31 julho, 2013

O "Trenzão" do PSDB




por @Bob_Fernandes

O Movimento Passe Livre centra sua luta nos transportes públicos. E por isso volta às ruas a 14 de agosto. Volta por conta de uma denúncia: ao longo dos últimos 20 anos, num esquema de cartel e corrupção, governos do PSDB em São Paulo teriam lesado os cofres públicos em R$ 425 milhões.

O esquema teria sido montado para vencer concorrências na área de metro e trens. Com envolvimento de políticos e funcionários públicos de governos do PSDB paulista.

A investigação nasceu da devassa feita, no exterior, em duas multinacionais do setor: a francesa Alstom e a alemã Siemens. Com confissão de ex-funcionários, na justiça. Por lá já tem gente demitida e presa.

A Alstom aponta distribuição de US$ 6,8 milhões para integrantes do tucanato paulista entre 1998 e 2001. Um ex-funcionário da Siemens revelou: de outro contrato superfaturado, algo como R$ 46 milhões seguiram para gente do PSDB.

No Brasil, a denúncia é fruto de acordo feito pela Siemens com o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Em troca a multinacional ganha imunidade.

O uso do futuro do pretérito composto -teria, teriam, seriam- é uma imposição elementar do jornalismo. Isso são denúncias. Denúncias sobre o que seria um propinoduto tucano, mas não são fatos já julgados.

Será preciso, via ministério público e Justiça, investigar e apontar quem é culpado e quem é inocente. É claro que isso terá desdobramentos na política; o chamado "mensalão" do PT, por exemplo, está em cartaz há 9 anos.

O que não se deve esperar é o mesmo empenho, a mesma gana e, principalmente, o mesmo barulho. Cinco mil dólares na cueca de um petista é algo espetacular. Ir ao banco com carteira de identidade e receber 20 ou 50 mil de um "por fora" é também espetacular; além de ser crime, é rudimentar e é hilário enquanto método.
Tudo isso e muito, muito mais, alimentou o espetáculo do "mensalão". E o problema é do PT, que se enfiou nessa porque quis. Mas admitamos: R$ 425 milhões, com multinacionais e corrupção, é também enredo espetacular. Do PSDB.

A diferença está, estará na disposição de se ir a fundo nesse "trenzão" tucano. No investigar, noticiar e reverberar até a punição.

No Brasil tem os escândalos que existem. E tem escândalos que não se quer que exista. Para estes, reserva-se o estrondoso silêncio.

A propósito, recordemos o que disse Paulo Vieira de Souza, que depôs na CPI da Delta/Cachoeira. Em entrevista à Revista Piaui, o ex-diretor do Dersa paulista escancarou: "Por que a CPI proibiu abrir as contas do eixo Rio-São Paulo? Porque se abrir, cai o Brasil."

30 julho, 2013

Brasil: protestos por cidadania e direitos

Protestos foram registrados em todo país nos últimos dois meses

por @felippe_ramos
do Opera Mundi


Para compreender a conjuntura política do Brasil hoje e os protestos que tomaram as ruas em junho, é necessário desfazer três leituras equivocadas ou insuficientes: (a) sobre a realidade socioeconômica do Brasil; (b) sobre a composição, forma e orientação político-ideológica das manifestações de junho; (c) sobre o papel que deve e pode desempenhar a esquerda organizada face aos novíssimos movimentos sociais e as manifestações que eclodiram sem liderança identificável.

Após dez anos de governos encabeçados pelo Partido dos Trabalhadores (PT), o Brasil apresenta um cenário socioeconômico mais favorável do que o período neoliberal (década de 90). O boom das commodities iniciado em 2003 permitiu ao país viver um ciclo de expansão de exportações agrícolas e minerais para mercados asiáticos emergentes, principalmente a China, que passou a ser o principal parceiro comercial do Brasil.

Com mais divisas, equilíbrio macroeconômico e superávits comerciais sustentados, o presidente Lula, eleito nessa nova conjuntura macroeconômica, contou com a fortuna necessária para todo bom governo e soube administrar o país com a virtude do grande líder. A partir de uma correta (mas não a única possível) leitura da realidade (estrutura e conjuntura), o líder acabou por criar as condições da construção de uma nova hegemonia política que passou a ser nomeada lulismo e que consiste na constituição de uma ampla coalizão de partidos políticos, movimentos sociais, elites econômicas e grupos de interesse, capaz de promover a redução da miséria e da pobreza sem tocar em interesses fundamentais do topo da pirâmide social.

As políticas de transferência emergencial de renda (Bolsa Família) e a valorização do salário mínimo possibilitaram o crescimento do mercado interno, o que contribuiu, por meio de políticas anti-cíclicas por parte do governo, para proteger o país da crise econômica mundial eclodida em 2008. Essas políticas simultaneamente respondiam demandas das classes mais baixas (D e E) por inclusão social e demandas das classes mais altas (A e B) por equilíbrio e crescimento econômico.

A grande incógnita passou a ser a classe C, principalmente setores com mais renda nessa classe, que antes votava no PT e que passou a buscar uma terceira alternativa à alternância PT-PSDB. O grande pacto de classes permitiu, nesse sentido, uma gestão macroeconômica conservadora que não afetava interesses do grande capital, ao mesmo tempo em que impulsionava políticas sociais que recolocavam o Estado como importante agente indutor do desenvolvimento. Alguns autores chamam a isso, de forma um tanto imprecisa, de pós-neoliberalismo.



Alguns protestos acabaram se tornando verdadeiras praças de guerra

A fórmula lulista foi bem sucedida e reequilibrou a hegemonia política no país ao inserir não apenas as classes D e E do ponto de vista econômico, mas ao abrir oportunidades políticas aos atores com origem em movimentos sociais diversos (sindicais, estudantis, luta pela terra, minorias, etc.). Quadros administrativos e políticos em distintos escalões passaram a ser compostos por indivíduos com lealdades políticas diferentes do núcleo da hegemonia conservadora do pacto, o que possibilitou e legitimou a existência de conflitos intra e inter-institucionais que deram vigor e dinâmica ao próprio projeto que foi sempre tocado ao sabor da instável e mutante correlação de forças.

A tática foi lotear o aparato do Estado entre os interesses, de acordo com a força política dos agentes políticos: por exemplo, Ministério da Agricultura para o agronegócio; Ministério do Desenvolvimento Agrário para a reforma agrária e a agricultura familiar. O discurso na esquerda foi o de que o governo se encontrava em disputa e de que não haveria alternativa politicamente viável mais à esquerda. Era preciso, então, apoiar as pautas progressistas e combater as pautas conservadoras, mas sempre dentro da coalizão.

Do ponto de vista da esquerda e da contestação, portanto, o pacto lulista significou uma oportunidade política de acesso parcial ao Estado e ao poder, mas com o custo da desmobilização e o risco da burocratização dos principais movimentos sociais e políticos forjados na luta pela redemocratização (anos 80) e contra o neoliberalismo (anos 90).

O problema político evidenciou-se quando o lulismo chegou ao seu esgotamento (se parcial ou total só será possível afirmar com as eleições de 2014), cujo marco foi a eclosão das manifestações espontâneas de massa em junho de 2013. A fórmula lulista do pacto amplo possibilitou a inserção econômica de amplos estratos populacionais antes excluídos, mas essa inserção se deu basicamente via consumo. O aumento da capacidade individual de consumo de bens básicos e supérfluos significou, para aqueles que se beneficiaram, um aumento de bem-estar e ao mesmo tempo garantiu a ampliação do mercado interno, o que agradou a indústria nacional.

No entanto, a mesma fórmula lulista do pacto amplo também impediu que políticas públicas mais ousadas de promoção da cidadania e de ampliação de direitos fossem tomadas. Isto é, a fortuna e a virtude lulistas tinham um limite: a inserção deveria acontecer, primordialmente, pelo consumo e pela lógica do privado e não pela cidadania ou pela lógica do bem público.

