbio oriental que diz o seguinte: “Não sabendo que era impossível, ele foi lá e fez”.

Desta forma, penso desenvolver as tarefas aqui propostas, ainda de modo preliminar, em conjunto com os mais importantes protagonistas da cidade natal, criando oficinas de discussão dos temas a serem tecnicamente preparados. A partir destas oficinas de debate será fácil distinguir quais serão os outros temas mobilizadores, incluindo-os entre os programas a serem desenvolvidos, garantindo a manutenção do interesse local. Por outro lado, reitero, tenho convicção de que com planejamento, estratégias e projetos especiais, voltados para o desenvolvimento de nossa cidade, conseguiremos o apoio de autoridades, empresários e empresas, órgãos internacionais (bancos multilaterais, Banco Mundial, BIRD, e Banco Interamericano de Desenvolvimento, BID, organismos e programas do sistema Nações Unidas, Habitat, programas “Cities Alliance”, “Healthy Citites”, PNUD, UNESCO, programas europeus de colaboração, através das várias Redes Mundiais de Cidades).


SÃO JOSÉ DO RIO PARDO


Um enfoque Estratégico, Sistêmico, Holístico e Sustentável para a Requalificação Urbana e Rural do Município


Para acompanharmos o que ocorre no planeta, precisamos enfrentar os desafios através de “UMA NOVA POLÍTICA DE CIDADE”.

Isso compreende um conjunto integrado de políticas que vão desde a habitação, o trânsito, o transporte público, o urbanismo de terceira geração e o novo ordenamento do território urbano, passando pelas políticas de ataque às "chagas sociais", características, sobretudo, das grandes áreas metropolitanas (desemprego, droga, favelas, violência urbana etc.) e que começam a atingir, de forma indiscriminada, todas as cidades brasileiras.

Na época em que as cidades e os países se integram cada vez mais numa Sociedade da Informação e numa Economia Globalizada, é necessário distinguir claramente, entre as cidades que participam (ou procuram participar) da Rede de Fluxos Globalizantes, e as cidades que estão à margem desta rede. Normalmente, ocupam a primeira posição estratégica as grandes cidades e áreas metropolitanas mais as cidades médias com vocação internacional. Ocupam a segunda posição estratégica as cidades pequenas e médias que vivem voltadas, fundamentalmente, para o respectivo mercado local, regional e nacional. O interessante é que esta altercação de posições estratégicas não resulta numa diferenciação qualitativa entre a política para as cidades "globalizadas" e a política para as cidades "não globalizadas".

No mundo globalizado, tamanho não é documento em se falando de Estratégias de Destino de Cidades. A globalização fez bem ao urbanismo e à arquitetura das cidades, se observarmos certos procedimentos, é claro.

Há um vasto movimento de afirmação estratégica das cidades, em curso em escala mundial, com particular relevo para as grandes cidades da tríade EUA, União Europeia e Japão, incluindo os Tigres Asiáticos. Agora, este movimento já chegou às cidades da América Latina (MERCOSUL), da Índia e China e, por fim, da África do Sul. É irreversível.

Em alguns casos, a realização de um evento internacional do tipo Jogos Olímpicos, Copa do Mundo de Futebol, Exposição Internacional etc., constitui-se, sem dúvida, na oportunidade mobilizadora para definir o Projeto de Cidade e pôr em marcha os respectivos planos e estratégias. São por demais conhecidos os casos exemplares dos Jogos Olímpicos de Barcelona, de Atlanta, EUA, e a EXPO’98 em Lisboa, Fórum Barcelona 2004. Neste contexto, O Marketing Público de Cidades, enquanto um dos principais instrumentos para alavancar diversos processos de promoção urbana, vem adquirindo cada vez mais centralidade no conjunto destas novas políticas.

A fortíssima concorrência mundial não existe apenas entre as empresas e os países. Existe, também, entre as grandes cidades e regiões do mundo. Entretanto, hoje é muito raro haver empresas e agentes econômicos, com posições liderantes nos mercados internacionais, que estejam sediados em cidades e regiões atrasadas, do ponto de vista econômico, social e ambiental. E isto porque os fatores que mais contam para o sucesso e a posição liderante dessas empresas são os fatores dinâmicos da competitividade, ou seja:

- A qualidade técnica e educacional dos recursos humanos;

- O nível de investimento na investigação científica e tecnológica;

- A eficácia organizativa das empresas e seus fornecedores diretos, bem como das instituições de apoio;

- A qualidade de vida das regiões circundantes e o nível de exigência da "clientela doméstica".

Neste contexto, a questão de fundo a se discutir é a preparação de Estratégias que darão subsídios aos Planos de Ações e aos Projetos Especiais.

Não é nada complicado.

Hoje, já podemos identificar no cotidiano das nossas cidades as razões da violência, da sujeira e do abandono, ou o contrário (raramente) a boa manutenção, a segurança e a qualidade de vida de lugares que constituem a cena real das cidades.

O que está em jogo é o sentido de cidadania. As nossas cidades acabam reproduzindo e repetindo os mesmos códigos e repertórios: desarmonia, assimetria e uma busca deliberada da feiura. Foram apelidadas de “cidades genéricas”.

Insisto que manejar a complexidade urbana através de planos e projetos especiais é uma tarefa séria e necessária.

A visão medíocre, chinfrim, da vida urbana trouxe como resultado um efeito desvitalizante e desurbanizador promovido pelos projetos que desconheciam o real funcionamento das cidades. Maus projetos, projetos "sedativos”, comprometem a própria permanência da vida urbana e da cidade. Tornou-se corriqueiro depararmo-nos com ruas mal iluminadas, calçadas desprovidas de qualidades mínimas, inexistência de parques urbanos, quarteirões muito longos, a falta de definição precisa entre espaços públicos e privados, o excesso de espaços imprecisos ou residuais, péssimo equacionamento do convívio automóvel/pedestre, que são alguns dos elementos físicos e espaciais que corroem a urbanidade. Tudo consequência dos desastrosos resultados das ações dos fundadores do urbanismo moderno e modernista do século XX.


Estamos no século XXI


Em Eneida, escrito em 29 antes de Cristo, o poeta romano Virgílio diz que todo lugar tem seu genius loci (o espírito do lugar), um espírito que distingue e protege cada cidade. Poderíamos dizer, hoje, que toda cidade tem o seu DNA, o seu RG, ou seja, sua própria e inconfundível personalidade e identidade. Um conceito que busca, sobretudo, “a integração do design com o ser humano, a arquitetura com a vida”.

Como vimos, o maior desafio do planejamento urbano é aumentar o potencial competitivo das cidades, no sentido de responder às demandas globais e atrair recursos humanos e financeiros, nacionais e internacionais. Porém, as cidades não sobreviverão se não cuidarmos do meio ambiente e consequentemente da elevação de sua qualidade de vida. Só assim conseguiremos atrair investimentos, empresas e turismo, garantindo sua sustentabilidade.

É neste contexto que se afirma a necessidade de colocar a cidade de SÃO JOSÉ NO MAPA DO MUNDO, no sentido de conferir a ela um novo papel de destaque na reorganização dos espaços urbanos em nível mundial, melhorando as suas atratividades. Chega-se a este objetivo através do Planejamento de Ações Estratégicas. Este modelo de planejamento sugere a elaboração de um PROJETO DE CIDADE.

Em termos conceituais, existe uma grande diferença entre o tradicional Plano Diretor e o Planejamento de Ações Estratégicas

O Plano Diretor é um mero Plano Normativo, mais preocupado com a regulamentação de futuras e eventuais intervenções urbanas. Por outro lado, Planejamento e Estratégias se propõem a ser um Plano de Ações visando soluções de problemas atuais e concentrando-se nas possíveis articulações de agentes urbanos com o objetivo de explorar as reais possibilidades da cidade. Portanto, atenção, uma Cidade só se muda através de uma nova geração de projetos urbanos, concebidos sob os princípios do Desenho Urbano, comprometidos com Planejamento, Estratégia e Projetos Especiais, surgindo um URBANISMO DE TERCEIRA GERAÇÃO, estratégico, sistêmico, holístico e sustentável.

