31 agosto, 2013

Às vésperas de uma guerra obscena

por Tariq Ali*

Aliados a monarquias medievais, EUA querem ampliar seu poder geopolítico no Oriente Médio: eis o real motivo da escalada contra Damasco 

Navio da frota dos EUA no Mediterrâneo, equipada com mísseis Tomahawk e deslocada para as proximidades da Síria na quinta-feira, 29/8/2013.

O objetivo da “guerra limitada” organizada pelos EUA e seus vassalos europeus é simples. O regime sírio estava lentamente restabelecendo seu controle sobre o país, contra a oposição armada pelo Ocidente e seus Estados tributários na região (Arábia Saudita e Qatar). Essa situação exigia correção. Nessa deprimente guerra civil, era preciso fortalecer militar e psicologicamente a oposição.

Desde quando Obama afirmou que as armas químicas era a “linha-limite”, era claro que elas seriam utilizadas. Cui prodest? como costumavam perguntar os romanos. Quem se beneficia? Claramente, não o regime sírio.

Há várias semanas, dois jornalistas do Le Monde já tinham descoberto as armas químicas. A questão é: de fato foram usadas, quem as lançou? O governo Obama e seus seguidores gostariam que acreditássemos no seguinte enredo: Assad permitiu que os inspetores de armas químicas da ONU entrassem na Síria; então, anunciou a chegada deles lançando um ataque de armas químicas contra mulheres e crianças, a mais ou menos 15 quilômetros do hotel onde estavam hospedados. Isso simplesmente não faz sentido. Quem, então, cometeu a atrocidade?

No Iraque, sabemos que foram os EUA a utilizar “fósforo branco” em Fallujah, em 2004 (não havia “linhas-limites” exceto aquelas traçadas no chão por sangue iraquiano). Portanto, a justificativa é tão turva quanto nas guerras anteriores.

Desde a invasão e guerra no Iraque, o mundo árabe está dividido entre sunitas e xiitas. Apoiando a invasão à Síria estão dois velhos conhecidos: Arábia Saudita e Israel. Ambos querem o regime do Irã destruído. Os sauditas, por disputas de facção; os israelenses, por estarem desesperados para acabar com o Hezbollah. Esse é o grande objetivo que têm em mente e Washington, após resistir por um tempo, está voltando a considerá-lo. Bombardear a Síria é o primeiro passo. (…)

Os iranianos reagiram fortemente e ameaçaram retaliação apropriada. Pode ser um blefe, mas o que isso revela é que até o novo líder “moderado”, prestigiado pela mídia ocidental, assumiu posição não distinta à de Ahmadinejad. Teerã compreende bem o que está em jogo e por quê. Cada uma das intervenções ocidentais no mundo árabe e seus arredores tornou as condições piores. Os ataques que estão sendo planejados pelo Pentágono e suas filiais na OTAN provavelmente terão o mesmo padrão.

Enquanto isso, no Egito, um Pinochet árabe está restaurando a “ordem” da velha maneira violenta já consagrada e com o apoio dos líderes, ligeiramente constrangidos, do conglomerado EUA/Europa.

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* Original do London Review of Books, tradução de Vinícius Gomes.

- Recomendamos ainda a excelente conversa entre Tariq Ali e Noam Chomsky , Esta democracia está com problemas muito sérios .

22 agosto, 2013

A geração bit se assenhora da comunicação, mas a revolta está no ar

Nature morte au crane


A Geração Bit

A velha mídia está derretendo sob o sol a pino de novas formas de consumo da informação. Os abalos sofridos por ícones tradicionais do jornalismo se sucedem. O que sobrará dos velhos modelos?

Uma guerra de titãs se processa no campo da comunicação e da tecnologia da informação, envolvendo pelo menos três atores essenciais: os grandes grupos financeiros (bancos e seus financistas), as grandes corporações do mundo da informação e da comunicação e os governos.

Quem agora puxa o ritmo das transformações são o que chamo de barões digitais, ou Geração Bit (de Bill Gates, da Microsoft; do finado Steve Jobs, da Apple; Mark Zuckerberg, do Facebook; Sergey Brin e Larry Page, do Google, Jeff Bezos, da Amazon, e tantos outros que não param de surgir), todos de trajetória meteórica.

Por enquanto, eles agem em conluio com os velhos gigantes das telecomunicações. O problema é que o principal negócio das telecons está se transformando. Dentre em breve, será quase exclusivamente o de entregar os produtos empacotados pelos barões digitais, pura e simplesmente. A sorte das telecons está, literalmente, por um fio. Se houver inovações que tornem a interligação física dispensável ou menos rentável do que o necessário para cobrir os custos de sua infraestrutura, as telefônicas passarão a ser a bola da vez do canibalismo dos barões digitais.

Mais cedo ou mais tarde, os velhos capitães das telecons terão que encarar diretamente os criadores da atual fase da era digital. Ambos os lados irão reinstalar o teatro que, há um século, se dava em torno de ferrovias, petróleo, energia elétrica e siderurgia. Na segunda metade do século XIX, esses barões ladrões se abraçavam e se apunhalavam o tempo todo. Algo similar deve ocorrer na era digital entre o baronato sem fio e o com fio, em duelos em que as armas serão telefones (fixos e móveis), computadores portáteis e televisores. Nenhum deles deve desaparecer. A grande incógnita não é quem irá vencer, mas sim como e quando os barões digitais da Geração Bit irão enterrar os telecons, e se alguém dentre as telefônicas irá mudar de lado a tempo para evitar ficar pequeno, como aconteceu com a IBM, a Xerox e a Kodak.

O entrechoque vai ditar os novos rumos da comunicação global. Aqueles que prevalecerem desse confronto irão transformar definitivamente o mundo das comunicações.

Os Cavalos de Troia

Os governos aparecem como peças chave dessa equação. Eles são propulsores das estratégias comerciais e industriais dos grupos econômicos que estão à frente das inovações que reinventam o mundo em que vivemos. Patrocinam as estratégias desses grupos, compram seus produtos e os alimentam de informação vendida como notícia.

O complexo militar é normalmente responsável por investir recursos maciços em tecnologias inovadoras que, posteriormente, ganham versões de mercado. Hoje se sabe o quanto tais tecnologias continuam sendo capturadas por objetivos militares e de influência geopolítica.

Celulares, tablets, notebooks e televisores, vendidos em lojas de varejo e dados aos montes em época de Natal, aniversário e Dia dos Namorados, são presentes de grego que trazem em suas barrigas soldados digitais (como era Edward Snowden), recrutados para abrir os portões das atividades, das preferências e dos pensamentos de cidadãos, empresas e governos, onde quer que estejam.