A expansão do público se observou, mas apenas sob duas condições: (a) quando o aumento do gasto acompanhava o aumento da arrecadação e o respeito a “responsabilidade fiscal” e (b) quando se tratava de atribuição direta, mas não exclusiva, do governo federal, como no caso do fortalecimento das universidades federais. Isso não impediu, contudo, que o ensino superior privado crescesse mais do que o público e tampouco significou uma melhoria significativa do ensino básico, relegado a cada conjuntura estadual e ao pacto de governabilidade com os governadores. O mesmo poderia ser dito sobre a saúde: o fortalecimento do SUS não retira a ninguém o desejo de ter um bom plano de saúde privado.



Manifestantes aproveitaram o momento de tensão para saquear lojas

Foi justamente um desafio à lógica do privado em detrimento do público o recado que primeiro emanou das ruas durante os protestos e que levou multidões às manifestações de junho. A negativa popular ao aumento do valor da tarifa do transporte público em São Paulo foi o estopim de um imenso número de demandas e pautas que mais à frente apareceriam escritos à mão nos cartazes de cartolina exibidos nas ruas de todo o país. Dessa multiplicidade, no entanto, podem ser extraídas as categorias temáticas: educação pública, saúde pública, direito à cidade e mobilidade urbana, segurança pública e redução da violência e da criminalidade, direito à habitação e moradia, combate à corrupção.

As bandeiras mais reacionárias e conservadoras, destacadas por alguns com o objetivo de deslegitimar o grito das ruas, foram, na verdade, limitadas e pouco representativas, ainda que inevitáveis, dado o caráter descentralizado e horizontal dos protestos, composto majoritariamente por jovens neófitos em manifestações e influenciados pela cultura de massa e pelo cartel ideológico dos meios de comunicação. A leitura mais abrangente dos cartazes à mostra revela, contudo, certa coerência na polifonia das ruas: a demanda é pelo público. Os partidos políticos de esquerda e os movimentos sociais tradicionais não tinham condições políticas nem legitimidade para liderar tais protestos, justamente pelo fato de terem composto e legitimado o governo que resolveu parcialmente os problemas sociais, mas que também cristalizou os limites para qualquer solução mais radical e profunda.

A adesão, desmobilização, burocratização, institucionalização e/ou cooptação dos movimentos sociais e partidos de esquerda nos governos Lula e Dilma possibilitaram os ganhos socioeconômicos obtidos pela nova classe trabalhadora em um contexto de consolidação democrática, mas também impediram que esses grupos dirigissem a overdose de pautas fragmentadas emanadas das ruas que são fruto do passivo do pacto conservador.

Quando a presidenta Dilma Rousseff manifestou-se publicamente pela segunda vez desde a eclosão dos protestos soube evitar que a agenda fosse ditada por interesses escusos dos meios de comunicação (Rede Globo) e contrariou leituras de eminentes personalidades de seu próprio partido (a tese de que as manifestações expressavam a tríade “golpe, fascismo e direita”). Mas ao proclamar um pacto com governadores, prefeitos e sociedade civil, o primeiro dos cinco pontos – responsabilidade fiscal – evidencia que, a despeito de haver percebido a necessidade de fazer política ao invés de uma gestão supostamente técnica, o lulismo segue ditando as respostas políticas: a análise da conjuntura e da correlação de forças do momento orienta o desenho da ação cirúrgica para curar os efeitos desestabilizadores.

De fato, o recado das ruas era claro ao pedir políticas que teriam como consequência a elevação do gasto público em detrimento da política de austeridade (corte de gastos e elevação da taxa básica de juros) que vem sendo implantada pelo governo. No entanto, segundo a fórmula lulista, as respostas governamentais às demandas populares são aceitáveis, legítimas e até desejáveis, desde que não afetem interesses consolidados dos interesses rentistas e oligopólicos que dominam a estrutura econômica. Por isso os demais pontos do pacto proposto (transporte público, saúde, etc.) devem se subordinar ao primeiro (responsabilidade fiscal), inserido por pressão dos grupos dominantes e dos governadores e prefeitos, ainda que contra a vontade manifesta das ruas.

A nova classe trabalhadora, uma vez beneficiada pela inclusão no mundo do consumo, deseja direitos e cidadania: percebeu que a vida melhorou da porta da casa para dentro, mas segue desagradável da porta da casa para fora – no espaço público. Mas está claro também que o fôlego e o alcance dos protestos realizados de maneira espontânea é limitado. Sem a organização profissional do movimento exigida pelo mundo da política, a fiscalização cotidiana do poder não acontece e após os sintomas de febre e convulsão, o corpo político, que ensaiava mudanças de hábito, tende a voltar ao normal: a reforma política e o plebiscito provavelmente serão engavetados. O recado, no entanto, foi dado à esquerda e ao governo: o povo quer mais e quando sair para protestar já não será sob o seu comando.
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* Felippe Ramos é sociólogo, diretor do Instituto Surear

A construção de uma nação de telespectadores


imagem revista Trip

do Le Monde Diplomatique 
por Lamia Oualalou* 

Promovidas sob a ditadura para conectar o país, as novelas brasileiras evoluíram. Acompanhadas pelo conjunto da população, elas representam um espelho para uma sociedade em efervescência. A transformação do gigante não pode ser resumida pela divisa “ordem e progresso”, como mostram as recentes manifestações de rua.
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"Não vai ter ninguém!” A equipe da campanha de Fernando Haddad, à época na corrida pela prefeitura de São Paulo, foi clara: a presidente Dilma Rousseff não poderia pensar seriamente em organizar um comício para apoiar o candidato do Partido dos Trabalhadores (PT) naquela sexta, 19 de outubro, exatamente na hora em que seria transmitido o último episódio de Avenida Brasil, a telenovela sensação da Rede Globo. Naquela noite, dezenas de milhões de brasileiros assistiriam ao confronto final entre as duas heroínas, Nina e Carminha, a fim de finalmente saber quem matara Max. Convencida, a presidente adiou o evento para o dia seguinte.

Avenida Brasil parece ter voltado a atingir as massas, marcando o retorno da reunião da maioria das famílias diante da telinha. Um desafio quando se lembra de que a telenovela brasileira, ou simplesmente novela, como preferem chamá-la por aqui, celebrou seu sexagésimo aniversário em 2012.

Quando a televisão surgiu no Brasil, as soap operas norte-americanas já tinham conquistado Cuba via Miami. E foi naturalmente para os autores da ilha, amedrontados pela revolução, que se voltaram as redes de TV, a começar pela pioneira, a TV Tupi. Dessa forma, O direito de nascer, lançada em 1964, foi uma adaptação do folhetim radiofônico homônimo que inundara as ondas da ilha caribenha em 1946. Como em Cuba, o folhetim teve um fim, enquanto nos Estados Unidos se prolongou por décadas. Pela primeira vez, a vida parava em São Paulo e no Rio de Janeiro por meia hora, várias vezes por semana... mas não ao mesmo tempo. A novela ainda não era diária e a transmissão em rede não existia: tão logo o episódio ia ao ar em São Paulo, a gravação era encaminhada por avião ou carro para o Rio de Janeiro, então a capital do país.

Na época, as tramas eram propositadamente exóticas, como evidenciado por títulos comoO rei dos ciganos, O sheik de Agadirou A Ponte dos Suspiros. Em 1968, Beto Rockfellermarcou uma ruptura. Pela primeira vez, o herói vivia em São Paulo. Ele trabalhava em uma loja de calçados em uma rua popular da metrópole, mas fingia ser um milionário que morava em outro endereço. Com um vocabulário do dia a dia, referências às coisas boas e aos desafios do Brasil urbano, ainda mais visíveis pelo fato de algumas cenas serem filmadas ao ar livre, a novela mudou de cara. “A partir daí, ela passou a incorporar as questões sociais e políticas do Brasil, enquanto no México ou na Argentina o tema continuava sendo os dramas familiares”, diz Maria Immaculata Vassallo de Lopes, que coordena o Centro de Estudos de Telenovela da Universidade de São Paulo (USP).