- ESTRATÉGICO, por nortear o desenvolvimento;

- SISTÊMICO, por operar em diversos níveis administrativos;

- HOLÍSTICO, por considerar a análise de todos os aspectos do desenvolvimento;

- SUSTENTÁVEL, por promover a racionalização do uso dos recursos naturais.

Afinal, qual seria a nossa estratégia?

As cidades, hoje, demandam um novo aparato institucional para a conexão de suas políticas locais com o global. Para assumir o papel de sujeito nesse novo cenário, as cidades precisam construir um PROJETO DE DESTINO DA CIDADE, em que estejam inscritas suas perspectivas de inserção no global. Por esse caminho, e só por esse, a cidade pode se tornar um sujeito ativo, mas, de toda forma, ela necessita da presença de fortes lideranças, para conduzirem as ações do Plano Estratégico.

Não compete só ao poder publico local viabilizar meios para que haja uma articulação com as outras esferas do poder regional, estadual, e federal, assim como efetivar uma promoção interna da cidade objetivando atingir seus habitantes, dotando-os de um sentimento de verdadeira veneração e respeito à cidade promovendo-a externamente, visando atrair os investidores. Depende de nós.

Os locais que serviram de pano de fundo para eventos históricos atuam como ímã para turistas. As localidades perdem tudo quando negligenciam ou destroem seus pontos de referência histórica. O governo de muitas cidades acredita erroneamente que o custo de manutenção desses pontos excede o seu valor.

Nessa linha, a ideia de um MEMORIAL PARA EUCLIDES DA CUNHA para São José encaixa-se como uma luva. A adesão a esta proposta exige a aceitação de novos conceitos e valores tanto por parte dos políticos como da população. É necessário que a sociedade seja crescentemente despertada para as novas possibilidades. A maioria das questões urbanas são simples. É preciso fazer o possível já. Essencialmente, devemos ter a coragem de propor.

Apesar de tratar-se de uma intervenção aparentemente pontual, o Memorial a Euclides da Cunha vai proporcionar uma sucessão de eventos transformadores de longo alcance social, à maneira das Olimpíadas, Copa do Mundo, Fórum e Exposições Internacionais (é disso que se trata). Embora seja um processo de, aparentemente, longo prazo, a execução desse projeto deverá resultar em novos projetos especiais e estratégicos. Não podemos é deixar que o abismo entre as classes sociais continue a minar nossas consciências e a nossa capacidade de termos solidariedade cívica.


NO MAPA DO MUNDO


Nos próximos anos, com as grandes cidades praticamente saturadas e poluídas, é ao interior que está reservado um novo e grande papel de desenvolvimento mais ordenado e onde se poderá manter um estilo de vida com qualidade e um tanto de calor humano. As exigências e a mentalidade já não são as mesmas. O interiorano mudou. Ganhou força econômica, conquistou presença social e importância política. O que é importante, no entanto, é que cultiva suas raízes, num misto de contemporaneidade e de revalorização das origens e dos costumes.

Quando uma cidade (assim como uma região, ou um país) fica rica, sua autoestima não tem preço. Quando não, embarcando numa canoa furada, a cidade transfigura-se num patinho feio, apesar das suas riquezas culturais, geográficas, climáticas, arquitetônicas. No caso rio-pardense sabemos que milhares e milhares de Euclidianos (turistas potenciais) estão espalhados no mundo todo e que poderiam agregar desenvolvimento, riqueza e renda ao município, trazendo, como consequência, mobilidade social.

Oportunidade mobilizadora. Preciso repetir, exemplos não faltam pelo mundo afora. Desde os megaprojetos como Olimpíadas, Copa do Mundo, Fóruns Mundiais, jogos Pan-americanos etc. etc. até intervenções pontuais como o que transformou a ex-feiosa Bilbao, Espanha (que ganhou notoriedade) com o espetacular Museu Guggenheim. Seguindo o exemplo, Valencia decidiu investir na construção de um complexo turístico de linhas arrojadas. Em uma área de 350.000 metros quadrados, o equivalente a dois Maracanãs, a “Cidade das Artes e das Ciências”, um museu científico interativo, um cinema de terceira dimensão, um aquário e um Teatro de Ópera, uma "Cidade" com tanques que equivalem a quinze piscinas olímpicas cheias e 10.000 animais de 500 espécies (golfinhos, tubarões e até morsas).

A bonita cidade de Valencia, famosa por ser a terra da paella, menor que Campinas, vai competir por uma fatia maior dos 49 milhões de turistas estrangeiros que visitam a Espanha todos os anos. No Brasil, algo em torno de 9 milhões de turistas/ano.

O megaempreendimento de Valencia começou com um cinema em terceira dimensão e um museu científico. Só o museu já recebeu 7 milhões de visitantes, nos primeiros dois anos. O empreendimento já deu retorno suficiente para rechear os cofres da região. Desde que o parque começou a ser construído, catorze novos hotéis foram abertos e outros 22 estão em construção, além de um grande Shopping Center vizinho. Mais de 5 000 apartamentos de luxo foram construídos ao redor, que já se tornou o metro quadrado mais caro da cidade. Os habitantes comemoram os 16.000 novos empregos surgidos graças ao megaprojeto. Valencia conseguiu dar um bom destino a uma área pouco valorizada da cidade. Depois de grandes inundações, a cidade decidiu desviar o Rio Turia do centro. Várias obras foram criadas no imenso leito seco, de um museu de arte moderna a jardins. Até um enorme playground em formato de Gulliver, o gigante das histórias infantis, foi instalado, com diversos tobogãs e escorregadores para as crianças saindo do corpo do personagem. Bilbao realizou a mesma façanha com o Guggenheim desenhado por Frank Gehry, que atraiu quase 1 bilhão de dólares e 5 milhões de turistas nos últimos cinco anos.

Berlim também aproveitou a reunificação para dar uma embelezada geral nas áreas da velha Berlim Oriental. Por enquanto, Valencia já garantiu essa grande virada com uma aposta em linhas arrojadas e senso de oportunidade turística para ter mais dinheiro no bolso.

Já se passaram mais de 100 anos do aparecimento genial de OS SERTÕES de Euclides da Cunha.

Falar da importância desta obra demandaria escrever mais um estudo que viria somar-se à vastidão dos já existentes. Resta apenas lembrar que se trata da obra fundamental da literatura brasileira a par da produção de Machado de Assis. Porém há mais. OS SERTÕES revelam o homem brasileiro com toda a sua complexidade, não apenas o homem do nordeste, mas o brasileiro de todas as latitudes.

Há mais de 100 anos, esta criação de Euclides suscita estudos de literatos, sociólogos, antropólogos, psicólogos, historiadores, geógrafos, jornalistas do Brasil e do exterior.

Minha proposta pretende tratar a memória e a obra de Euclides numa dimensão bem maior. Mudar a cidade. Desenvolvimento com qualidade. Mesmo porque, o momento histórico que a sociedade brasileira está vivendo exige que os estudiosos e os jovens do país ampliem o âmbito de seus conhecimentos para que possam responder aos desafios impostos de maneira contundente pela áspera realidade. Responder para onde vamos, o que queremos, quem somos, é aprofundar as propostas de OS SERTÕES e, assim, justificar sua própria existência.

Proponho a criação do Memorial Euclides da Cunha, Instituto Cultural Euclides da Cunha de Estudos Avançados.

O Instituto terá por finalidade promover estudos culturais sobre o homem brasileiro, do ponto de vista da literatura, da sociologia, da psicologia, da antropologia, geografia, geologia etc., enfim ampliar ao máximo tais conhecimentos, oferecendo aos interessados toda a infinita gama de possibilidades que uma organização desta importância pode oferecer.