A comunidade de informação dos EUA continua se banqueteando de todos nós, a cada clique, como vermes escondidos. Graças a Snowden, descobrimos que o grande problema da internet não são os piratas, são os corsários, ladrões de informações preciosas a serviço dos governos. Ao invés de empunharem a bandeira de ossos cruzados, vestem uniformes e hasteiam as bandeiras de seus países.

Em meio a tudo, o outrora grande negócio do jornalismo tornou-se apenas um detalhe. Neste instante, completa-se uma longa trajetória que começou, no século XIX, do jornalismo, enquanto profissão - “profissão liberal”, como se dizia no passado daqueles que trabalhavam por conta própria e recebiam o quanto lhes era pago diretamente por seus clientes. No século XX, o jornalismo abriu um grande mercado – o da comunicação de massa. Suas corporações carregavam o portentoso título de “a grande mídia”. Eram titãs nos velhos tempos. Alguns ainda são. Em pouco tempo dirão, como a personagem do filme “Crepúsculo dos deuses”: “eu sou grande! O mundo é que ficou pequeno”.

A trajetória hoje se completa com o jornalismo e a informação sendo transformados simplesmente em um produto. Um produto cada vez menor, rasteiro e descartável. Em uma visão dialética, se percebe que esse já era o destino para o qual os grandes veículos estavam transformando o caráter da notícia. Hoje, provam sua amarga colheita e se sentem envenenados.

Entre tantos sinais do derretimento colossal, o mais recente e apoteótico foi a compra do Washington Post pelo fundador e chefão da Amazon.com, Jeff Bezos. O Post custou o preço de um quadro de Paul Cézanne.

Pior destino tiveram muitos outros jornais. Eles se dividem entre os que desapareceram, os que permanecem em estado vegetativo e os que entraram em autofagia. A maioria resiste fazendo dos jornalistas suas principais vítimas, com demissões em massa e enxugamento das redações e editorias.

O titã tornou-se, ao fim, um Titanic. Foi essa a metáfora mais emblemática da venda do Washington Post a Bezos. O jornal encontrou seu iceberg, e é sobre ele que o negócio do jornalismo, prostrado, lança suas esperanças de abrigar-se. É sobre sua plataforma gigantesca e reluzente que se busca refúgio e alívio contra um destino pior: afundar.

O mesmo Bezos já havia vaticinado:

"A internet está transformando quase todos os elementos do negócio das notícias: reduziu os ciclos noticiosos, erodiu as fontes confiáveis de receita e abriu espaço a novas formas de competição, entre as quais as que têm pouco ou nenhum custo para a produção de notícias".

A notícia como mercadoria

O grande negócio do jornalismo, ao transformar a notícia em mercadoria, hipotecou sua independência. O “jornalismo independente” significava, no princípio, que o jornalismo era um negócio próprio, autônomo. Sua principal fonte de receita era a venda em bancas e as assinaturas. É esse modelo que está em crise.

Cada vez mais, os velhos jornalões estão sendo comprados ou por grandes financistas (como John W. Henry e Warren Buffett) ou por grupos de telecomunicações e novas mídias digitais (como Carlos Slim e, agora, Bezos). Bezos é o primeiro da Geração Bit a entrar pela porta da frente do mundo jornalístico. Antes dele, e pela porta dos fundos, o Google ameaçou fazer um estrago no jornalismo tradicional similar ao provocado pelo Youtube na indústria do entretenimento. Rodando resumos de notícias extraídas diretamente dos jornais, em tempo real, em seu motor de busca, ele provocou uma diminuição na propensão dos leitores de gastarem um clique a mais para visitar as páginas dos jornais, definhando a estatística que alimenta sua publicidade.

O jornalismo de grande escala é cada vez menos um negócio em si e cada vez mais uma parte de outros negócios. É um produto a mais na grande lista de produtos das grandes corporações digitais de entretenimento.

Porém, a dialética da nova comunicação digital, se em escala global levou à sua transformação completa em mercadoria, em escala local produziu uma nova versão do jornalismo enquanto atividade militante, dedicada ao desmascaramento das relações ocultas entre o público e o privado. Também tem se revelado fundamental à proclamação da identidade de novos atores, com novas agendas na relação entre Estado e sociedade.

De fato, esse jornalismo militante estava presente na origem do jornalismo contemporâneo. Desde os tempos longínquos de Marat (1743-1793) e seu jornal “O Amigo do Povo”, fagulha essencial para a Revolução Francesa. Também no jornalismo operário do século XIX e na imprensa revolucionária dos partidos proscritos pelos governos aristocráticos da velha Europa. Estava igualmente visível na primeira imprensa dos Estados Unidos, que Alexis de Tocqueville (1805-1859) registrou como uma das bases essenciais “Da Democracia na América” (título de seu livro de 1835). Naquela república que, segundo ele, trazia um padrão de governança que se espalharia por todo o mundo, havia um cidadão com uma característica peculiar: o gosto por ler jornais.

Não à toa, ali se conformaria uma ética e uma estética do jornalismo que se tornariam um padrão internacional, pelas mãos do célebre Joseph Pulitzer (1847–1911). Pulitzer, celebrizado pelo prêmio que funciona como um Nobel para os profissionais da área, reproduziu seu modelo de “independência”, zelo pela precisão das informações e rigor na apuração. Consolidou também o gosto dos jornais por títulos grandes e chamativos, imagens fartas, frases curtas, objetivas, diretas.

É importante lembrar o contexto de Pulitzer, de combate intenso do jornalismo contra os barões ladrões, crítica à política corrupta, capturada pelo interesse dos cartéis. Pulitzer fez parte de um processo importante de formação da consciência nacional que levou à formação do chamado “movimento progressista”, que levou à eleição de presidentes (Theodore Roosevelt, em especial) que enfrentaram a cartelização econômica e que forçou os partidos a um realinhamento de suas plataformas e de suas relações com a sociedade. Nos tempos de Pulitzer, o leitor era a fonte essencial da sustentação dos jornais. Os jornais, para vender, em alguma medida precisavam expressar o ímpeto por mudanças.

Paulatinamente, esse modelo foi superado. O jornalismo baseado no interesse do leitor foi transformado em jornalismo comercial, no qual a publicidade passou a ocupar um espaço fundamental. Ele não pode, francamente, se reivindicar independente. Ele não pode revelar suas relações íntimas com os grandes grupos econômicos e seus governos liberais. Como alternativa, sua pregação iconoclasta, sua simulação de independência e sua indignação se volta contra movimentos sociais, permanentemente estigmatizados, e contra governos progressistas, quase sempre nivelados por baixo e carimbados de corruptos.