Em seguida, surgiu a TV Globo, que se apoderou do formato. Tanto assim que, de acordo com Bosco Brasil, um ex-autor da rede, “quando se fala em ‘novela brasileira’, se pensa em ‘novela da Globo’”. Nascida em 1965, um ano após o golpe militar, a rede é principalmente o resultado do gênio político de Roberto Marinho, herdeiro de um grande jornal, O Globo, mas sem influência nacional. Ele entendeu como era estratégico para a junta militar alcançar a integração do território. Enquanto para Juscelino Kubitschek (1956-1961) esta passava pela construção de uma rede de estradas, os militares, no poder de 1964 a 1985, iriam apostar na mídia. E, nessa área, a Globo seria uma peça central: “Do ponto de vista econômico, ela desempenhou um papel essencial na integração de um país de dimensões continentais, por meio da formação de um mercado consumidor. Do ponto de vista político, sua programação levou uma mensagem nacional de otimismo ligado ao desenvolvimento, crucial para apoiar e legitimar a hegemonia do regime autoritário”,1analisa Venício de Lima, pesquisador de comunicação da Universidade de Brasília.

Muitos outros vindos do teatro

Com o tempo, a rede criou “um repertório comum, uma comunidade nacional imaginária”, explica Maria Immaculata. Em 2011, 59,4 milhões de famílias, ou seja, 96,9% do total, tinham um televisor, e cada brasileiro consumia em média 700 horas de programas da Globo a cada ano. Embora um gaúcho, mais próximo dos argentinos em seu estilo de vida, não tenha muito a ver com um pescador da Amazônia ou um agricultor do Nordeste, todos compartilham hoje o sonho de conhecer o Rio de Janeiro, principal cenário dos folhetins globais, ou de vestir a camisa branca e o cinto dourado de Carminha. A identificação é mais fácil quanto menos nítida é a fronteira entre ficção e realidade. Quando os brasileiros comemoram o Natal, seus heróis na telinha fazem o mesmo. O desmoronamento, real, em janeiro de 2012 de um prédio no Rio de Janeiro foi comentada pelos personagens da novela Fina estampa nos dias seguintes. E quando, durante um episódio, um eleito fictício é enterrado, políticos reais concordam em se deixar filmar ao redor do caixão.

Jovens e velhos, ricos e pobres, analfabetos e intelectuais: todos devem poder se contemplar no espelho. De acordo com a psicanalista Maria Rita Kehl, “essas imagens únicas que percorrem simultaneamente um país tão dividido como o Brasil contribuem para transformá-lo em um arremedo de nação, cuja população, unificada não enquanto ‘povo’, mas enquanto público, articula uma linguagem segundo uma mesma sintaxe”.2

A inegável benevolência dos militares não explica por si só como a Globo conseguiu impor essa sintaxe. Nas horas de maior audiência, a rede alcança a proeza de transmitir produções próprias: na França, nessas faixas de horário, com frequência são as séries norte-americanas que triunfam. “Tudo isso é baseado em um verdadeiro talento artístico e técnico, que se concentrou na novela”, diz Mauro Alencar, professor de Teledramaturgia Brasileira e Latino-Americana da USP. Ao decidir fazer da novela o cerne de sua rede, Roberto Marinho abraçou um desafio. Ironicamente, a ditadura lhe facilitou a tarefa, posto que a censura proibia bons dramaturgos, muitos deles de esquerda, de montar suas peças. Assim, autores como Dias Gomes, Bráulio Pedroso e Jorge Andrade se viram trabalhando para o “doutor” Marinho e para a televisão, que antes desprezavam.

Contra todas as probabilidades, esses grandes nomes descobriram que uma liberdade verdadeira lhes era oferecida pelos dirigentes da rede, que concordavam em enfrentar os censores. A Globo já tinha rodado 36 capítulos de Roque Santeiro, de Dias Gomes, quando a novela foi proibida. Ela conheceria um sucesso retumbante ao ser refilmada, dez anos depois, em 1985, após o advento da democracia. Em 1996, O rei do gado, de Benedito Ruy Barbosa, foi uma elegia à reforma agrária que deu visibilidade sem precedentes ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

“Já faz 35 anos que trabalho para a Globo, sou autor de dezessete novelas e nunca ninguém me disse o que eu deveria fazer. Sempre fui totalmente livre “, testemunha Silvio de Abreu, um dos principais autores da rede. Para Maria Carmem Jacob de Souza Romano, professora de Comunicação da Universidade Federal da Bahia, “os grandes autores têm um poder de barganha, é claro. Eles dão mostras de bom senso e não podem transformar a novela em discurso social, mas podem abordar temas que lhes são caros, se o sucesso vai ao encontro disso”.

A partir do centro do Rio, é preciso viajar uma boa hora de carro, com trânsito bom, para chegar ao Projac, a fábrica de sonhos montada pela Globo em Jacarepaguá, na zona oeste da cidade. Mais de 1,65 milhão de metros quadrados, dos quais 70% de floresta, permitem à rede concentrar, desde 1995, todas as etapas da produção de uma novela. “Antes, as filmagens eram divididas em vários estúdios por toda a cidade. Concentrar tudo permite uma enorme economia de tempo e de dinheiro”, explica Iracema Paternostro, gerente de relações públicas, mostrando uma maquete das instalações.

É preciso um carro para fazer o tour. Ali, um edifício agrupa as equipes de pesquisa encarregadas de compilar os arquivos e os estudos de mercado. Um pouco mais adiante, os figurinos são desenhados, costurados e cuidadosamente conservados para serem utilizados no futuro. Em seguida, entra-se em uma gigantesca oficina de carpintaria, na qual são elaborados os móveis e os cenários imaginados a alguns metros dali: um salão do século XIX, um trem do metrô – tudo em partes, para que se possa montá-los em algumas horas, em um dos quatro estúdios de mil metros quadrados, onde as novelas são gravadas todos os dias do ano. As peças serão, então, desmontadas e guardadas para filmagens futuras ou destruídas para serem recicladas.

A leste do território se encontra a cidade cinematográfica, com alguns equipamentos permanentes, como uma curiosa igreja que dispõe de uma fachada tríplice: uma barroca, outra italiana, outra portuguesa. “Sempre precisamos de uma igreja”, brinca Iracema, referindo-se ao casamento inevitável do episódio final. Atrás, há pedaços de cidade que são erguidos por nove meses, a duração média de uma novela. Como a metade da ação de Salve Jorge, veiculada no início de 2013, se passava na Turquia, a direção de arte reconstituiu uma pequena Istambul, observando os menores detalhes: um cartaz rasgado, um livro caído de uma biblioteca, uma chaleira tradicional. Para instalar esse cenário, milhares de fotos foram tiradas no local e uma batelada de objetos típicos foi levada para o Rio de Janeiro. As equipes também filmaram horas do cotidiano do lugar, os vendedores de rua, o fluxo dos carros. Durante a montagem, as imagens, sempre panorâmicas, eram encaixadas nas cenas filmadas na cidade cinematográfica. A ilusão funciona perfeitamente. E o processo não é usado apenas para destinos distantes: ao lado da pequena Istambul, há um labirinto de ruas recriado em 1.800 metros quadrados do Complexo do Alemão, uma das maiores favelas do Rio de Janeiro. Também nesse caso acreditamos estar no lugar real. A Globo chegou a contratar Adriana Souza, uma vendedora de empadas, para vender seus produtos no cenário de papelão, como faz na favela.

Tocar todas as classes sociais

O segredo do sucesso da Globo é sua capacidade de industrializar todas as fases da criação, para conseguir transmitir todos os dias pelo menos três novelas, cada uma com algo entre 140 e 180 episódios de quarenta minutos, durante seis a nove meses. Para cada horário, sua atmosfera, segundo um modelo não modificado desde 1968: a novela das 18 horas aborda um tema leve; a das 19 horas é com frequência cômica; as questões sociais e os dramas ficam reservados para a das 21 horas, o horário nobre. Quanto à história, ela muitas vezes retoma as receitas típicas do melodrama, girando em torno da questão da família, da identidade – ignorada ou usurpada, levando à procura do pai ou da mãe – e da vingança.

Produzir uma novela custa caro: cerca de US$ 200 mil por episódio, de acordo com estimativas de Maria Immaculata. “Uma forte tendência nos últimos anos é o remakedos grandes sucessos do passado”, explica Nilson Xavier, autor do Almanaque da telenovela brasileira (Panda Books, 2007). “Uma escolha idiota” aos olhos de Gilberto Braga, um dos mais cortejados autores da Globo. Para ele, “não há uma receita que funcione todas as vezes”.