Ela será uma organização sem fins lucrativos, gerida por conselho e diretoria eleitos por estatutos próprios, liderados pela sua principal responsável e mantenedora. Por exemplo, Fundação Nestlé, Fundação Roberto Marinho, Ministério da Cultura, do Turismo, do Desenvolvimento Regional, Organismos não governamentais etc. etc. (sem falar das instituições, das organizações, dos bancos internacionais).

A sede da entidade deverá contar com todos os recursos materiais e culturais necessários para realizar sua proposta maior: Centro de Convenções, Teatro, Museu, Salas de Aulas, Galeria de Arte, Biblioteca, Restaurante, Auditórios, Acomodações para Alunos, Professores, Visitantes, Cinemas, Parques, Novo Sistema Viário etc., obra destinada a ser do ponto de vista arquitetônico um novo marco para a memória e a história de Euclides da Cunha e para a cidade. Imaginei uma obra com a assinatura de Oscar Niemeyer. É bem possível. Vai depender, em muito, da cidade.

Deverá ser uma obra ousada, à altura das propostas do Memorial e Instituto, capaz de rapidamente conquistar, para si mesma e para seus patrocinadores, a notoriedade a que se propõe. Atrás vem Universidade Federal, Turismo Cultural, rede Hoteleira, grande intervenção urbana ao longo do Rio Pardo, Artesanato, Empreendedorismo Social, Inclusão Digital, Social, Gastronomia etc.

O projeto Memorial Euclides da Cunha é, portanto, o início de uma inédita parceria entre a iniciativa privada e o poder público indicando a construção de uma São José do Rio Pardo justa, cultural e ecologicamente rica, equilibrada, que incentiva movimentos de turismo cultural, do patrimônio histórico mais valioso e de práticas inovadoras de requalificação da cidadania.

O projeto Memorial Euclides da Cunha, indo na direção certa da nova ordem mundial sobre cidades, contém princípios e concepções avançadas de gestão urbana que foram discutidas e adotadas pela Conferência Mundial sobre Assentamentos Humanos, ONU, Istambul, 1996, Habitat II e Rio ECO 92 e Fórum Barcelona 2004.

Habita II, Conferência Mundial, da qual fui participante, legitimada por quase 200 países e mais de 2000 Ongs (organizações não governamentais), declara que a sociedade mundial e o Estado devem reconhecer garantir e implantar os direitos essenciais do homem. Direito à habitação urbanizada, ao emprego, à segurança, à educação, à saúde e aos serviços básicos. Desta forma, a sociedade organizada, através de Redes de Solidariedade, consegue melhorar sua qualidade de vida nas cidades. Os cidadãos podem e devem partilhar dos avanços da ciência e da técnica em seus vários setores, principalmente àqueles voltados para o desenvolvimento urbano.

Aos que só conseguem governar suprimindo atos humanizáveis e eliminando a participação popular, o projeto Memorial Euclides da Cunha funciona como um antídoto aos desleixos administrativos e à intolerância. Apresenta-se como um Plano de Ação Estratégico capaz de retomar a construção de uma São José do Rio Pardo mais progressista, mais justa, mais humana.

Posso resumir as metas do meu plano de ação estratégico, o projeto Memorial Euclides da Cunha, citando alguns juramentos urbanísticos: combater a decadência moral e física do habitat urbano, conciliar o desenvolvimento da cidade com a realidade social dos seus habitantes, proteger o meio ambiente, proporcionar condições adequadas de geração de empregos, segurança, saúde, educação, serviços básicos, indispensáveis para o bem-estar físico, psicológico, social e econômico de toda a população.

Tenho muita fé em poder renovar a esperança dos cidadãos de nossa cidade, na nossa capacidade de reconstruir e reconstituir a autoestima e pujança de São José do Rio Pardo, colocando-a de novo em lugar de destaque no mapa do Brasil e do mundo.
______
*texto escrito em 2006 .

19 março, 2013

Sugestões para aproveitamento de popularidade

por Denise Queiroz


Acabo de dar uma geral na geladeira. Entre tomates e alfaces atacados por alguma bactéria, aqueles pedacinhos da ponta do pão fatiado dentro dos sacos, potinhos de vários tamanhos com uma colherada que alguém deixou de servir por educação, umas cinco fatias de queijo, cada uma na embalagem, empurradas para trás para dar lugar a outra coisa, sobrou o lixo cheio e a constatação do desperdício.

É uma constante o desperdiçar. Aí vejo aqui no twitter muito festejo pela popularidade da presidenta. 79% aprovarem o modo de governar é um feito, sem dúvida. Vão chover análises pró e contra de quando, como e por que essa senhora, que nunca tinha sido eleita antes, conseguiu a façanha.

Claro que esses 79% todos não vão se converter em votos em outubro de 2014. Estimando-se que uns 60% (sendo que 50% mais 1 voto é suficiente para dar a legitimidade exigida) desses que confiam, votem, é uma vitória mega incontestável. E por esse raciocino, estão sobrando 19%, que não devem ser desperdiçados.

Na linha de evitar o desperdício, que tal se esse capital de popularidade fosse convertido em ações de mudanças estruturantes?

Desde que o jesuíta Francisco foi escolhido papa, tenho estudado um pouquinho mais do já sabido sobre os Jesuítas. Para sintetizar, e omitindo as críticas, o grande mérito da ordem foi, lá em 1500 e poucos, ter entendido que o poder da igreja católica, naquele momento ameaçado pela reforma e pelo renascimento, só se manteria se ‘a palavra de deus’ fosse levada por eles a toda terra. Com todas as críticas que tenhamos a eles, é tão incontestável que atingiram seu objetivo que, hoje de manhã, 130 delegações de países prestigiaram a posse do Francisco. Entenderam eles, lá em 1.500, que não poderiam mais conter o conhecimento dentro dos castelos e mosteiros, mas que poderiam orientar, do seu jeito, a forma como o conhecimento seria apreendido. Ou seja, mudaram as cercas de lugar, deram mais campo para as ovelhinhas, e sempre cuidaram dos limites.

Podemos ficar mais perto. Na Venezuela, desde 1999, quando Chávez assumiu a presidência, uma das primeiras medidas foi mexer nas bases da educação e, passados 14 anos, temos profissionais atuando, universitários formados sob essa mudança, o ensino público fortalecido e uma população que tão cedo não vai aderir a projetos que mudem essa realidade.

Aqui, no governo Lula, tivemos evolução ‘que nunca dantes’ no ensino superior e o condicionamento do recebimento do bolsa-família à freqüência escolar dos menores beneficiados, certamente é um avanço, e como os tais 79%, incontestável. Mas falta, e muito. Apesar de sermos uma república federativa, cada estado define como vai cumprir o currículo básico do ensino fundamental. É uma salada de mau gosto. Sou testemunha de que isso é um erro, pois filhos de pais que têm que mudar constantemente acabam ora repetindo, ora ficando sem ter um conteúdo. Sem falar nos professores desvalorizados, mal treinados... 1% da popularidade poderia ser aplicado nisso e rapidamente seria multiplicado por um número maior.

Em outras áreas, como a reforma agrária, também os dados não são os melhores. Ainda há muitíssimas famílias sem terra e vivendo em condições subumanas à beira de estradas, em acampamentos improvisados. E mais um inverno chegando. Talvez ações de assentamento imediato consumissem uns 5% mais dos tais 19% sobrantes, e que seriam recuperados em credibilidade junto aos movimentos sociais, que sempre apoiaram o partido da presidenta.

Depois da educação, outra área fundamental para a formação cidadã, é a comunicação. Por mais que saibamos que é um ninho quase impenetrável, sabemos também que, do jeito que está, os milhões que estão saindo da miséria e entrando no mercado de consumo estão sendo seduzidos pelas benesses do consumo, o que inclui o lixo cultural (jornalismo, programas de auditório, novelas, enlatados) vendido 24 horas pelos canais, rádios e jornais. E nem entremos na análise dos conceitos que vem atrelados.