A situação chega ao paroxismo no Brasil, onde, como lembra o professor Mário Schapiro, a corrupção e as práticas ilícitas “parecem corresponder a um mercado de ficção: o mercado em que só há a demanda, mas não há a oferta". Há corruptos por todo o Estado, mas o mercado de corruptores é apenas negócio.

Ele se encaminha para o que Manuel Castells (Communication, Power and Counter-power in the Network Society. International Journal of Communication, vol. 1, 2007, págs. 238-266) denominou “autocomunicação de massa”. Uma comunicação que não é unívoca e depois massificada, e sim proveniente de uma profusão de atores e autores. Por meio da troca multimodal, algumas mensagens provenientes de muitos e endereçadas a muitos ganham uma notoriedade viral.

Essa comunicação, dificílima de ser engarrafada pelos meios de comunicação tradicionais, é revolucionária por criar e recriar, o tempo todo, novos padrões comunicativos e narrativas inovadoras. Ao mesmo tempo, é uma comunicação descartável, que se desmancha no ar. Tende a gerar um Walter Cronkite por dia (Cronkite, 1916-2009, foi o respeitado âncora da CBS entre os anos 1960 e 1980), descartando-o no dia seguinte. É essa lógica do efêmero, movida pelo “on-line” e pela inovação de formatos e narrativas, que torna constante o descarte de profissionais, a repaginação dos lay-outs e a migração para novas plataformas eletrônicas. Estamos diante de um processo acelerado de destruição da atividade jornalística tradicional. O jornalismo não está morrendo. Está se reinventando. O que está morrendo é uma forma específica e datada de jornalismo.

Frente a toda essa dificuldade, a velha mídia do Brasil pisou distraída nas jornadas de junho - como foram apelidadas as manifestações ocorridas neste ano. Diante de novos padrões comunicativos e narrativas inovadoras, produzidas por atores multifacetados, os veículos de maior audiência resolveram brincar com fogo. Os maiores veículos não estavam seriamente interessados em saber o que estava acontecendo, e sim em direcionar o alvo do desgaste. Os especialistas de plantão eram os de sempre, inaptos a dar opiniões que realmente fizessem algum sentido em relação às pautas das manifestações.

Em pouco tempo, uma imprensa desacostumada a uma pluralidade de atores, sobre os quais praticou a delicada censura do silêncio, tornou-se ela própria um alvo evidente dos protestos. As grandes multidões eram compostas de inúmeras e diversas “multidinhas”. Em comum elas tinham, no mínimo, uma desconfiança em relação à velha mídia, mas alguns grupos demonstraram uma franca aversão e até ódio aos veículos mais tradicionais.

A revolta da comunicação das ruas

A tentativa da velha mídia de dublar as opiniões das multidões, com uma tradução enviesada por seus próprios interesses, gerou revolta entre os transeuntes e foi rechaçada de forma agressiva pelos manifestantes, que hostilizaram e expulsaram todos os jornalistas que se apresentavam na multidão com o símbolo dos grandes grupos de comunicação. Mesmo alguns de nossos melhores jornalistas, críticos e acostumados a mostrar o outro lado, foram nivelados por baixo. Algo que não se justifica, mas se explica.

De positivo, houve a eclosão de uma infinidade de comunicadores populares, com uma ideia na cabeça e um smartphone ou uma pequena câmera na mão. No Brasil, um desses grupos ganhou identidade em torno da Mídia Ninja. Mas há uma centena de pessoas e de grupos populares de comunicação espalhados pelo Brasil, surgidos em torno da vontade de mostrar o que ninguém vê. Se somarmos a isso a comunicação popular comunitária, a conta passa dos milhares. A única diferença para os Ninjas é que eles não surgiram das manifestações de ontem, e sim há um bom tempo, e ainda não escreveram seu manifesto.

Ao por em ação um novo padrão comunicativo, colocam em xeque o padrão tradicional de comunicação jornalística, publicitária, de eventos (como a Copa), e mesmo da comunicação digital. O jornalismo impresso era responsável por apresentar, diariamente, “uma condensação totalizante de determinada visão de mundo”, como lembra Maringoni (Jornal, o fim de uma concepção). O jornalismo alternativo e popular ganha sentido com uma visão horizontal, crítica da sobredeterminação do mercado sobre as políticas públicas do Estado. Longe do mito da isenção e da imparcialidade, sua objetividade é garantida justamente pela possibilidade de estar próximo à ação popular ou de ser parte dessa própria ação.

Também essa visão engajada estava presente na origem do jornalismo. No entanto, o novo padrão comunicativo não é mais o velho engajamento dos publicistas, como o de Émile Zola (1840 - 1902) em seu “J’accuse”, ou o jornalismo de Samuel Weiner (1912-1980), que tomava partido pró-Getúlio Vargas (1930-1945). O velho publicismo e o jornalismo partidário faziam, no primeiro caso, um apelo à consciência nacional. A comunicação popular e alternativa é parte do próprio alinhamento de setores da sociedade que ganham expressão comunicativa. Em meio a uma feroz disputa política, os velhos publicistas eram como heróis da consciência nacional adormecida. Hoje, os que fazem a comunicação de movimentos sociais e de atos de revolta buscam sobretudo registrar, e não orientar tais iniciativas.

O engajamento hoje se dá na relação com movimentos populares, dos quais sua comunicação brota e depende. Se (ou quando) tais movimentos se recolhem, essa comunicação tende ou a murchar ou a ganhar maturidade e permanência, como foi no caso da experiência da TV dos Trabalhadores. Ou hibernam junto com um outono das mobilizações, até que ressurjam com força, ou ganham nova forma e novo sentido.

O jornalismo mambembe diante dos governos que se comportam como empresas

Infelizmente, as formas de comunicação plurais, de pequena escala, que interessam ao cidadão que vê o mundo de sua janela, estão fora do radar da comunicação governamental. Os governos, que deveriam ser os principais interessados em comunicar para a cidadania, agem no mercado publicitário sem qualquer diferença em relação ao que fazem as fábricas de cerveja, as lojas de varejo e as montadoras de automóvel.