Quando sua proposta é aprovada, o autor envolve um punhado de auxiliares que escrevem uma parte dos diálogos e das cenas num ritmo frenético. Cerca de trinta episódios são gravados antes do lançamento. Desde os primeiros dias de exibição, a reação do público é cuidadosamente auscultada, seja por meio de pesquisas, seja em redes sociais. “A novela é uma obra aberta”, explica Flavio Rocha, um dos diretores da Globo. “Um casal pode parecer pouco convincente aos olhos do público e, eventualmente, desaparecer, enquanto um personagem secundário pode tornar-se central, se alcançar mais sucesso. O autor se adapta.”

O discurso sobre a “obra aberta” é um mito cultivado pela Globo. Porque, antes de deixar sua imaginação divagar, os autores são convidados a pensar nos custos de produção: idealmente, as cenas que vão acontecer em uma sala devem ser escritas com antecedência, para serem filmadas em sequência, antes da destruição do cenário e de sua substituição por outro no estúdio. Os atores encadeiam assim durante uma mesma tarde a gravação de cenas dos episódios 8, 22, 24 e 42. Somente aqueles que estão acostumados a esse tipo de filmagem conseguem se encontrar na trama.

Trabalhar com uma estrela é um quebra-cabeça para o autor: alguns atores fazem constar no contrato que só irão ao Projac às terças e quintas ou exigem uma fortuna para reformular sua programação. Eles também querem concentrar suas cenas em um mesmo dia. “É por essa razão, por exemplo, que os principais personagens nunca se divorciam: isso poderia forçá-los a deixar sua casa, que constitui o cenário principal, e a gravar em uma infinidade de outros”, diverte-se um autor sob o manto do anonimato. O texto deve ser simples e bastante repetitivo para que o espectador possa se reconectar com a história depois de perder alguns episódios. Mas os personagens não são menos complexos, e a narrativa – que muitas vezes remete a um rico patrimônio literário – é suficientemente sofisticada para assombrar a sociedade por anos após sua transmissão.

Também é necessário atingir todas as classes sociais: “É o imperativo da novela, como também o do jornal televisivo da Globo. E, no entanto, escrever para todos é aparentemente um contrassenso. Raros são os que conseguem isso”, ressalta Bosco Brasil. Ser autor de novela não é para qualquer um: “Entre 1989 e 2004, 25 novelas foram veiculadas no horário nobre, e elas foram assinadas por apenas seis autores, alternadamente”, confirma Maria Carmem. O salário dos membros desse clubinho ultrapassa muitas vezes os R$ 250 mil por mês.

Uma fortuna para alguns, mas uma soma insignificante diante do que se ganha com esse produto artístico e comercial. Estima-se que uma publicidade de trinta segundos durante a novela no horário nobre custe em torno de R$ 350 mil. Mas, para o último capítulo deAvenida Brasil, o preço dobrou. Naquela noite, o episódio durou setenta minutos, quase duas horas, levando em conta os comerciais. Entre os anunciantes nacionais e regionais, quinhentos espaços foram vendidos.

O espelho da modernidade funciona ainda melhor quando incorpora um discurso pedagógico sobre as principais causas apoiadas pela rede e por seus autores. Estudos do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID)3 estimam que as novelas desempenharam um papel importante na redução significativa do número de nascimentos – a taxa de fertilidade caiu 60% desde os anos 1970 – e na quintuplicação dos divórcios.4 A leucemia de Camila, personagem de Laços de família, exibida em 2000, causou uma explosão de doação de órgãos. “Algumas novelas também têm contribuído grandemente para a aceitação da homossexualidade”, acrescenta Silvio de Abreu, lembrando que a Globo dispõe de um departamento encarregado de sugerir temas de sociedade.

Muitas vezes politicamente correto, esse “merchandisingsocial” é uma marca comercial da novela brasileira e, sem dúvida, contribui para promover o debate na sociedade. Para a Globo, o maior conglomerado midiático da América Latina, controlado unicamente pela família Marinho, “é também uma forma de oferecer uma boa imagem, a de uma rede privada preocupada com uma missão de serviço público”, estima Maria Carmem. Por sua vez, Mauro Alencar confia que o velho lema da Globo, “A gente se vê por aqui”, e o atual, “A gente se liga em você”, “não são apenas sloganspublicitários: eles demonstram a intensa relação de identificação do público e o interesse da rede pelos grandes temas nacionais”.

Manter essa relação não é simples. Por um lado, porque, se a Globo continua sendo a rainha indiscutível da novela, com as outras redes simplesmente copiando seu modelo de produção, sem ter os meios para colocá-lo em prática, ela sofre hoje em dia com a concorrência da internet e o desinteresse de alguns jovens. Até os anos 1970, as pontuações médias da audiência de novelas com frequência ultrapassavam os 60%, quando não chegavam aos 80%. Hoje, captar o interesse de 40% dos lares representa um sucesso. Em 2012, a audiência total da Globo atingiu o nível mais baixo da história, com uma queda de 10%5 – que, certamente, atingiu todas as redes. “O problema é que assistimos à novela no computador, no telefone, e ainda não temos nenhum instrumento de medição para essas mídias”, argumenta Mauro Alencar.

Na verdade, contra todas as expectativas, a queda da audiência não implica redução de benefícios: as novelas rendem mais do que nunca. Nas agências de publicidade, reconhece-se que isso é em parte o resultado de certa inércia. Tal como acontece na imprensa escrita, é mais fácil levar os anunciantes a concentrar seu orçamento em alguns títulos, sem prestar atenção em seu menor impacto. E essa ilusão é alimentada pelo fato de que a novela tem contaminado todas as áreas: dezenas de revistas são dedicadas a ela, as redes sociais mantêm o suspense, para não mencionar os especialistas de todo tipo convidados a falar sobre o fenômeno em outros programas da rede, mas também nas colunas do jornal O Globo, bem como nas rádios e em outros canais ligados ao grupo, uma sinergia pouco estudada nas universidades. “Cada vez mais falamos e ouvimos falar da novela, sem necessariamente assistir a ela”, constata Bosco Brasil.

Especialmente porque a sociedade brasileira mudou dramaticamente ao longo dos últimos dez anos, com a saída da pobreza de cerca de 50 milhões de pessoas, alçadas ao mercado de consumo de massa, e uma redução significativa das desigualdades. “São famílias cujo poder aquisitivo aumentou consideravelmente. Torna-se mais interessante investir em publicidade ou ações de merchandising”, ressalta Mauro Alencar.

Empregadas domésticas como heroínas

Essa é também uma das razões do enorme sucesso de Avenida Brasil, que deve seu nome à via rápida que liga os subúrbios do norte à zona sul do Rio de Janeiro, rica e turística. Não foi tanto o enredo – uma jovem criada em um aterro municipal pretende se vingar por ter sido abandonada por sua madrasta, que se tornara rica – que se mostrou decisivo, e sim o surgimento de um novo tipo de protagonista. As tradicionais cenas nas praias de Ipanema ou de Copacabana e nos bairros mais exclusivos do Rio de Janeiro foram substituídas por um mergulho em um bairro fictício, Divino, típico da classe média baixa da zona norte da cidade. Essa não é a primeira vez que os pobres estão representados; mas, em geral, seu único sonho, que se realizava no happy end, era conseguir acesso ao Rio rico e ilustre. Não em Avenida Brasil: Tufão, o herói, transformado em milionário graças ao futebol, permanece no bairro de sua infância. Ali, as pessoas falam alto e não sabem usar os talheres corretamente, mas ele gosta. Sucesso enorme junto ao que o governo tenta descrever como uma “classe média emergente” (mas que continua sendo mais um “segmento pobre” da população ativa),6 que se vê representada pela primeira vez como próxima dos mais ricos, que têm assim acesso a um mundo desconhecido.