A indústria cultural gera riqueza, claro. O lixo vendido como moda e conceito de bem-viver (vestimenta, decoração, alimento, moradia, carro, loja, etc), movimenta desenhistas, agências de publicidade, fábricas, mão-de-obra de todas as especialidades.

Sinceramente, não creio que a presidenta, e seus assessores, farão alguma reforma profunda nessa área. Mas bem que poderia aplicar os ainda restantes 13% de popularidade - que não são necessários para a reeleição - em começar a mexer. A primeira medida, seria reduzir a propaganda oficial nos grandes meios e distribuir melhor essas verbas.

Se com a tecla de ‘governo ruim’ batendo dia e noite os 79% de aprovação foram alcançados, não creio que precise de mais provas de que essa propaganda é absolutamente descartável e que uma geração de pessoas melhor informadas – o melhor capital que um país pode ter - pode começar a ser gerada.

Mesmo se todos os 13% fossem aplicados nisso e o desgaste gerado pudesse por em risco a reeleição, facilmente se recuperaria, só pelo fato de ampliar a credibilidade junto a setores que, a cada dia mais, tendem a duvidar do caminho em curso, exatamente pela falta de movimento nas estruturas que sempre beneficiaram a oposição. 


Eleição 2014: aberta temporada de “plantação” de notícias

por: Bob Fernandes 
do: Terra Magazine
dica @EduPavao





Está aberta a temporada de ensaio geral. Ensaio para as eleições de 2014. E, para isso, os candidatos a candidato contam com a nossa colaboração, a dos jornalistas e a das redes sociais.

Eles ensaiam estratégias, discursos, destinos partidários. Fazem de conta que tudo já é pra valer. E, quando se noticia e se comenta, candidatos e seus assessores, pesquisadores, avaliam o que pega e o que não pega. O que funciona e o que não funciona, o que o eleitor "compra" ou não.

Eduardo Campos (PSB) é governador de Pernambuco, onde tem algo como 90% de aprovação. Nestes dias, ele tem andado pelo Sudeste. Entre outras ações, tem conversado com cúpulas dos grandes grupos de mídia. E, quase sempre na moita, tem conversado também com grandes empresários.

Para medir o pulso e porque, como sabemos, as campanhas eleitorais no Brasil estão entre as mais caras do mundo. Então, alguns terão que bancá-las, pagá-las. Sempre.

Assim, de governo em governo, a oposição ao governo seguinte faz uma CPI. Isso no plano federal, nos Estados e nos municípios. Levam-se meses apurando "como foi possível acontecer uma coisa dessa?". E depois, quase sempre, todos se acertam. Só não se acertam quando o infrator não é do clube. Ou quando age como amador.

Esse quadro, é bom que se diga, vale para todos que jogam o jogo grande. Uns mais, outros menos, mas essa é a regra. A regra não será essa no dia em que, por exemplo, o PMDB não for mais "indispensável à governabilidade".

Esse quadro terá mudado quando Lula não precisar mais engolir, ou ser engolido, pelo Jader, pelo Sarney, por essa gente toda, e quando não precisar posar para fotos com Maluf.

Isso já não será assim quando um Fernando Henrique Cardoso não tiver um Antônio Carlos Magalhães, o ACM, como o homem forte de quase todo seu tempo na Presidência. Ou não tiver Renan Calheiros como seu ministro da Justiça.

Isso será diferente quando, nessa geleia geral, pra não dizer outra coisa, a Comissão de Direitos Humanos não for entregue ao pastor Feliciano (PSC-SP). E quando o Blairo Maggi (PR-MT) não for o escolhido para cuidar do Meio Ambiente.

Ou quando, em nome da "governabilidade", um presidente não precisar arranjar boquinhas para partidos em 39 ministérios; ou em 30, ou em 25… o delírio é igual.

Enquanto isso… parece que o senador Aécio Neves (PSDB-MG), com ajuda do FHC, tenta convencer o Serra a… deixar de ser Serra. E o ex-prefeito Kassab não sabe se vai ou não, se é ou deixa de ser.

Enquanto isso, a presidente Dilma Rousseff, em Roma, empresta abalizadas opiniões ao papa.

Tudo, de todos, sempre registrado para uso posterior. Ou, como se diz no jornalismo, para ser "plantado". Para que se possa medir as reações, afinar discursos, estratégias, candidaturas, etc.

A partir do dia 30 de setembro, esse jogo muda um pouco. Essa data é o fim do prazo para filiações, troca de partidos, ou novos partidos, rumo à eleição de 2014.

Enquanto isso, e até lá, segue o ensaio geral… e a plantação.

18 março, 2013

“Dom Ciccillo” e o fim do mundo


por: Eliane Brum
da: Época

Tudo indica que isso que estamos vivendo não é a realidade

Quando o sol nasceu com a indiferença de sempre em 22 de dezembro, perguntei a um insistente apocalíptico das minhas relações como ele explicava que o mundo não havia acabado, tal qual ele havia repetido durante o ano inteiro como um mantra. Ele me desferiu um olhar de pena e respondeu, altivo: “E você achou que o mundo acabaria em fogo e fumaça”?

Achei a resposta um tanto 171, mas os primeiros meses deste ano começam a me assombrar. E se ele tinha razão, o mundo acabou, e eu agora me encontro numa espécie de realidade paralela? O primeiro sinal apareceu dias depois do apocalipse que parecia não ter acontecido, quando José Sarney (PMDB) defendeu, numa entrevista publicada na Folha de S. Paulo de 31 de dezembro, que ex-presidente deveria ser proibido de disputar eleição. “Acho que deveríamos ter uma legislação que não permitisse a nenhum ex-presidente da República, deixando o governo, que voltasse a qualquer cargo eletivo”, afirmou o homem que chegou à Câmara dos Deputados em 1955. Depois de deixar a presidência da República, em 1990, foram três mandatos como senador e mais de duas décadas ininterruptas no Congresso. Agora, em vias de aposentamento, defendia que para os outros deveria ser proibido. Estranho, muito estranho, desconfiei. O ano virou, e a realidade continuou ainda mais fantástica do que o habitual. Fantástica demais para ser confiável.

Uma série de acontecimentos tem me feito duvidar da realidade. E, na quarta-feira da semana passada, 13 de março, simplesmente parei de acreditar. Nesta data, a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados aprovou o projeto de lei 6167, de 2009, batizando de “Rodovia Cecílio do Rego Almeida” o trecho da BR-277 localizado entre as cidades de Paranaguá e Curitiba, um dos principais da região sul do país. Ao ler a notícia, puxei da memória: “Cecílio do Rego Almeida, conhecido desde a ditadura militar como ‘Dom Ciccillo’? Aquele que foi chamado pela imprensa de ‘o maior grileiro do mundo’”? Não, claro que não.

Procurei o nome do autor do projeto: deputado André Vargas, atual vice-presidente da Câmara. Não, tive certeza que não. Como um deputado do PT, partido apoiado por boa parte dos movimentos sociais da Amazônia (hoje com bem menos afinco que na década passada), faria uma homenagem póstuma ao homem acusado de uma área quase equivalente à soma dos territórios da Bélgica e da Holanda, na Terra do Meio, no Pará? Um reconhecimento público ao homem que se apossou de terras públicas, terras indígenas e até de assentamentos do Incra? Impossível, eu já concluía, quando vi no Twitter uma manifestação do deputado José Mentor, também do PT, anunciando, aparentemente com orgulho, que havia sido o relator do projeto, aprovado nessa última comissão.