Há preocupações extremadas com a possibilidade, por exemplo, de financiar mídias que cobrem protestos - possivelmente, mais pelo fato de que as manifestações criticam todos os governos, como é próprio da luta pela cidadania. A luta por direitos sempre foi antecipada por revoltas, algumas violentas. Do ludismo dos ingleses e das sabotagens dos franceses, que jogavam seus “sabots” (tamancos) dentro das máquinas, contra a Revolução Industrial; dos protestos violentos de 1º. de maio de 1886 pela redução da jornada de trabalho; das passeatas pelo voto das mulheres (as sufragistas); das greves operárias de 1978 e 1980 que confrontaram a ditadura no Brasil; dos Occupy, nos EUA; dos indignados, na Espanha; dos revoltosos da Primavera Árabe. O mesmo vale para as jornadas de junho. Os movimentos que se tornaram vitoriosos foram aqueles que transformaram a revolta e a destruição em politização das pautas e em partidarização de bandeiras que foram progressivamente sendo institucionalizadas, ou seja, se tornaram regras. Uma dessas bandeiras ainda à espera de quem as empunhe com mais firmeza é a da democratização da comunicação.

Dizem que não se pode financiar mídias que, entre outras coisas, podem verbalizar protestos, mas não se tem pudor algum em anunciar em programas cujos apresentadores defendem que bandido bom é bandido morto, ou programas humorísticos em que as principais piadas são contra negros, mulheres, nordestinos e homossexuais. Se os índices de audiência justificam o gasto, não importa o gosto, não importa, nem mesmo, a mensagem (!?). Financiar o conservadorismo é normal. Financiar a mudança é um perigo.

Os governos chamam de “mídia técnica” aquela que é medida pelo Ibope e pelo Índice de Veiculação de Circulação de jornais e revistas (o IVC). Se esquecem de dizer que o Ibope e IVCs dessas mídias é diariamente alimentado por um mercado de informações privilegiadas, cujos lucros vem dos “furos” e das entrevistas exclusivas concedidas apenas para “os grandes”. A informação produzida pelo Estado é um bem imaterial, mas que custa dinheiro público para ser produzida. Pois ela é rotineiramente dada privadamente de bom grado, conforme relações de amizade e interesses de evidência ou jogada pela janela da cizânia de autoridades maiores e menores dos próprios governos. Sem licitação, sem transparência, sem critérios republicanos. Muitas vezes em segredo, o que é algo proibido pela lei que rege o serviço público (salvo raras exceções), mas é afrontosamente tolerado sob o charmoso apelido de “off”.

A “mídia técnica” gasta absurdamente mais recursos em TV do que em rádio, embora o consumo de informação dos brasileiros pelo rádio esteja praticamente no mesmo patamar do da TV. Gasta-se injustificadamente mais do que se deveria em jornais e revistas do que em internet. Gasta-se muito com poucas empresas de comunicação, e pouco com os profissionais que fazem a comunicação. A esmagadora maioria dos profissionais da comunicação está fora do pequeno circuito da velha mídia.

Esse é um debate essencial e que precisa mudar de patamar. É preciso olhar ao redor o que acontece no mundo da nova comunicação digital e no que ocorreu bem debaixo de nosso nariz, após os protestos. A comunicação alternativa e popular não pode ser tratada como um jornalismo mambembe, que sobrevive de centavos jogados pelos transeuntes sobre um chapéu virado.

Sua principal virtude é tratada como um defeito pela visão oficial, dado o viés meramente comercial. A comunicação popular e a alternativa não são estritamente jornalismo. São mais do que isso: são comunicação. Sua principal atividade não é apenas relatar e opinar (isso também), e sim dar voz, documentar ações e personagens muitas vezes invisíveis, contar histórias de quem é silenciado pelos meios tradicionais. Sua vocação não é a da massificação, mas a de públicos segmentados – melhor seria dizer, públicos especiais. Ela caminha pelo que Castells chama de “pequenos meandros”, as redes de relacionamento social que precederam as ferramentas eletrônicas criadas para facilitar a produção e entrega de suas mensagens.

Essa comunicação não se dedica ao mercado, e sim à cidadania. Talvez por isso a maioria das áreas de publicidade dos governos, colonizada pela visão marqueteira, não sabe exatamente o que fazer com ela.

Deveria ser acolhida de forma pública e transparente nas estratégias de financiamento das políticas públicas que interessam ao fortalecimento da pluralidade, da democracia, da radicalização dos direitos de cidadania. É claro que essa possibilidade inovadora só poderia existir em governos que também não encarassem a notícia como mercadoria. É difícil encontrá-los.

Assim que Jeff Bezzos comprou o Washington Post, surgiram várias especulações sobre o que ele afinal pretende. Se Bezos estiver pensando grande, pode criar um novo modelo de negócio para o jornalismo, fazendo desaparecer muitos jornais, assim como, com o Kindle, seu leitor de livros digitais, ajudou a fechar várias livrarias por todo o país. Outra hipótese é a de que, se estiver pensando pequeno, Bezos usará o Post apenas como instrumento para aumentar sua influência em Washington - convenhamos, Bezos não precisa do Post para isso, basta seu dinheiro. Alguns ainda disseram que ele quer, além da marca do Post, se aproveitar de uma parcela preciosa da inteligência nacional, aquela formada pelo excelente time de profissionais da notícia que vive sob o manto e o mito do jornal que derrubou Nixon. Provavelmente, Bezos está pensando não em uma, mas em todas as opções anteriores.

A que me parece mais instigante é justamente a da inteligência nacional. No Brasil, ela está sendo demitida dos jornais e partindo para voos solo, em blogs ou em novas organizações coletivas, micro, pequenas e médias; comunitárias ou cooperativas. Isso deveria interessar aos governos que pretendam uma política ousada e republicana de comunicação, capaz de relacioná-la mais aos direitos de cidadania do que ao Ibope. Uma política que se aproveitasse mais da extraordinária capacidade e inteligência dos jornalistas do que das marcas dos veículos que as transmitem. Afinal, tais marcas são efêmeras e decadentes. É melhor investir em quadros de Paul Cézzane. No futuro, eles valerão bem mais.
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Antonio Lassance é cientista político e pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). As opiniões expressas neste artigo não refletem necessariamente opiniões do Instituto.

Muito mais que médicos

por Denise Queiroz

imagem garimpada do google

A questão dos médicos acabou expondo uma ferida pouco visível do sistema brasileiro de desenvolvimento e que, obviamente, tem a ver com todo o restolho cultural que a sociedade industrializada e de consumo cria: a orientação urbana.

Num país onde até a década de 50 a população era majoritariamente rural (link) e que teve um salto desenvolvimentista impulsionado primeiro na era Vargas e depois pelos militares baixo o slogan ‘este é um país que vai pra frente’, o produzir, manufaturar, plantar e colher do campo foram sendo colocados num segundo plano. Para sermos aceitos como ‘grandes’ precisaríamos produzir em grande escala. Não à toa, verifica-se que boa parte da cobertura vegetal do país quase foi dizimada junto com a cultura do trabalho de produzir para comer - o que implicava também numa convivência comunitária de trocas, desde sementes até doces, passando por pães, receitas, farinhas, carnes dos bichinhos criados ‘para ter’.