Esse coquetel de orgulho em uns e de curiosidade em outros também explica o sucesso de Cheias de charme(2012), cujas heroínas são três empregadas domésticas: algo nunca visto. “Até então, era um personagem secundário e muitas vezes caricatural: a empregada que se mete em tudo na vida da patroa, sem existência própria”, diz Nilson Xavier. Entre o aumento do salário mínimo, que passou R$ 200 a R$ 678 entre 2002 e 2013, e o aumento do nível de ensino – a proporção de jovens de 19 anos que foram escolarizados por pelo menos onze anos aumentou de 25,7% em 2001 para 45% em 2011 –, o equilíbrio de forças começou a mudar na sociedade, levando os autores, Filipe Miguez e Izabel de Oliveira, a imaginar esse cenário. “Antes, a empregada aparecia somente em sua função. Decidimos segui-la em sua vida, em sua casa, na rua, em seus sonhos”, conta Miguez. Mais uma vez, o sucesso foi ter conseguido não mexer com os mais ricos, de ideias bem pouco progressistas, como observado pelo autor: “Fizemos uma pesquisa que colocava perguntas como: ‘Você acha certo que uma empregada suba no mesmo elevador que você?’, e a maioria respondeu que não. É esquizofrênico: como ela é a empregada, não pode usar seu elevador ou seu banheiro, mas pode cuidar de seu filho!”.

Nos escritórios do Projac são muitos a se debruçar sobre as mudanças econômicas e tecnológicas que sacodem o país, e Silvio de Abreu dá uma de filósofo: “Eu não tenho bola de cristal para prever o futuro da novela, mas uma história bem escrita sempre vai fascinar o público. Tanto faz que ela seja vista no ônibus, na internet, em um telefone, para mim nada vai mudar: eu vou sempre me levantar às 7 da manhã e escrever até a meia-noite, para produzir um capítulo por dia”.

*Lamia Oualalou é jornalista


1 Venício de Lima, Mídia. Teoria e política, Fundação Perseu Abramo, São Paulo, 2001.
2 Alcir Henrique da Costa, Maria Rita Kehl e Inimá Ferreira Simões, Um país no ar, Brasiliense, São Paulo, 1986.
3 Eliana La Ferrara, Alberto Chong e Suzanne Duryea, “Soap operas and fertility: evidence from Brazil” [Novelas e fertilidade: evidências do Brasil], Banco Interamericano de Desenvolvimento, Washington, 2008.
4 Alberto Chong e Eliana La Ferrara, “Television and divorce: evidence from Brazilian novelas” [Televisão e divórcio: evidências de novelas brasileiras], Banco Interamericano de Desenvolvimento, 2009.
5 “Globo fecha 2012 com pior ibope da história”, Midianews, 3 jan. 2013. Disponível em: .
6 Marcio Pochmann, Nova classe média? O trabalho na base da pirâmide social brasileira, Boitempo, São Paulo, 2012.


28 julho, 2013

Quem está ganhando é "o centrão"






por Marco Weissheimer
do Sul21

O governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro, foi um dos raros casos de políticos brasileiros que colocou a cara para bater durante as manifestações de rua que sacudiram o país em junho e julho deste ano. No calor dos protestos, promoveu reuniões, entrevistas coletivas, audiências públicas, convidou os jovens manifestantes para debater e ouviu diretamente, sem nenhum filtro, críticas destes à atuação das forças de segurança e sobre outros problemas relacionados a políticas e serviços públicos. Dentro do PT, suas iniciativas acabaram tendo projeção nacional, diante do ruidoso silêncio que se ouvia então. Foi um dos primeiros a defender a necessidade de uma Constituinte exclusiva, proposta que mais tarde seria abraçada pela presidenta Dilma Rousseff e, rapidamente, bombardeada pelo “Centrão” político que comanda o Congresso Nacional e tem crescente poder inclusive dentro do PT.

Goste-se ou não de suas opiniões, do governador gaúcho não se pode dizer que pecou pela omissão. Entrou em várias bolas divididas e segue entrando. Tarso Genro está preocupado com o que considera ser uma interpretação ingênua por parte de setores da esquerda a respeito das consequências políticas de todo o processo de manifestações até aqui. O desdobramento do debate sobre a Reforma Política no Congresso, a subordinação do PT à lógica Vaccarezza, e a tentativa de desconstituição das conquistas sociais dos últimos 10 anos são alguns dos fatos apontados por Tarso para analisar a conjuntura atual. “O que está ocorrendo agora não é mais um debate sobre normas mais, ou menos, democráticas, mas um debate sobre a correlação de forças no plano da política, para a aplicação dos princípios que inspiraram a Constituição de 88. E quem está ganhando é o “centrão”, resume.

Tarso Genro expõe assim as suas principais preocupações a respeito do atual momento político no país e sobre as leituras que vêm sendo feitas sobre as manifestações de rua e suas consequências:

“A ingenuidade de uma parte da esquerda meio pollyana”

O que me pasma é uma certa ingenuidade de uma parte da esquerda meio “pollyana” a respeito das manifestações do início de julho, pela qual confundem as autênticas manifestações dos estudantes e de certos novos movimentos sociais – que aliás já estão na cena pública há mais de duas décadas- com a instrumentalização que a mídia oposicionista fez do próprio movimento, direcionando-o para dois níveis: primeiro, desgastando as funções públicas do Estado, principalmente nas áreas da saúde e do transporte público das grandes regiões metropolitanas e, segundo, pretendendo “apagar” da memória popular, de forma totalitária, as grande conquistas dos governos do Presidente Lula, seguidas pelo governo atual da Presidenta Dilma, na base do “gigante acordou”, que tanto deleitou as classes médias mais conservadoras. Tudo isso veio combinado com um ataque aos partidos e aos políticos em geral, que atingem a própria democracia, que certamente na visão destes conservadores deve ser substituída por um processo “limpo”, de manejos tecnocráticos, feito por gerentes do capital financeiro.

A histórica campanha da grande mídia contra o Estado

Na verdade, ocorreram dois movimentos neste processo: um movimento tipicamente eleitoreiro da grande mídia, seguido por algumas redes sociais, preparando o ambiente eleitoral para o próximo ano, e um autêntico movimento popular, insatisfeito pelas limitações das conquistas até agora obtidas, cujo seguimento e aprofundamento, agora, só pode ser dado por novos processos de participação popular direta, inclusive para reformar o atrasado sistema político brasileiro, que já é um emperramento para que se aprofundem as conquistas sociais até agora obtidas.

Dou o exemplo da saúde pública. Quem não sabe que o SUS faz dezenas de milhões de atendimentos às populações mais pobres e que é uma das grandes conquistas do povo trabalhador do país, que salva milhões e milhões de vidas em cada ano? Pois bem, dezenas de reportagens “contra” este sistema público foram feitas precisamente no momento em que os planos privados, que eram apontados como a grande saída pelos neoliberais, entraram numa crise profunda, que ficou totalmente subsumida nos noticiários, pois o “problema”, para esta mídia, era o Estado, não o mundo privado.

Há luta ideológica sobre a saúde pública

Ambos, certamente, estavam e estão subfinanciados e o nosso SUS precisa ser muito melhorado. Mas o que foi escondido -nestes ataques ao sistema de saúde pública no Brasil- é que ele é, predominantemente bom para o povo e que o privatismo não resolveu a questão nem para a classe média que paga religiosamente os seus planos. A direita, na verdade, se propôs a uma luta ideológica, sobre a questão da saúde no Brasil, manipulando a informação, e a esquerda e os governos se recusaram a fazê-la. As lideranças de esquerda em geral, com algumas exceções honrosas, manifestaram-se “encantadas” com os movimentos, como se eles fossem uniformemente “autênticos”, não manipulados, o que não é verdade. Basta ver que quando eles saíram da domesticação induzida passaram a ser depreciados.

A falência do sistema político atual

O que preocupa não é mais simplesmente a eleição do ano próximo, pois acredito que a Presidenta vai recuperar o seu prestígio, porque o governo tem bala na agulha. O que me preocupa é o grau de governabilidade que qualquer governo terá, no próximo período, em função da falência do sistema político atual, que estimula as alianças fisiológicas que tornam os governos reféns de maiorias artificiais, e, em função da incapacidade dos estados e municípios -sejam eles quais forem- de responder às demandas populares, por melhor saúde, melhor educação, melhor transporte, em função de duas coisas: as desonerações que sacrificam as nossas arrecadações, através da redução dos valores do Fundo de Participação dos Estados e dos Fundo de Participação dos Municípios, e em função das dívidas do Estados, que não param de crescer e impedem que se obtenha novos financiamentos para obras de infraestrutura, por exemplo

A tarefa estratégica para um governo de esquerda

Reagir contra a “desindustrialização” do país e reforçar a capacidade de resposta dos Estados e Municípios -principalmente os que governam com participação popular- no próximo período é, na minha opinião, a principal tarefa estratégica de um governo democrático de esquerda, pois ,como parece que não haverá reforma política nem reforma tributária, a estabilidade política dos governos só pode ser moldada através de “remendos” no pacto federativo, mais no âmbito da política do que âmbito de reformas na legalidade vigente.