Senti aquela vertigem cada vez mais familiar, sem saber se acreditava na lógica, que me dizia ser impossível, ou no que tentam me fazer acreditar que é a realidade. Entrei no site da Câmara e lá estava o projeto, aprovado em três comissões (a de Educação, a de Viação e Transportes e a CCJC). Fui conferir a justificativa do autor, deputado André Vargas: “A denominação que se pretende conferir ao trecho citado é uma justa homenagem ao Sr. Cecílio do Rego Almeida, empresário fundador e presidente do Conselho de Administração do Grupo CR Almeida, que reúne mais de 30 empresas e atua nas áreas de construção pesada, concessão de rodovias e logística de transporte, química e explosivos”. E, ao final: “Seu trabalho foi perseverante em seu objetivo, e agora, após a sua morte (...), este benemérito cidadão poderá receber a merecida homenagem”.

Me parecia evidente que eu estava sofrendo de alucinações. “Dom Ciccillo” seria homenageado por sua “perseverança”? Qual “perseverança”? Com certeza não a de se se apropriar de cerca de 6 milhões de hectares de floresta amazônica, num reino apelidado como “Ceciliolândia”. Merecida homenagem a “Dom Ciccillo”? O mesmo homem que, numa entrevista à revista Caros Amigos, chamou Marina Silva, então ministra do Meio Ambiente, de “uma indiazinha totalmente analfabeta e doente”?

Assim como definiu o ex-governador do Rio Grande do Sul Olívio Dutra como “um bicha, que é veado”? E se referiu a Chico Mendes como “esse seringueiro que se fodeu”? (Os leitores me perdoem a deselegância, mas as frases são do homenageado e, portanto, se justificam no contexto.) Na mesma entrevista, de 2005, “Dom Ciccillo” assim se refere à ditadura militar, que muitas grandes obras concedeu à sua empreiteira – e também ao partido do autor do projeto de lei, que agora faz a ele uma homenagem póstuma: “Entendo que foi uma ditadura, mas a mais leve das ditaduras. Hoje existe uma ditadura no PT mais forte que a dos militares”.

Não é óbvio, evidente, claríssimo que o projeto de lei não é real? Eu estou com a página da Câmara aberta diante de mim, mas só pode ser uma conspiração. A página verdadeira deve ter sido substituída por esta, falsa. Não acreditei nem por um minuto. “Dom Ciccillo”, homenageado pelos serviços prestados ao Brasil? Fiquei imaginando a cara de Raimundo Belmiro e muitos outros da Terra do Meio, que testemunharam a atuação de “Dom Ciccillo” na Amazônia, ao tomar conhecimento de que essa piada circulava no país como coisa séria. Quem seria o néscio que acreditaria numa coisa dessas? Eu é que não. E acreditei ainda menos quando li na Gazeta do Povo, do Paraná, que, por coincidência, a rodovia batizada com o nome de “Dom Ciccillo” é a mesma em que uma das empresas da CR Almeida administra o pedágio. Não, é claro que isso não está acontecendo.   
Já não tinha acreditado no que me garantiam ser a realidade quando o Incra destinou um lote de terra à mulher do homem que será julgado pelo assassinato de José Cláudio Ribeiro e Maria do Espírito Santo. Para quem não lembra, os dois líderes extrativistas foram mortos numa tocaia, em maio de 2011, em Nova Ipixuna, no Pará. Tiveram pulmões e corações perfurados, e uma orelha de José Cláudio foi arrancada para comprovar a execução. O julgamento de José Rodrigues Moreira, acusado como mandante, e dos dois supostos executores do crime está marcado para 3 de abril. Mas no início de março foi divulgado que o Incra havia concedido um lote de terra à mulher de Moreira, a mesma área da qual ele tentou expulsar três famílias e só não conseguiu por causa da resistência de José Cláudio e Maria. Em resumo: o homem acusado de ordenar um duplo homicídio ganhou do Estado a concessão da terra que motivou o conflito. Uma espécie de prêmio.

Alguém acredita que o Incra cometeria uma barbaridade dessas? Eu nunca acreditei. E, como já não acreditava, também não levei a sério quando o Incra afirmou ao Ministério Público Federal que a concessão do lote foi um “equívoco” – e que a área seria retomada pela via jurídica.

Minha resistência em acreditar numa realidade que parece ficção de quinta categoria já havia sido testada antes, quando o deputado Marco Feliciano (PSC), pastor evangélico de sua própria igreja, a “Catedral do Avivamento”, se tornou presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara. Marco Feliciano? Eu só conhecia um. Este, entre outros barbarismos, havia afirmado o seguinte: “Os africanos descendem de ancestral amaldiçoado por Noé”. E ainda diria: “O reto não foi feito para ser penetrado”. Logo, não poderia ser este Marco Feliciano o presidente de uma comissão destinada a zelar pelos direitos de, entre outras minorias, negros e homossexuais. Portanto, é óbvio que eu não podia acreditar. E não acreditei.

Se fosse do tipo crédulo, como tantos por aí, eu acreditaria não só que o deputado Marco Feliciano é presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara, mas também que o senador Blairo Maggi (PR), ruralista que chegou a ganhar o “Motosserra de Ouro”, troféu do Greenpeace destinado a quem mais colabora com a devastação, é o presidente da Comissão de Meio Ambiente do Senado. Teria de acreditar inclusive que o deputado João Magalhães (PMDB), que responde a três inquéritos no STF (peculato, tráfico de influência e crime contra o sistema financeiro), é o presidente da Comissão de Finanças e Tributação da Câmara. E teria de acreditar até mesmo que Renan Calheiros (PMDB), que em 2007 renunciou à presidência do Senado por suspeita de corrupção, é hoje de novo o presidente do Senado.

Quem acredita nisso? Eu não.

16 março, 2013

Receio de avançar



Do Viomundo

Se ocorreu alguma diferença com o governo Dilma na preocupação em atenuar a ortodoxia da política econômica, o mesmo não pode ser dito no domínio das comunicações. Ali a opção foi pelo aprofundamento da política voltada ao mundo empresarial.

Paulo Kliass, na Carta Maior

Passados mais de 10 anos de uma grande expectativa criada quanto a mudanças efetivas na condução da política e da economia em nosso país, algumas áreas de foco de ação governamental são mais evidentes por não apresentarem as transformações necessárias e esperadas.

Dentre elas, o setor de comunicações talvez seja um dos que mais concentram as energias da frustração e da desesperança.

Parcela significativa das matérias sob jurisdição do Ministério das Comunicações é composta de temas e processos associados ao conceito de “bens e serviços públicos”, a serem explorados diretamente pelo Estado ou transferidos, sob a forma de concessão, ao setor privado.

As emissoras de rádio e televisão só podem funcionar se obtiverem a autorização oficial do Estado brasileiro para fazê-lo. As empresas de telefonia também operam uma modalidade específica de serviço público e só podem funcionar se forem portadoras de concessão para esse fim. A operação dos serviços de internet e banda larga também exigem autorização, regulamentação e fiscalização da administração pública federal.

Perspectiva de mudanças e frustração

Para quem imaginava que 2003 significaria um momento de reversão da tendência anterior de consolidação das práticas neoliberais no setor, os anos que se seguiram foram bastante desanimadores. A partir de meados do primeiro mandato de Lula, a opção política foi feita e o recado foi transmitido com todas as cores, para que não pairassem dúvidas a respeito da verdadeira intenção política do governo dirigido pelo Partido dos Trabalhadores.

Assim como a condução da política econômica foi entregue ao ex presidente internacional do Bank of Boston, a política de comunicações foi entregue a um fiel servidor dos interesses das Organizações Globo e das grandes corporações do setor.

Depois da nomeação de Henrique Meirelles para a Presidência do Banco Central em 2003, Lula nomeia o Senador Helio Costa para o Ministério das Comunicações em 2005. Enquanto o império de Meirelles durou os exatos 8 anos dos dois mandatos de Lula, Helio Costa ficou “apenas” 5 anos no cargo.

Se ocorreu alguma diferença com a chegada da presidenta Dilma na preocupação em atenuar a ortodoxia da política econômica com tinturas heterodoxas, o mesmo não pode ser dito no domínio das comunicações.