A ‘cidade grande’ com suas luzes passou a ser o alvo da cobiça de um modo de vida onde o progresso, o sucesso, a ‘cultura’ estavam ao alcance. O povo do campo, tratando como caipira no pior sentido que a palavra pode ter - atrasado, pouco civilizado - aos poucos deixa de lado até seu linguajar típico e rico de palavras e expressões definidoras, e o substitui pelos jargões massificados, vendidos como sabão em pó pelas novelas e programas patrocinados por essa indústria, a do sabão.
Viver no interior e do que se é capaz de produzir para consumo passou a ser símbolo de pouca ‘civilização’ e de pouco acesso ao ‘bom' e até de sujeira. Cultura tão avessa é criada, que não raro conhecemos pessoas que negam sua origem geográfica ‘interiorana’, pois, após higienização pasteurizada em boas universidades das capitais, nos shoppings, lojas de departamentos, clínicas estéticas e cabeleireiros, se igualam aos oriundos do que passou a ser sinônimo de ‘desenvolvimento’ e ‘bem viver’, os da cidade.

Algumas décadas depois dessa criação cultural que buscava mão-de-obra barata, o desconhecimento do modo de vida que deu origem à maior parte das pessoas que hoje se amontoam em ruas mal tratadas das grandes cidades é tal, que não se pode mais criticar os norte-americanos pelo seu desconhecimento geográfico do resto do mundo. Jovens universitários brasileiros em congressos aos quais alguns comparecem para ‘ter currículo’ olham com desprezo estudantes de universidades desconhecidas (por pouco expostas à mídia hegemônica) do interior do país. E acabam arregalando os olhos ao saber que muitas cidades de 300 ou 400 mil habitantes de estados distantes demais das grandes metrópoles são capazes de produzir não só conhecimento, mas tecnologia de ponta em algumas áreas.

Desde o sistema educacional básico, onde informações sobre cidadania são dadas en passant e textos para análise e aprendizado são baseados em programas televisivos e personagens de telenovelas, ‘pois fica mais fácil trabalhar uma vez que os alunos estão familiarizados com o tema’, até as universidades tradicionalmente bem conceituadas, o modus vivendi urbano é disseminado. 

A quem compete a mudança? Quem vai ser o responsável pela verdadeira revolução deste país, que é mostrar aos brasileiros a enorme riqueza cultural que desperdiçamos diariamente ao acompanhar ficção patrocinada por uma indústria que nada mais visa o consumo? Como reverter a dominação cultural de lixo pasteurizado e valorizar o regional, o autêntico, transformar o local em central e motivo de orgulho que ultrapasse as fronteiras de pequenas comunidades?

É tragicômico que crianças criadas em comunidades rurais, distantes miles de quilômetros de grandes centros metropolizados, reproduzam o modo de vestir, dançar, falar, da cultura do rap, por exemplo. Mas essa cultura lhes chega pelas ondas da TV, agora que já quase não há mais casas sem eletricidade e televisão. O estilo ‘da moda’ aparece no programa dominical – de qualquer emissora aberta – e também na telenovela e no noticiário, até em horário nobre, quando celebridades construídas são chamadas a opinar sobre grandes temas nacionais... O apelo é tal e tanto que parece àquela pessoa, lá do interior do Pará ou de uma comunidade alemã nas montanhas catarinenses, que não há outro modo possível de viver. Até as favelas - onde só em São Paulo cerca de um milhão de pessoas vivem exprimidas, à margem do ordenamento civilizatório prometido pelo imaginário ficcional construído do ‘desenvolvimento’ - são glamourizadas.

Talvez uma das grandes mentiras criadas pela publicidade é o slogan daquela rede de TV que assegura que ‘a gente se vê por aqui’. A canção do Aldir Blanc, imortalizada por Elis, já dizia que ‘o Brazil não conhece o Brasil’.  A resistência dos novos profissionais - não são só os médicos, ressalte-se - em se bandearem para onde são necessários, é prova disso. É prova também de que, apesar dos indicadores, do censo, dos estudos sérios que vem sendo conduzidos e encaminhados desde pelo menos a década de 30, buscando uma forma de desenvolver o país e apontando falhas, cada vez mais gritantes, nas opções tomadas pelos que governaram e vem governando, pouco foi feito.

As cidades grandes ficaram enormes, invivíveis. As médias ficaram grandes e o individualismo, antes restrito a quem morava empoleirado nos edifícios de apartamentos, agora é a norma até para quem vive em cidades onde há 30 anos havia um povoado. A fartura de tanta terra se amontoa nos portos à espera do embarque, enquanto o roçado vira capoeira outra vez porque os velhos, já sem forças, não dão conta e ‘os meninos foram trabalhar na cidade, pois precisam do salário certo’.

Louvável que se contrate mais médicos para tratar da saúde física, essencial, de tanta gente de tantos lugares, pois também a procura por saúde é uma das razões de abandono do campo. Que a mesma urgência seja aplicada em tratar da saúde cultural, para modificar e reestruturar o modelo de desenvolvimento, antes que o paciente Brasil entre em estado vegetativo.
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Para pensar mais, sugerimos: 

Atlas da questão agrária no Brasil 

Morte de criança abre os olhos para realidades

20 agosto, 2013

Hipólito da Costa era Ninja


A Saga dos marginais

Casa onde nasceu Hipólito da Costa, Colônia de Sacramento, Uruguai, 2004, arquivo pessoal 

por Alberto Dines 

Há um clima de estupidez no ar. Estupidez no sentido de barbárie, estupidez no sentido de estultice. Felizmente longe das guerras, damos a volta ao mundo em busca de um belicismo extemporâneo que distribui tacapes a quem deveria ocupar-se em construir consensos.

Para enfrentar o frio e/ou o esvaziamento das redações, nossa mídia empenha-se num esquentamento generalizado. Quer barulho, calor. A vítima do mais recente exercício de tiro ao alvo tem sido a nanica Mídia Ninja, subitamente alçada à posição de destaque pela própria grande mídia.

Arrependida e para não se desmoralizar, girou para o lado suas metralhadoras midiáticas e descarregou seu furor contra o coletivo musical chamado Fora do Eixo, onde o projeto Ninja foi incubado. O criador desse circuito alternativo, Pablo Capilé, foi convertido em Inimigo Público nº 1 e em seguida linchado pelas manadas de predadores das redes ditas sociais. É possível que o FdE tenha cometido erros e enveredado pelo caminho das simplificações, mas qualquer experiência antes de ser bem sucedida atrapalha-se com enganos.