“Quem está ganhando é o centrão”

Que me perdoem os estetas da democracia formal, mas o que está ocorrendo agora não é mais um debate sobre “normas” mais, ou menos, democráticas, mas um debate sobre a correlação de forças no plano da política, para a aplicação dos princípios que inspiraram a Constituição de 88. E quem está ganhando é o “centrão”, ou seja, as mudanças que eles toleram já chegaram ao seu limite. Agora, para eles, é conservar e acalmar a plebe. Para nós deve ser mais igualdade, o que significa reforma tributária, reforma política, democratização dos meios de comunicação e mais combate às desigualdades sociais e regionais. Que tal encarar um imposto sobre as grandes fortunas e um bom CPMF, para Transportes e Saúde?

Quando o novo já nasceu e o velho ainda não morreu

2001

por Renato Rovai
da Revista Forum

A onda de manifestações que varreu o Brasil evidenciou um novo padrão de demandas e lutas sociais. Dialogar e compreender a importância deste momento é fundamental para não ser atropelado pela História

O que aconteceu no mês passado no Brasil não pode ser entendido com base nas mesmas lógicas e padrões da sociedade industrial. É necessário buscar entender o tempo em que estamos vivendo, como as dinâmicas de relação de poder se estabelecem e quais as novas demandas e padrões de luta. Não são questões fáceis e nem demandam respostas precipitadas.

O mundo transita da era industrial para a era informacional. Isso acarreta grandes transformações na economia, na cultura e também na política. Quando ocorreu a migração da sociedade agrícola para a industrial, pôde-se perceber movimento semelhante. Foram grandes as transformações e enormes as resistências. Houve quem preferisse destruir as máquinas do que tentar entender suas possibilidades e potencialidades. Hoje, alguns agem da mesma forma. Mas a sociedade em redes não permite respostas analógicas.

Os partidos e movimentos tradicionais ainda resistem em entender esse novo processo. Não compreenderam que, na sociedade em redes, uma das grandes crises se dá em relação às organizações intermediárias. A indústria cultural foi uma das primeiras afetadas por esse fenômeno. As gravadoras de música, por exemplo, tentaram resistir a ele com a criminalização do que chamavam de pirataria. Tiveram que mudar a estratégia, mas, antes disso, perderam muito espaço e parte significativa do poder que possuíam.

Na indústria da informação está ocorrendo o mesmo. Boa parte dos grandes grupos desse setor está ruindo porque decidiu enfrentar as mudanças, e não buscar se adaptar a elas. Ao mesmo tempo, as redes se organizam e buscam novas formas de narrar as transformações que acontecem nas ruas. Formas essas que são mais diretas, em tempo real, colaborativas.

Um bom exemplo é o trabalho realizado pelo Mídia Ninja. Jovens, espalhados por todo o Brasil, munidos de celulares e câmeras, transmitem as manifestações em tempo real, via web, diretamente do olho do furacão. A iniciativa em si não é inédita, mas, na atual conjuntura, ganhou uma relevância sem precedentes. Esses jovens, articulados em rede, realizam uma cobertura melhor, mais completa e mais fidedigna do que acontece nas ruas do Brasil. Deixam a velha “grande mídia”, detentora de enorme poder econômico e político, comendo poeira. Assim como negam a “grande mídia” nas ruas, os novos movimentos reconhecem e valorizam essas iniciativas. Se o governo se nega a discutir a democratização da comunicação, esses jovens não querem e não podem mais esperar. Estão indo para as ruas e fazem acontecer. É o midialivrismo plantado por veículos como a Fórum que começa a ver um novo florescimento. É, parafrasendo o poeta Sérgio Vaz, o midialivrismo vivendo sua Primavera de Praga.

Crise da democracia representativa

Mas voltando aos mediadores, na lógica da democracia representativa os partidos são as entidades intermediárias. Eles são as gravadoras da indústria da música. E as pessoas que estão nas ruas não desejam mais ser representadas por eles da mesma forma que são hoje. Pelo contrário, querem se autorrepresentar. É uma crise de um modelo de democracia para o qual ainda não se tem respostas e muito menos soluções. Mas a crise precisa ser reconhecida para que se possa criar novos modelos.

A resposta tradicional a isso é a de que esses movimentos negam a política. Essa é uma daquelas respostas simples que não buscam dialogar com o problema. Entre outras coisas, porque nunca se discutiu tanto política como nesses anos de redes em redes. Essas redes nascem nas ruas e se articulam na internet. Nascem na internet e se manifestam nas ruas. Não são produzidas em escala industrial e nem em linhas de produção. E nelas há forças centrais, mas não há um centro. E as forças centrais podem inclusive ser contraditórias.

É preciso pensar em movimentos, e não num único movimento. Movimentos que, em alguns momentos, podem se juntar com base em uma sensação de que algo precisa mudar.

É preciso pensar um novo modelo político com base em um novo diagnóstico. Não tentar forçar o novo a se adaptar ao velho. Ou aí, sim, a democracia entra na zona de risco. Quando o velho e o novo convivem no mesmo período, o imponderável passa a ser parte constante do jogo.

Geração Facebook e Passe Livre

Há um bom tempo que representantes de movimentos tradicionais de esquerda afirmam que “essa galera do Facebook não sai do sofá”. E, além de não participar dos debates que acontecem na internet, deslegitimam aqueles que o fazem. A geração Facebook já havia saído do sofá em alguns países. E agora resolveu sair do sofá no Brasil, questionando, entre outras coisas, a política tradicional.

O Facebook é uma plataforma como foi o Orkut, que hoje é um cemitério de perfis. E o Facebook, em breve, será substituído por outra plataforma, mas as redes que nele se articulam não mais se dissiparão, pois são anteriores à internet. Elas são espaços de esfera pública. Na França da revolução burguesa, os cafés de Paris faziam esse papel. Nas greves do ABC, do fim da década de 1970, as comissões de base organizavam o chão da fábrica e o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC era o principal aglutinador daquele movimento que vinha de baixo. E, ao mesmo tempo, o Sindicato se articulava com outros sindicatos do Brasil e do mundo, construindo uma rede de lutas que foi fundamental para derrotar a ditadura.

Nas novas dinâmicas de rede, o que está ocorrendo é que essas organizações tradicionais preferiram o velho ao novo. Negar a rede parece ser uma forma de se defender do novo. Isso não tem a ver diretamente com o Movimento Passe Livre, mas tem. O Passe Livre já há algum tempo se articula e debate a questão do transporte público no Brasil. Seus líderes sabem do que falam e têm sua pauta. Nos últimos anos, esse movimento já vinha crescendo, tanto que nas últimas manifestações contra o governo Kassab houve forte repressão e, inclusive, vereadores petistas que atuavam com o movimento foram agredidos.

A primeira ação do MPL no governo Haddad também foi grande, mas, dessa vez, havia uma insatisfação generalizada e difusa contra uma outra série de coisas. Há gente contra a realização da Copa no Brasil, movimentos sociais indignados com o governo Dilma pela ausência de interlocução, grupos de direita doidos para acabar com o PT, gente da periferia de São Paulo que não suporta mais a ação policial repressiva e outros que lutaram contra a PEC 37. Havia de tudo, como é comum nesses novos tempos de múltiplas pautas e múltiplas causas.

Não foi diferente no Egito, na Tunísia, na Espanha e nem no Occupy Wall Street. De novo, não existe movimento, mas movimentos. E, neste novo contexto, as pautas estarão sempre em disputa quando o povo for às ruas. Às organizações mediadoras, enquanto a democracia representativa resistir, restará a possibilidade de tentar dialogar com a parte das ruas que tiver apreço pela democracia. E lutar para que o processo democrático não seja dinamitado.