Ali a opção foi pelo aprofundamento da política voltada ao atendimento dos pleitos do mundo empresarial. A nomeação de Paulo Bernardo para o Ministério antes ocupado por Helio Costa não significou nenhuma mudança expressiva em relação à estratégia anterior para o setor.

Telefonia e internet: empresas intocáveis

A agenda da telefonia não representou grandes avanços em termos de melhoria da qualidade dos serviços ou de redução das tarifas elevadas, mesmo para padrões de comparação internacional. As autorizações concedidas para a fusão das grandes empresas do setor não foi revertida.

Muito pelo contrário, houve a continuidade dos níveis de concentração e centralização entre os conglomerados que operavam a telefonia convencional e a telefonia celular. A configuração de práticas de oligopólio não recebeu tratamento mais efetivo por parte da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e tampouco do Ministério.

Para se ter uma ideia, as empresas de telefonia fixa e celular sempre estiveram impunemente à frente do desrespeito às regras e direitos dos usuários. Confirmando a tradição, foram as campeãs de reclamações junto aos órgãos de defesa do consumidor em 2012, registrando o dobro das notificações de bancos ou cartões de crédito. No quesito da reivindicação histórica pela revogação da assinatura básica, tampouco o governo se movimentou para viabilizar a aprovação de algum dentre os Projetos de Lei que tramitam no interior do Congresso Nacional há vários anos sobre o tema.

Os processos envolvendo a ampliação e o aprofundamento da inclusão digital também foram sendo tocados a um ritmo bastante abaixo do desejável. A conivência dos órgãos reguladores com o desleixo a que os usuários dos sistemas de acesso à internet são tratados pelas empresas do setor chega a ser escandalosa.

Um dos exemplos mais gritantes é o direito assistido às empresas para que não cumpram nem mesmo o contratado quanto à velocidade e capacidade de transmissão na rede de banda larga. Por outro lado, pouco se exige em termos de contrapartida das empresas operadoras, no sentido de ampliar a rede de acesso à internet e tornar o sinal acessível em municípios e localidades distantes dos centros urbanos mais adensados.

Já se foram mais de dez anos e o potencial de uso do estoque de fibra ótica da Telebrás permaneceu inutilizado. Isso porque o governo federal tinha condições jurídicas de fazer valer sua condição de acionista majoritário para ampliar a rede física por todo o território nacional. Mas a opção foi pela postura passiva da espera e de não contrariar os interesses dos grandes grupos privados atuantes no setor.

Como a maioria dos grupos privatizados pertence a conglomerados americanos e europeus, as diretrizes empresariais determinam a redução drástica de recursos aplicados em reinvestimentos e o aumento da remessa de lucros para ajudar as matrizes a resolveram a falta de perspectiva pela crise internacional. E os órgãos reguladores do Estado brasileiro assistem calados a tal movimento, que na prática tem o sentido de um lento e silencioso sucateamento desse novo e estratégico setor da economia.

Lei do Marco Regulatório: recuo patético

A outra área de comunicações, também essencial para um governo que se pretenda transformador, não está exatamente sob o domínio de Paulo Bernardo. Trata-se das decisões do Estado relativas à sua própria política e estrutura de comunicação.

Essa vasta agenda inclui temas tão diversos e essenciais quanto: i) as emissoras públicas de rádio e TV; ii) a descentralização e a democratização das vultosas despesas com publicidade do governo e das empresas estatais; iii) a proibição de formação de conglomerados típicos das oligarquias, cruzando imprensa escrita, falada e televisionada; iv) a responsabilização por abusos de poder, seja na área política, econômico-financeira ou outras; entre tantos assuntos similares.

A sensibilidade e a importância da matéria remetem à necessidade da Casa Civil, junto com a Presidenta, se envolver diretamente com a matéria. A Ministra Gleisi Hoffmann, esposa de Paulo Bernardo, não pareceu se entusiasmar muito com o projeto elaborado ainda na gestão de Franklin Martins.

Tampouco a atual titular da Secretaria de Comunicação, Helena Chagas, deu mostras de batalhar pela aprovação do novo marco regulador da imprensa e das comunicações em geral. O resultado foi a declaração patética, onde a equipe governamental oficialmente joga a toalha e lava as mãos: não mais se compromete com a regulamentação do setor

Em sentido inverso ao processo levado a cabo na Argentina, Uruguai, Equador e Venezuela, o governo brasileiro resolveu recuar e não mais se envolver com o projeto em tramitação no Congresso Nacional. Pressionada pelos grandes grupos empresariais do amplo setor de comunicação, Dilma voltou atrás na estratégia ainda definida no governo Lula e deixou essa área estratégica da economia e da sociedade sem qualquer tipo de controle ou regulamentação.

Em nome da hipocrisia da defesa da “liberdade de imprensa e de opinião”, os empresários recusam qualquer tipo de normativa ou ação do poder público para coibir abusos e para fazer valer a vontade da maioria da população.

Na União Européia, vários países dispõem de instrumentos para viabilizar esse tipo de ação regulamentadora. Ao contrário da acusação irresponsável de “lei da mordaça”, trata-se de mecanismo de defesa da democracia da sociedade contra os abusos do chamado “quarto poder”.

Estão aí inúmeros exemplos como o de Rupert Murdoch na Inglaterra, onde fica evidente a necessidade da ação do poder público. O caso do “News of the World” e os excessos cometidos só reforçam a justeza dos dispositivos da Lei de Meios, por impedir a centralização do poder econômico em diversos segmentos das comunicações.

Infelizmente, o receio de avançar pelo caminho da transformação social mais efetiva é marca também do setor de comunicações. Não bastassem os recuos em termos de aspectos da política econômica, na questão agrária, na questão ambiental, nas benesses concedidas aos conglomerados da infraestrutura, entre outros, o governo perde mais uma oportunidade de se legitimar junto a amplos setores da sociedade.

Para isso, bastaria se empenhar pela aprovação do Projeto de Lei no Congresso Nacional, como faz sistematicamente com outros textos de seu interesse.

___________
Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.


15 março, 2013

Quem te representa?

por Denise Queiroz

Assistimos revoltados à conturbada eleição do pastor Marco Feliciano, do PSC, para a Comissão de Direitos Humanos e Minorias na Câmara. Em poucos minutos centenas de vídeos e matérias mostrando que tal sujeito é absolutamente incompatível com a função pipocavam no tuiter, no face, em blogs e nas denúncias de representantes legítimos de minorias, que juntas são maioria neste país. 

A campanha #ForaFeliciano segue viva na internet, mais e mais pessoas se juntam aos que dispararam o rechaço da população às posturas afrontosas ao bom senso, aos Direitos Humanos e à Constituição, do pastor e seus pares. Ainda causa espanto que alguém com tais feitos e ditos possa ser eleito para qualquer cargo público, num retrato surreal e fidedigno da triste realidade das eleições no país (quantos dos que o elegeram sabiam, por exemplo, de seu ódio contra negros e homossexuais?).

Como se não bastasse essa afronta do parlamento (e sim, todos os que permitiram que um partido com prática e membros pública e claramente favorável a preceitos nada igualitários ficasse com a liderança da Comissão, tem culpa nisso) ontem fomos informados através de um post-denúncia no excelente Viomundo, que foi aprovado um projeto de lei (PL 6.167/09)
, do deputado paranaense Andre Vargas, que dá o nome do maior latifundiário do país a um trecho de uma estrada federal. Esse deputado é do PT, partido que, não custa lembrar, foi fundado por trabalhadores, movimentos sociais e intelectuais de esquerda e do qual alguns ainda carregam a bandeira da reforma agrária e justiça social junto aos sem-terra.  

Qual a diferença, então, entre os dois parlamentares? Um, o pastor, é assumidamente de direita. O outro, que agora é líder da bancada do PT na Câmara, até onde se sabe, se diz de esquerda.

Com isso só constatamos que o que define uma pessoa (física - o deputado - ou jurídica - o partido) são suas ações, não suas palavras.