A Mídia Ninja, comandada por Bruno Torturra, passou a chamar a atenção no exato momento em que o país começou a reparar nos absurdos e abismos para os quais estava (está?) sendo conduzido. Tal como as Jornadas de Junho, é um fenômeno – e os fenômenos precisam ser observados, comparados, referenciados, discutidos. Sobretudo aproveitados.

Injeção de ânimo

História é mudança, jornalismo é mudança em alta pressão, mudanças não percebidas geram desastres. Em abril passado, a indústria jornalística brasileira finalmente assumiu a sua crise identitária e estrutural. Em junho, enquanto a sociedade ia para as ruas tentando vocalizar suas frustrações, patenteou-se a incapacidade de nossa imprensa – e de nossas lideranças políticas, acadêmicas e administrativas – em perceber o que acontecia além dos respectivos umbigos.

A Mídia Ninja destacou-se naquele momento. Foi parar no Jornal Nacional – o registro oficial, autorizado, do que acontece. E essa façanha não foi casual, resultou da pasmaceira generalizada, do culto aos formatos rígidos e à inovação burocratizada.

Os Ninja entraram em campo com a tecnologia a serviço da autenticidade, da instantaneidade, e não a serviço da cosmética, do glamour e da falsa informalidade. Não chegou a ser um sacolejo real, foi uma promessa de movimento. Ninguém discutiu o seu “modelo negócio”, todos se animaram com o modelo de despojamento.

O fenômeno equivale ao acontecido nos anos 1960-70, durante a ditadura militar, quando uma imprensa amordaçada ou autocensurada só conseguiu aproveitar as lições e paradigmas da imprensa alternativa,udigrudi (de underground) ou nanica, quando o processo de distensão política já estava em andamento.

Qual era a matéria-prima da imprensa alternativa? A informação não censurada, a opinião livre, A Folha de S.Paulo foi atrás: não apenas criou uma página de opinião (que até então não tinha) como foi preenchê-la com a contratação de um punhado de marginalizados e punidos pela ditadura. Meses depois criou a segunda página de opinião (inspirada na op-ed-page dos americanos) e chegou mesmo a atrair para a equipe do jornal alguns azes da imprensa alternativa (o mais notório, Tarso de Castro, egresso do Pasquim). Pouco depois, o jornal foi obrigado a recuar, esqueceu o surto libertário, e o resto da imprensa fingiu que nada acontecera.

Se não for atalhada, constrangida e manietada, a Mídia Ninja poderá equivaler em matéria de adrenalina, descontração e invenção aos nanicos e alternativos de quarenta anos atrás. Queiram ou não aqueles e aquelas que se consideram proprietários exclusivos da experiência alternativa.

Sentido de direção

A edição do Economist de 10/8 (pág. 30) relembra a história do estudante Soe Myint, que conseguiu escapar da brutal repressão dos militares da antiga Birmânia (hoje Myanmar), refugiou-se na Índia e lá criou uma agência de notícias usando uma rede clandestina de repórteres. O país prepara-se hoje para eleições livres e esses repórteres marginais estão em postos-chave da grande imprensa birmanesa. Eram alternativos, algo Ninjas, fizeram bom jornalismo, ficaram.

Perseguido pelo senador Joseph McCarthy, o repórter investigativo Isidor Fainstein entrou para a história do jornalismo americano como I.F. Stone. Ao longo de 17 anos, escreveu e editou sozinho um newsletter semanal com a melhor cobertura da política americana. Era um Ninja, tornou-se paradigma, instituição.

Antes dele, em 1808, um conterrâneo refugiado em Londres para escapar das malhas da Inquisição lançou um mensário que escreveu e editou sozinho durante 14 anos, o Correio Braziliense. Hipólito da Costa foi um clássico Ninja e tornou-se o patriarca da imprensa livre em língua portuguesa.

Os Ninja capazes de entender o conceito de renovação poderão dar sentido e direção a uma mídia engessada e baratinada.
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Hipólito da Costa, biografia  

18 agosto, 2013

Sobre a violência nas manifestações de rua

por Pablo Ortellado 
do Facebook

O democrático Estadão não aceita réplica para artigos de opinião, então publico por aqui minhas considerações sobre o artigo do Demétrio Magnoli que saiu na edição de 15 de agosto do jornal. 

Imagem do UJCeará

No última quinta-feira, Demétrio Magnoli publicou no Estado de São Paulo um artigo intitulado "Nas franjas do Black Bloc" no qual critica uma declaração que dei a este mesmo jornal duas semanas antes tentando explicar a natureza das ações do Black Bloc. Minha declaração buscava resgatar a origem do Black Bloc no movimento social alemão dos anos 1980 e sua ressignificação no movimento contra a globalização econômica no final dos anos 1990.

Na declaração que dei ao jornalista Bruno Paes Manso ressaltava que o Black Bloc nasceu no movimento social alemão como um grupo que se vestia de preto e se dedicava a proteger as manifestações de rua da infiltração de agitadores e do ataque repressivo da polícia. Na sua segunda aparição, nos anos 1990, o Black Bloc ressurge como uma tática predominantemente simbólica que deve ser entendida mais na interface da política com a arte do que da política com o crime. Isso, porque a destruição de propriedade a que se dedica não busca causar dano econômico significativo, mas apenas demonstrar simbolicamente a insatisfação com o sistema econômico ou o sistema político.

Há, obviamente, uma ilegalidade no procedimento de destruir uma agência bancária ou um edifício governamental, mas é justamente a conjugação de uma arriscada desobediência civil e a ineficácia em causar prejuízo econômico à empresa ou ao governo que confere a essa ação seu sentido expressivo ou estético, num entendimento ampliado. A destruição de propriedade sem outro propósito que o de demonstrar descontentamento simboliza e apenas simboliza a ojeriza à exploração econômica ou à dominação do estado.

Essa análise descritiva do que eu acredito ser a natureza e o objetivo desse tipo de ação foi considerada por Magnoli um elogio irresponsável que levaria à legitimação da violência como estratégia de luta. Para ele, explicar para o público de um jornal qual é a história e qual é o propósito da ação de um movimento social é fazer perigosa apologia.

Magnoli traça um paralelo entre o que eu disse e o que disseram alguns teóricos do movimento social italiano que foram injustamente acusados de serem os responsáveis pelas ações armadas que aconteceram naquele país nos anos 1970. Na sua análise, ele primeiro conecta os escritos teóricos da tradição autonomista à luta armada de grupos de outras correntes políticas com os quais esses textos não tem relação; em seguida, de maneira muito anacrônica, sugere que da mesma forma que alguns movimentos de ação direta daquele período passaram à luta armada, também o Black Bloc poderia seguir esse caminho, a despeito do abismo que separam esses dois momentos históricos.