O que será do amanhã?

Existe uma possibilidade enorme de se avançar e de o Brasil dar um passo mais largo no sentido de ampliar seus canais democráticos. Para isso, é necessário passar a entender a política de forma dialógica, e não analógica. É preciso ampliar o diálogo utilizando instrumentos das ruas e das redes. Há uma nova gramática dos movimentos que precisa ser incorporada pela política tradicional. Uma nova gramática muito mais horizontal e plural.

Também há que se reaprender a fazer mais política com seus instrumentos sociológicos e escapar da centralidade das planilhas. A tecnocracia substituiu o deus mercado no Brasil. Antes, tudo se resolvia na lógica do mercado. Hoje, se resolve na base do que as planilhas disserem. E planilhas são planilhas. Elas podem ser adaptadas às conjunturas e ao momento social.

Na era informacional, a fragmentação não está em disputa, ela é um dado de realidade. O que está em disputa é a política, que não está sendo praticada na sua essência nem pelos governos que afirmam ter viés de esquerda e nem pelos movimentos tradicionais de esquerda. A política como um espaço de construção de um mundo melhor e de diálogo. A política como espaço de transformação da realidade.

O texto faz parte da edição 124 de Fórum, que traz um especial sobre as manifestações de junho. Nas bancas ou compre aqui.
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Leia também

Um caldeirão de qualquer coisa
O massacre dos coxinhas na Cantina Brasil

27 julho, 2013

Documentário mostra o interior das manifestações

do Outras Palavras
por Nigéria Audiovisual


"Sem vandalismo!" repetiam gritando parte dos manifestantes que ocuparam as ruas de Fortaleza.
Mas na multidão das manifestações, que explodiram no Brasil em junho de 2013, outros grupos empregaram métodos mais diretos.
Taxados de "vândalos", foram criminalizados por parte da grande mídia, antes mesmo de serem ouvidos. 

Este documentário vai à "linha de frente" para registrar os confrontos e entrevistar os manifestantes para mostrar as motivações dos atos de desobediência civil.



21 julho, 2013

Reforma Política: um passo parado no ar

Foto de Henri Cartier-Bresson

Por João Peres
Do Outras Palavras


Impossível responder à vontade de mudanças expressada pelas ruas sem bater de frente com o partido que é a definição mais bem acabada de manutenção do status quo.

O governo encabeçado pelo PT vive horas-chave. E o PMDB, braço direito (com o perdão da localização geográfica) do grupo que há dez anos ocupa o Palácio do Planalto, parece não se importar. Pior que isso, capitaneia a reação à possibilidade de mudanças, trabalhando para enterrar aquilo que precisa ser feito para garantir a reeleição de Dilma Rousseff em 2014.

Neste domingo (21) completa-se um mês que a presidenta foi à televisão e ao rádio propor pactos políticos que atendessem aos pedidos expressos de maneira difusa e dispersa nas manifestações de junho. Tomou o centro da agenda política e trouxe para dentro das instituições aquilo que perigosamente caminhava contra as mesmas. Mas, como disse naquela ocasião, não poderia fazer nada sozinha: era preciso contar com uma aliança entre Executivo, Legislativo e Judiciário.

O que num momento pareceu colaboração rapidamente se transfigurou em velhas práticas da política representada pelo PMDB. Câmara, comandada por Henrique Eduardo Alves, representante das velhas elites potiguares, e Senado, presidido por Renan Calheiros, oligarca alagoano, apresentaram uma “agenda positiva” que parecia englobar os compromissos pedidos por Dilma para melhorar educação, transporte, mobilidade urbana, infraestrutura e pilares econômicos. Durante três semanas, deputados e senadores votaram como nunca, aceleradamente, em ritmo até perigoso para o devido debate que mereceria cada matéria.

Porém, à medida que o calor das ruas baixou, peemedebistas estiveram à frente do processo para deixar de lado a votação definitiva de projetos importantes, como a PEC 90, que transforma o transporte público em direito social, a PEC do Trabalho Escravo e a transformação da profissão de médico em carreira de Estado. Mais do que isso, enterraram a possibilidade de realização de um plebiscito sobre a reforma política, talvez o principal ponto sugerido por Dilma como resposta às manifestações.

Não é curioso que tenham partido do vice-presidente, Michel Temer, as primeiras declarações oficiais sobre o enterro da consulta popular, ou ao menos seu adiamento para 2014, sem que surta, portanto, o efeito imediato ansiado por Dilma. No dia 4 de julho, Temer foi a público dizer que o correto seria promover a votação em meio às eleições presidenciais do próximo ano, uma clara tentativa de diluir o debate num momento em que o cidadão estará atento a outra questão tão premente quanto a reforma política: a sucessão presidencial. Horas mais tarde, emitiu nota dizendo que o Executivo mantinha a posição de que o ideal é que as novas regras valham para o ano que vem, com debate e votação ainda em 2013.

Não é difícil entender em qual dos dois momentos o vice mentiu. A vontade de Temer – leia-se, a vontade do PMDB – prevaleceu sobre a de Dilma e do PT, que mais uma vez se mostram jovens e inexperientes para lidar com as famílias que controlam o país desde a chegada dos portugueses. Outra evidência de que o partido pretende capitanear o enterro da reforma política é a indicação, esta semana, de Cândido Vaccarezza para comandar o grupo de trabalho que vai em 90 dias apresentar propostas de mudança na legislação, com chance remota de plebiscito no ano que vem. Que Henrique Eduardo Alves não é bobo, todos sabemos: indicou um petista quase sempre alinhado a ideias muito mais peemedebistas que as de seu partido de origem – basta lembrar que Vaccarezza junta-se a ruralistas para entender que o pensamento do parlamentar não é, exatamente, o que se pode chamar por progressista.



Tudo isso conduz a uma dúvida: o PMDB faz isso porque não quer nenhuma mudança que possa levar ao fim do caciquismo, do financiamento privado e imoral de campanha, com aluguel de mandatos, e da coalizão que sempre o tem como fiel da balança, ou o faz porque quer criar problemas para Dilma? Uma possibilidade não anula a outra. Peemedebistas têm no DNA a reação a qualquer alteração na correlação de forças, até agora tão benéfica a eles, que, excluídos de boa parte do primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, tiveram de ser chamados a virar base aliada após o escândalo do chamado “mensalão”.

Mas peemedebistas também têm no DNA a vontade de criar dificuldades para vender facilidades. Desde 2011 testam os limites da relação com Dilma, e já impuseram derrotas vistas em poucos momentos de 1995 para cá. Valem-se aí da falta de vontade da presidenta de fazer política ao modo clássico e da má interlocução dos articuladores do Executivo no Congresso, de líderes de bancada a ministros. Agora, parecem dispostos a promover o maior revés à petista, e dessa constatação surge outra dúvida: fazem isso para desgastar Dilma a um ponto em que ela chegue a desistir da reeleição, convocando o retorno de Lula, ou já entenderam que este é o melhor momento para começar a trabalhar por um governo com altíssima afinidade ideológica a partir de 2015 – no caso, Aécio Neves?

Os peemedebistas sabem que não aprovar a agenda positiva proposta pelo Planalto terá grande impacto em 2014, abrindo uma chance de derrota para Dilma que até mês e meio soava como insanidade. A presidenta e todo o país sabem que o PMDB é como pulga em cachorro: salta fora do amigo peludo assim que o sangue começa a esfriar, indicando a aproximação do óbito. Sendo assim, a petista tem pouco tempo para agir. E tem de tomar uma das decisões mais difíceis em dez anos de governo, se não a mais difícil.