Mas também evidencia a bipolaridade de um partido que pilota o governo há dez anos mas, ao mesmo tempo em que implementa programas sociais aplaudidos e copiados em todo o mundo, não contente em manter, propõe e aprova homenagem aos piores representantes do que sempre condenou. 
______

Links inseridos no texto: 

Deputado do PT homenageia o “maior grileiro do mundo”

Campanha em repúdio ao pastor Feliciano

14 março, 2013

A igreja que deixou mães ao relento


por Clóvis Rossi
da Folha de SP

O papa e o pecado da omissão

Jorge Mario Bergoglio leva ao Vaticano um pecado imperdoável: foi no mínimo omisso durante o genocídio que a ditadura militar argentina praticou entre 1976 e 1983.

Nem é possível alegar que não era, então, uma figura destacada na hierarquia eclesiástica: foi provincial dos jesuítas entre 1973 e 1979. A parte mais selvagem da repressão se deu precisamente entre o golpe de 1976 e 1978, quando, a rigor, a esquerda armada já havia sido esmagada, junto com milhares de civis desarmados.

Há na Argentina quem acuse Bergoglio de ter sido pior do que omisso: o jornalista Horácio Verbitsky, autor de um punhado de livros sobre a ditadura, acusa o agora papa de ter sido cúmplice da repressão ao denunciar aos militares, como subversivos, sacerdotes que desempenhavam forte ação social.

Verbitsky diz possuir documentos obtidos na Chancelaria argentina que demonstram a veracidade de sua acusação.

Antes do conclave anterior (2005), um advogado da área de direitos humanos chegou a propor uma ação contra Bergoglio, acusando-o de ter sido cúmplice no sequestro de dois padres jesuítas em 1976.

Bergoglio sempre negou as acusações. Disse que, ao contrário, tentou proteger os jesuítas perseguidos.

O que não dá para negar é que Bergoglio passou em silêncio por um período negro da história argentina, em que o comportamento de sua igreja foi obsceno.

Não é, portanto, um cartão de visitas auspicioso para um papa condenado a enfrentar uma evidente crise de credibilidade, se não da igreja, pelo menos de sua cúpula.

A igreja argentina também perdeu credibilidade por sua pusilanimidade, para dizer o mínimo, durante a ditadura militar. Como correspondente da Folha em Buenos Aires de 1980 a 1983, fui testemunha ocular das intoleráveis omissões da hierarquia ante a violência do Estado.

Conto apenas um episódio menor para mostrar a covardia.

Um dado dia, as Madres de Plaza de Mayo pediram uma audiência aos bispos. Um grupo delas, todas senhoras de idade, rostos vincados pelo tempo e pela dor, foi até a sede da Conferência Episcopal Argentina para entregar uma petição, obviamente relacionada à violação dos direitos humanos.

Chovia, fazia frio, o vento era cortante. Pois os responsáveis pela igreja argentina não tiveram nem sequer a piedade de permitir que as senhoras esperassem no interior do imóvel. Ficaram mesmo ao relento, como a sociedade argentina ficou desprotegida pelos seus pastores durante toda a ditadura.

É dessa igreja que vem Bergoglio. Uma igreja que jamais pediu perdão por esse insuportável comportamento.

É possível que, tendo a Argentina da democracia passado a limpo o período do terror, a questão dos direitos humanos no passado seja deixada de lado ou vá para um pé de página no perfil do novo papa.

Entendo. Os homens passam a ser santos, ou quando morrem ou quando assumem o papado.

A ver se o papa Francisco corrigirá no Vaticano o pecado de omissão de Bergoglio.


13 março, 2013

A "operação conclave" de Bergoglio



publicado na Revista do IHU em 12 de abril de 2010


Quando a publicação mais importante da Alemanha, a revista Der Spiegel, se refere ao "papado falido" do seu compatriota Joseph Ratzinger (o mesmo termo que a Inteligência norte-americana aplica aos Estados com vazio de poder nos quais justifica sua intervenção), o primaz da Argentina e arcebispo de Buenos Aires, cardeal Jorge Bergoglio , empreende uma operação de lavagem de sua imagem com a publicação de um livro autobiográfico.

O ostensivo propósito de "El Jesuita", como o livro é intitulado, é defender seu desempenho como provincial da Companhia de Jesus entre 1973 e 1979, manchado pelas denúncias dos sacerdotes Orlando Yorio e Francisco Jalics, que ele entregou aos militares. Ambos foram sequestrados cinco meses a partir de maio de 1976. Em troca, as quatro catequistas e dois de seus esposos sequestrados dentro da mesma operação nunca reapareceram. Entre eles, estavam Mónica Candelaria Mignone, filha do fundador do CELS (Centro de Estudos Legais e Sociais), Emilio Mignone, e María Marta Vázquez Ocampo, da presidente das Mães da Praça de Maio, Martha Ocampo de Vázquez.

A reportagem é de Horacio Verbitsky, publicada no jornal Página/12, 10-04-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Ratzinger tem 83 anos e, segundo a Der Spiegel, muitas vozes pedem a sua renúncia. O sacerdote Paolo Farinellaescreveu na prestigiosa revista italiana de filosofia MicroMega, cujo diretor Paolo Flores D’Arcais participou de debates públicos sobre filosofia com o Papa, que Bento XVI deveria pedir perdão aos crentes afetados pela restrição do celibato, pelas condições nos seminários e pelos milhares de casos de abusos de crianças e dizer-lhes: "Vou me retirar para um monastério e passarei o resto dos meus dias fazendo penitência pelo meu fracasso como sacerdote e como Papa".

Ninguém se surpreenderia se, depois de beber uma tisana noturna falhasse o coração de um homem entristecido e angustiado por causa das injustas críticas que atingem seu desempenho como bispo da Baviera e não perdoam nem seu amado irmão Georg. A revista alemã menciona o antecedente de Celestino V, um Papa do século XIII, que renunciou porque não se sentiu capaz de cumprir com suas funções.

Se algo disso ocorrer, Bergoglio precisa de uma folha de serviços limpa. Diante de uma pergunta sobre o Papa ideal, o presidente da Associação Alemã da Juventude Católica, Dirk Tänzler, disse à Der Spiegel que preferiria que o escolhido tivesse trabalhado em uma parte pobre da América do Sul ou em outra região atingida pela pobreza, já que teria uma visão diferente do mundo. A compaixão pela pobreza, compartilhada com a Sociedade Rural e a Associação Empresarial AEA, é o nicho de oportunidade escolhido pelo episcopado sob a condução de Bergoglio.

O Silêncio


É o cardeal que vincula seu descarrego com a eleição papal. Seu livro narra que quando a vida de João Paulo II se apagava e o nome de Bergoglio figurava nos prognósticos dos jornalistas especializados, "voltava a se agitar uma denúncia jornalística publicada poucos anos atrás em Buenos Aires" e que, "às vésperas do conclave, que devia escolher o sucessor do Papa polonês, uma cópia de um artigo com a acusação, de uma série do mesmo autor, foi enviada aos endereços de correio eletrônico dos cardeais eleitores com o propósito de prejudicar as chances que eram outorgadas ao purpurado argentino". Bergoglio diz em seu livro que nunca responder à acusação "para não fazer o jogo de ninguém, não porque tivesse algo para esconder". Ele não explica porque mudou agora.

Pastores e lobos


Na realidade, a primeira versão do episódio não se deve a nenhum jornalista, mas sim a Emilio Mignone. Em seu livro"Iglesia y dictadura", editado em 1986, quando Bergoglio não era conhecido fora do mundo eclesiástico, Mignoneexemplificou com seu caso "a sinistra cumplicidade" com os militares, que "se encarregaram de cumprir a tarefa suja de limpar o pátio interior da Igreja, com a aquiescência dos prelados".