Como tinha declarado que não considerava violenta a estratégia do Black Bloc porque sua ação era orientada a coisas (agências bancárias ou prédios governamentais) e não a pessoas, Magnoli sugere que também na Itália os atentados armados contra pessoas poderiam ser considerados como voltados a coisas se essas ações fossem vistas como ataques a "símbolos do sistema".

É preciso dizer que essa despropositada inferência que objetifica a vida humana não foi feita pelo Black Bloc que, ao contrário das forças policiais e de comentaristas que legitimam a ação repressiva, tem demonstrado saber a diferença de valor entre uma vidraça e a integridade física de um ser humano.

Estado precário de direito

por Denise Queiroz

Imagem do blog Eu e meu chapéu

Os centavos que levam milhões de brasileiros às ruas desde abril são apenas a ponta perceptível do quanto estamos distantes de um ideal de Estado Democrático de Direito. A maneira como a tarifa dos transportes coletivos é reajustada é só uma mostra. Por imediatamente influírem nas contas do fim do mês das famílias com renda baixa e que vivem nas periferias de metrópoles mal administradas, catalisaram a insatisfação que se estende a muitas outras áreas públicas.

A forma nada transparente com que são definidos os reajustes, evidenciam o quanto as manobras jurídicas são usadas, cotidianamente, em palácios suntuosos que abrigam servidores públicos muito bem pagos pelo Estado (nós). Reflete a podridão de um sistema que raramente serve à maioria e sempre aos que, desde muito antes de sermos um Estado, o usam em seu benefício.

Um somatório de fatos e injustiças praticadas pelos poderes que deveriam zelar pela inclusão, justiça e mínima qualidade de vida a todos que, involuntariamente, sustentam a máquina estatal – os impostos são recolhidos por uma bala ou um carro de luxo –, transforma-se facilmente em revolta ‘contra tudo que está aí’. E não há argumentos racionais capazes de explicar que não é bem assim, pois a cada dia fica mais evidente que só os 'elegidos' usufruem de benefícios que deveriam ser de todos. E isso acaba pondo em xeque o que a maioria dos que tem mais de 40 anos viveram: a reconstrução da democracia. 

Embora o sistema eleitoral funcione e elejamos a cada dois anos representantes, o que nos autorizaria a dizer que estamos num sistema democrático e vivemos plena cidadania ainda está longe de ser conquistado. O Estado ainda é um ente inatingível e os serviços mais básicos não são prestados ou, o são com falhas tais que comprometem seu bom desempenho. A democracia e cidadania restritas a poucos momentos passam a ser conceitos abstratos, lindos nos discursos marqueteiros das campanhas, pouco palpáveis na prática.
  
Embora as exceções, quantos dos inquéritos minuciosamente investigados e preparados por servidores bem intencionados chegam a um julgamento em que a Justiça é realmente aplicada?

Desde a caixa preta das planilhas de reajuste das tarifas de transporte, passando pelas indecentes emendas parlamentares - que na prática servem como financiamento de campanhas para que os mesmos de sempre, quase todos péssimos representantes eleitos, continuem usufruindo de um Estado privatizado - até a pena para o roubo de uma galinha ser aplicada com rigor em contraste aos habeas-corpus para os grandes contraventores, expedidos em trajes íntimos durante a noite, a sensação de injustiça é o que se sente.

Esse é nosso Estado de Direito. E não importa o partido de plantão. A estrutura está podre na base. Estamos mais próximos de um estado bárbaro do que de um democrático de direito, uma vez que o acesso ao que as leis deveriam garantir, se restringe a uns poucos, os mesmos de sempre, aos que fazem o mesmo jogo, ao podre. Aos que se negam ou tentam outra forma, a velha desqualificação fulanizada se encarrega de jogar no lixo.

Tem horas que a vontade é ir morar no meio do mato, sem rádio e sem notícia das terras ‘civilizadas’. Não mudaria nada, mas certamente viveria mais feliz,  pois é muito triste constatar que o que levamos anos para tentar construir está sendo destruído, minuto a minuto, por acordos espúrios e pela falta total de um mínimo de ética de quem exerce o poder nas várias áreas desta república. E ainda regiamente pagos com o pouco dinheiro da maioria.  

08 agosto, 2013

Kreeg-ah! Bundolo!


por Willian Fagiolo

Já adivinhou né? Lembrou-se? Tarzan of The Apes (Tarzan dos Macacos).

Edgar Rice Burroughs, o genial autor de Tarzan, nasceu na cidade americana de Chicago, em 1875, e só foi escrever sua obra prima aos 37 anos, vendendo-a por modestíssimos US$ 700.

Sua vida, nada fácil. Para sobreviver teve que se alistar no exército. Se bem que não em qualquer regimento, mas na 7th U.S. Cavalry in Arizona, aquela do General Custer. Logo saiu. Trabalhou na Sears. Também não deu certo. Em seguida, de fracasso em fracasso, teve que penhorar as joias da mulher para poder comprar comida.

A história de Tarzan todo mundo sabe. Após a morte de seus pais em um acidente de avião em plena selva, o sobrevivente “Tarzan”, ainda bebezinho, é adotado por um grupo de macacos, na África do século XIX. O formidável é que Burroughs nunca foi à África, nunca pisou na selva. Sua obra foi o resultado da mais pura imaginação, inspiração, criatividade, talento. Vitória de neurônios sobre tutanos. Escreveu 24 livros sobre o Rei das Selvas. Com efeito, não é exagero considerar Tarzan o mais célebre herói de ficção do século passado, ultrapassando em popularidade outros heróis igualmente famosos, tais como Mickey Mouse, Super Homem, Flash Gordon, Mandrake, Fantasma, Príncipe Valente, entre tantos.

Admiravelmente genial, Burroughs, para dar credibilidade a sua história, criou sua própria espécie de símios, os MANGANI, inventando para eles uma “linguagem rudimentar”. Na verdade, seleta linguística, muitos estudos sobre fonética, semântica, semiótica. O próprio nome Tarzan significa neste apatacado (em minha modesta opinião) idioma dos macacos: "Pele Branca".

Não tire conclusões apressadas, tsk, tsk, tsk. Bundolo não é o cara que nasceu na tribo dos Bundomoles, não senhor e senhora, meus jovens! Eu estudei a complexa língua dos Manganis.

A frase mais famosa da língua Mangani, talvez por ser a mais repetida, é "Kreeg-ah! Bundolo" (adaptada no Brasil como Bandolo), que pode ser traduzida como: Perigo! Matar! Cuidado! Matar! Ou ainda: Perigo! Inimigo!