Segundo o fundador do Centro de Estudos Legais e Sociais (CELS), durante uma reunião com a Junta Militar em 1976, o então presidente da Conferência Episcopal e vigário castrense, Adolfo Servando Tortolo, concordou que, antes de deter um sacerdote, as Forças Armadas iriam avisar o bispo respectivo. Mignone acrescenta que, "em algumas ocasiões, a luz verde foi dada pelos próprios bispos. No dia 23 de maio de 1976, a Infantaria da Marinha deteve, no bairro de Bajo Flores, o presbítero Orlando Yorio e o manteve durante cinco meses na qualidade de desaparecido. Uma semana antes da detenção, o arcebispo [Juan Carlos] Aramburu havia lhe retirado sua licença ministerial, sem motivo nem explicação. Por diferentes expressões ouvidas por Yorio em sua detenção, fica claro que a Armada interpretou tal decisão e, possivelmente, algumas manifestações críticas de seu provincial jesuíta, Jorge Bergoglio, como uma autorização para proceder contra ele. Sem dúvida, os militares haviam advertido a ambos acerca de sua suposta periculosidade". Mignone se pergunta "o que a história irá dizer sobre esses pastores que entregaram suas ovelhas ao inimigo sem defendê-las nem resgatá-las".

A chaga aberta

Eu publiquei a história nesta mesma coluna, no dia 25 de abril de 1999. Além da opinião de Mignone, a nota incluiu a opinião de quem foi sua colaboradora no CELS, a advogada Alicia Oliveira, que disse o que agora repete no livro: que seu amigo Bergoglio, preocupado com a iminência do golpe, temia pelo destino dos sacerdotes do assentamento e lhes pediu que saíssem dali. Quando foram sequestrados, ele tentou localizá-los e buscar sua liberdade, assim como ajudou os outros perseguidos.

Por causa dessa nota, Orlando Yorio se comunicou comigo do Uruguai, onde vivia. Por telefone e por e-mail, refutou as afirmações de Bergoglio e Oliveira. "Bergoglio não nos avisou do perigo iminente" e "também não tenho nenhum motivo para pensar que ele fez alguma coisa pela nossa liberdade, mas sim todo o contrário", disse.

Os dois sacerdotes "foram libertados pela gestão de Emilio Mignone e a intercessão do Vaticano e não pela atuação deBergoglio, que foi quem os entregou", acrescentou Angélica Sosa de Mignone, Chela, a esposa durante meio século do fundador do CELS. Seus testemunhos foram incluídos na nota "La llaga abierta", publicada no dia 09 de maio de 1999. Também foram transmitidas ali as posições de Bergoglio e do outro padre sequestrado naquele dia, Francisco Jalics.

Questão de Estilo

Em seu livro, Bergoglio diz agora que Yorio e Jalics "estavam preparando uma congregação religiosa, e lhe entregaram o primeiro rascunho das regras aos bispos Pironio, Zazpe e Serra. Conservo a cópia que me deram". Bergoglio também me entregou uma cópia. Expressa o tipo de dúvidas e de conflitos que foram comuns em um alto número de sacerdotes a partir do Concílio Vaticano II, com "a crise das congregações religiosas, os sinais dos tempos modernos, a coincidência com o sentir da busca dos jovens e a confirmação espiritual que sentimos em nosso modo de viver atual".

O problema, nesse caso, era como compatibilizar "o estilo inaciano da vida religiosa" com "a vida moderna [que] pedia um estilo novo". A ata acrescenta que as Congregações Apostólicas estão organizadas de modo que seus superiores "parecem se ocupar mais com as obras do que pela atenção espiritual de seus súditos". Em troca, eles idealizam o modelo das fundações monásticas e propõem que "a comunidade se una em torno de uma busca espiritual e de um projeto de vida e não em torno de obras". Isso apresenta uma "incompatibilidade pessoal" aos sacerdotes subordinados à disciplina de sua congregação.

Em sua carta ao padre Moura, Yorio menciona essa ata como resposta à pressão de Bergoglio para que dissolvessem a comunidade em Bajo Flores. Acrescenta que deixaram para Pironio, Zazpe e Serra "um esboço de estruturação de vida religiosa em caso de que não pudéssemos continuar na Companhia e fosse possível realizá-la fora", o que não implica que eles quisessem sair dela. Em uma viagem posterior à Argentina, Pironio disse-lhe que não havia consultado o assunto em Roma, porque Bergoglio "havia ido lhe ver para lhe dizer que o padre geral era contrário a nós". Zazperespondeu que "o provincial andava dizendo que nos tiraria da Companhia", e Serra comunicou-lhe que lhe retirariam a licença na arquidiocese porque Bergoglio havia comunicado "que eu estava saindo da Companhia".

Segundo Bergoglio, o superior jesuíta Pedro Arrupe disse que eles deviam escolher entre a comunidade em que viviam e a Companhia de Jesus. "Como eles persistiram em seu projeto e o grupo se dissolveu, pediram a saída da Companhia". Bergoglio acrescenta que a renúncia de Yorio foi aceita no dia 19 de março de 1976. "Diante dos rumores da iminência do golpe, eu lhes disse que tivessem muito cuidado. Lembro que lhes ofereci, se chegasse a ser conveniente para sua segurança, que viessem viver na casa provincial da Companhia", disse Bergoglio. Afirma também que nunca acreditou que eles estivessem envolvidos em atividades subversivas. "Mas, por causa de sua relação com alguns padres das vilas de emergência, eles ficavam muito expostos à paranoia da caça às bruxas. Como permaneceram no bairro, Yorio eJalics foram sequestrados durante um rastreamento".

Papeizinhos

Bergoglio também nega ter aconselhado os funcionários de Culto da Chancelaria que rejeitassem a solicitação de renovação do passaporte de Jalics, que ele mesmo apresentou. Segundo Bergoglio, o funcionário que recebeu o pedido lhe perguntou pelas "circunstâncias que precipitaram a saída de Jalics". Ele diz que respondeu: "Ele e seu companheiro são acusados de serem guerrilheiros e não tinham nada a ver".

O cardeal acrescenta que "o autor da denúncia contra mim revisou o arquivo da Secretaria de Culto, e a única coisa que mencionou foi que encontrou um papelzinho daquele funcionário no qual ele havia escrito que eu lhe disse que fossem acusados como guerrilheiros. Eu havia entregue essa parte da conversa, mas não a outra na qual eu lhe indicava que os sacerdotes não tinham nada a ver. Além disso, o autor da denúncia ignora minha carta, na qual eu colocava minha cara por Jalics e fazia o pedido".

Não foi nada disso. Em notas publicadas aqui e em meus livros "El Silencio" e "Doble juego", narrei a história completa e publiquei todos os documentos, começando pela carta de cuja omissão Bergoglio reclama. Depois, segue a recomendação do funcionário de Culto que o recebeu, Anselmo Orcoyen: "Em atenção aos antecedentes do requerente, esta Direção Nacional é da opinião de que não deve aceder".

O terceiro documento é o definitório. Esse papelzinho, assinado por Orcoyen, diz que Jalics tinha atividade dissolvente em comunidades religiosas femininas e conflitos de obediência, que esteve com Yorio na ESMA (detido, diz, em vez de sequestrado) por "suspeito contato com guerrilheiros". O ponto mais interessante é o seguinte, porque remete a intimidades da Companhia de Jesus, vistas a partir da ótica de Bergoglio, que não tinha nenhuma necessidade de confiar ao funcionário da ditadura: "Viviam em uma pequena comunidade que o Superior Jesuíta dissolveu em fevereiro de 1976 e se negaram a obedecer solicitando a saída da Companhia em 19/03".

Ele acrescenta que Yorio foi expulso da Companhia e que "nenhum bispo da Grande Buenos Aires quis lhe receber". A "Nota Bene" final é inegável: Orcoyen diz que esses dados lhe foram repassados "pelo padre Jorge Mario Bergoglio, firmante da nota, com especial recomendação de que não se fizesse o que é solicitado".
__________


Web Analytics