Na onda de Burroughs navegaram, de corpo e alma, o linguista Marc Okrand, que criou o idioma KLINGON para a megasérie “STAR TREK”, que maravilhou fãs do mundo todo, e o escritor J.R.R. Tolkien, professor em Oxford, que em 1954 e 1955 elaborou mais de quinze idiomas para as civilizações que aparecem em “O SENHOR DOS ANÉIS”.

Sabe cumequié, gênio atrai gênio. Harold Foster foi o primeiro desenhista de Tarzan, sendo sucedido por outro monstro sagrado dos quadrinhos, Burne Hogarth. Lendas! Qualquer dia desses posso tentar escrever sobre eles. Passei muitos dias e noites tentando desenhar alguma coisa parecida com o que faziam. Esqueçam.


O cinema não fez jus a Tarzan. Os desenhos de Hogarth e Foster sim. Que fique entre nós.

Falando em Tarzan, o que eu queria mesmo, antes de submergir nos abençoados gibis da minha infância, era falar da Lei-da-Selva que impera nos dias de hoje. Minha mãe, dona Alice, dizia que “as boas ações dificilmente saem de nossas casas, entretanto, as más viajam milhares e milhares de quilômetros”.

Notícias ruins? Futricas? Badamecos? Todos ficam sabendo em segundos.

Dá-lhes sal grosso!

Então, como eu ia dizendo: Lei-da-Selva...

Os seres vivos que se alimentam de outra espécie tem um nome: PREDADORES.

Os seres vivos que causam algum prejuízo às plantações, predando ou parasitando-as também tem nome: PRAGA.

A cadeia alimentar é um dos mecanismos que regula o número de indivíduos de uma dada população e, caso ocorra um desarranjo em qualquer um de seus elos, o sistema entra em desequilíbrio.

As serpentes, por exemplo, têm um papel significativo neste equilíbrio. Muitas delas alimentam-se de pequenos mamíferos, como os ratos, evitando que estes se tornem pragas. Sendo assim, é de fundamental importância mantê-las em seu ambiente, desempenhando seu papel de controle populacional. Você sabia que tanto a jiboia, que não é peçonhenta, como a jararaca, que é peçonhenta, alimentam-se de pequenos roedores? Em muitas fazendas, onde as serpentes foram eliminadas pelos moradores, as plantações são prejudicadas pelo excesso de ratos. Pois é. Esse perigoso desequilíbrio está atingindo nossas sociedades. Digo sociedade de seres humanos.

Numa mundo onde os empregos e as oportunidades escasseiam, dia após dia, o instinto selvagem acaba prevalecendo. Homem devorando homem. Na pré-história o homem estava entre as criaturas mais frágeis da natureza (mais para caça do que para caçador), sendo por isso forçado a desenvolver habilidades para sua sobrevivência, o que o levou à criação de utensílios, armas e, posteriormente, de sistemas sociais. O jogo da sobrevivência, da escassez, da falta de criatividade, do imobilismo, joga às favas tudo quanto se refere à dignidade, consideração, respeito e sentimento. Ou seja, espezinha o que há de mais sagrado em cada um: a humanidade.

A miséria e a violência, nas suas várias acepções, jorram livremente por todos os cantos. Rastejando por debaixo da mesa, os predadores, aos bandos, à espera que alguma migalha lhes precipite, se destroçam uns aos outros por alguns bagaços, por alguns restolhos.

Os comparsas do Leviatã, em exuberantes fotos digitais coloridas, achincalham-se com o deprimente espetáculo. Argh!!!

Em tempo, lembrei-me de Marina Silva. Veio da selva como Tarzan. Não é? Tenta encontrar uma nova linguagem. Mas acho que ela deveria esquecer essa história de nova linguagem. Nova linguagem é incompreensível para quem quer comida, trabalhar, se divertir, acreditar em alguma coisa e voltar para casa em paz!

06 agosto, 2013

Uma roda que muda

por Denise Queiroz



Desde ontem nota-se um discurso cambiante na TL do twitter, a minha com grande parte de seguidos e seguidores militantes do PT. Embora desde junho, quando ‘as ruas’ ganharam outro significado que o de vias para trânsito ou endereço, e os ataques desclassificatórios da grande imprensa evidenciassem que o que estava lá eram as velhas pautas abandonadas pelos partidos de esquerda que assumiram o poder em 2002, parte da militância lhes fazia coro.

A ‘cegueira coletiva’ impedia alguns, que reconhecidamente tem alguma influência e relevância opinativa, de ver o evidente, colocado em posts em todas as redes, por parte de pessoas que estão diretamente relacionadas e atuando junto aos movimentos sociais que não fazem parte da agenda oficial.

Desde a semana passada, no entanto, talvez por insistência de alguns poucos visionários, ou pela divulgação de que o pessoal da mídia ninja é ligada ao movimento Fora do Eixo, (veiculado como crítica a eles) que aos poucos o discurso foi mudando. Em tempo.

Assinalar isso soa como chover no molhado. Mas temos que assinalar. Impressiona que, embora grande parte dessas pessoas entendam e postem milhares de alertas sobre a necessidade -cada vez mais premente- de regular a mídia, tenham levado tanto tempo e precisado de um programa em rede nacional para entender que o que está posto é regulação da mídia na prática, uma vez que pelos meios que espera-se numa democracia representativa (projeto de lei, discussão no congresso, votação, aprovação) essa regulação nunca virá... pelo menos não enquanto o sistema for mantido com essa representatividade vendida ao capital.

Agora falta ainda a alguns ‘formadores de opinião’ junto à militância das redes sociais, entender que o que foi mostrado pela mídia ninja e por aqueles posts, que foram antes desqualificados, é a realidade deste país.

As ruas, embora ainda num caldo morno e amorfo, mostraram que esse sistema - econômico, democrático, de organização da sociedade, ao qual os governos, em sua maioria, dão sustento - não serve. Entender que o que ‘as ruas’ querem é não mais o reformismo para adequar, e sim uma mudança estrutural. Aquilo que esses mesmos ‘formadores de opinião’ sempre quiseram, mas, uma vez no poder, em vez de lutar para que a transformação ocorresse, acabaram por usar um molde que se mostra vazado. 
Pois o caldo escorreu do molde e está tomando outra forma. Imperfeita, por enquanto, mas melhor que um molde que não serve mais. Ajudar a moldá-la será mais produtivo que tentar colocar em vidrinhos com rótulos velhos.

Leia: (no imperativo mesmo) Mídia Ninja e Casa Fora do Eixo: a explosão do novo


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