Enfrentar o conservadorismo representado por Temer, Calheiros, Eduardo Alves e José Sarney não é para qualquer um, tanto que ninguém o fez até hoje. Dilma dá mostras de que sabe muito bem que terá de fazê-lo. Esta semana, em discurso no Planalto, pediu ajuda para lidar com “velhos interesses” e reforçou a necessidade de convocar um plebiscito. Mas faltou dar nome aos bois, citando o Congresso de maneira clara e informando à população que é ali a casa dos problemas. Sim, é preciso esclarecer a sociedade: um dos grandes erros do PT nestes dez anos foi o de não ter trabalhado para criar as condições para uma educação política popular. Grande parcela dos brasileiros segue sem entender as diferenças entre Legislativo, Executivo e Judiciário, entre União, estados e municípios. Na dúvida, a culpa é do “governo”, e isso ajuda a explicar o imenso desgaste detectado na imagem da presidenta, embora saúde e educação, com ou sem Padrão Fifa, sejam temas para governadores e prefeitos, principalmente.

Então, Dilma deveria retornar à TV e botar os pingos nos is. Quando o PMDB pediu truco, deveria ter gritado “meio pau, ladrão!”. Ainda dá tempo. A presidenta precisa chamar Temer e companhia no Planalto e mostrar que, se cair, levará todos para o mesmo buraco. É jogar com o regulamento debaixo do braço. Peemedebistas não podem se sentir à vontade para afrontar o tempo todo o chefe do Executivo, com a certeza de que embarcarão na próxima caravela que passar convocando para uma coalizão de governo.

O momento é agora. Sobram argumentos a Dilma para chamar a população a seu favor. O mesmo Congresso que diz que não dá tempo é o que nesta semana iniciou férias (quer dizer, recesso) que contrariam o regimento do Legislativo e, mais importante, o bom senso. A petista pode pegar a todos no contrapé se convocar a população às ruas, expondo quem continua trabalhando para reverter dificuldades e quem decidiu ir para a praia porque está “muito cansado” – palavras do líder do PMDB, Eduardo Cunha, homem de sinceridade malufista.

O PT e Dilma precisam começar agora um debate que crie condições para uma renovação histórica do Legislativo no próximo ano. Entre os 200 milhões de brasileiros, não há 100 milhões de empresários e latifundiários, como faz crer a distorcida representação parlamentar, criada à força pelo dinheiro, e não pela agenda da sociedade. Neste sentido, Lula, sem cargo eletivo, tem o tempo, a liberdade e a habilidade discursiva que faltam à presidenta, e pode percorrer o país defendendo não apenas seu legado, mas a necessidade de construir mais. Se o fizer, no próximo ano pode se candidatar a deputado para puxar uma bancada grande de representação dos trabalhadores, capaz de ao menos fazer alguma sombra às bancadas conservadoras, cada vez maiores. Mesmo que não exerça o mandato, terá entrado para a história como um dos maiores deputados de todos os tempos, só por ajudar a promover uma limpeza nos corredores do Congresso.

O recado das ruas, à direita e à esquerda, foi claro: chega de acordão. Esgotou-se o ciclo “ganha-ganha” do lulismo, e daqui para a frente terá de ser na base do enfrentamento dos “velhos interesses” citados por Dilma. Ela tem a ingrata tarefa de decidir entre fazê-lo agora e deixá-lo para mais adiante. Se bancar a tarefa de peito aberto, mesmo que saia derrotada pelas urnas em 2014, escreve seu nome como o da presidenta que jogou a chantagem no lixo. Se esperar para executar a missão mais adiante, corre o risco de que as pulgas já tenham deixado a carcaça, e verá o fim melancólico de um governo que parecia promissor, mas acabou abraçado pelo conservadorismo.

17 julho, 2013

Ciência e Tecnologia - mais, melhor e mais rápido


Por: Glauco Arbix e João de Negri
Do Estadão

Não há caminho fácil nem atalhos para o desenvolvimento dos países. As nações que avançaram ao longo da História deram especial atenção às pessoas, à sua educação e à ciência e tecnologia (C&T). Investir em gente, na geração de conhecimento e em tecnologia é o que torna uma nação mais rica. Essa pode ser a síntese do Fórum de Debates sobre Inovação que o Estadão e a Finep organizaram com expressivas lideranças empresariais.

Se ainda há muito a fazer, é flagrante que o Brasil ingressou em novo patamar a partir do momento em que milhões foram incluídos num movimento virtuoso de crescimento econômico com inclusão. Ao mesmo tempo, essa alteração na pirâmide social pressiona as políticas públicas em todos os níveis. Superar a visão de curto prazo e perceber essas mudanças como o legado mais benigno dos últimos dez anos, apesar da turbulência, é a única via para equacionar os problemas históricos do nosso desenvolvimento. A começar pela superação radical do padrão de investimento em educação e C&T, tanto em volume quanto em qualidade. Quanto melhor a produção científica, maior for a capacidade inovadora das empresas e mais qualificada nossa população, maiores serão as chances de renovação e evolução da estrutura social brasileira.

O programa Ciência sem Fronteiras abriu as portas para um choque de conhecimento ao dar chance a milhares de jovens de se conectarem com os mais avançados centros de conhecimento. Avançar hoje nesse domínio significa sintonizar o esforço externo com um Ciência em Nossas Fronteiras. Assim como a presidenta Dilma Rousseff implementou um plano abrangente para impulsionar a inovação - o Inova Empresa -, é urgente a preparação de um Inova Ciência, programa capaz de atrair cérebros do exterior, completar a infraestrutura científica nacionalmente, dotar o País de grandes e novos centros de pesquisa e dar oportunidade a milhões de estudantes e pesquisadores para gerar a C&T de que tanto precisamos.

Só um plano com prioridades claras será capaz de superar a pulverização atual do investimento e estimular toda uma nova geração de pesquisadores e cientistas. Um plano que em uma geração coloque o País na fronteira do conhecimento em energia e sistemas ambientais, biotecnologia, inteligência artificial e robótica, nanotecnologia e manufatura digital, redes e sistemas de computação, medicina e neurociências e aeroespacial. Em torno desses campos de pesquisa é possível constituir plataformas críticas para uma mudança estrutural da nossa ciência capaz de alimentar e ser alimentada por uma economia e um ambiente inovador, de que tanto necessitamos.

Ao lançar o Plano Inova Empresa, com investimentos de R$ 32 bilhões, o governo federal deixou clara a relevância da inovação como instrumento essencial para elevar a produtividade e a competitividade da economia. O plano articula ministérios e agências e favorece a mobilização de competências e recursos. Tem foco e concentra suas ações nos segmentos críticos de tecnologia; prevê a integração de instrumentos como crédito, subvenção, não reembolsável e equity, hoje similares às melhores práticas internacionais; estabelece uma porta única de entrada nos programas prioritários; e descentraliza as ações de crédito e subvenção para melhorar a qualidade do atendimento a milhares de empresas de pequeno porte.

Há demanda? Não há dúvida. Mesmo com o ritmo mais lento da economia, projetos relevantes continuam chegando à Finep e ao BNDES. Os programas Inova (petróleo, saúde, aeroespacial, defesa, agro, etanol, fármacos), além de introduzirem a competição pelo crédito, avançam para o apoio às estratégias das empresas, ampliando o foco, hoje restrito a projetos. Esse arranjo está na raiz da elevação da qualidade das propostas apresentadas.

Os resultados preliminares do programa Inova Fármacos, com demanda três vezes superior à dotação inicial (R$ 1,3 bilhão), mostram o avanço da inovação empresarial com base na articulação público-privada. Na realidade, os arranjos montados entre empresas, institutos de pesquisa e Finep, coordenados pelo Ministério da Saúde e com base no uso do poder de compra do Estado, fazem do Inova Fármacos o programa de política tecnológica mais avançado das últimas décadas. Biofármacos, vacinas, hemoderivados, soros e toxinas serão produzidos com alta tecnologia para atender à população e combater flagelos como câncer, diabetes e artrites, entre outros; ao mesmo tempo, o programa contribuirá para a construção de uma autêntica indústria nacional de fármacos, avançada e de alta tecnologia.

O Inova Empresa, coordenado pelo MCTI, já mudou o patamar e o padrão de apoio à inovação tecnológica no Brasil. A sintonia de agenda é apenas a parte mais visível de uma longa evolução que atingiu empresas e governos nos últimos anos.

A presidenta Dilma inovou ao atacar com êxito o problema crônico dos juros altos e o custo da energia. Mostrou determinação ao apoiar as empresas que buscam reestruturar-se para melhor competir. E decisão para exigir das agências públicas um esforço pelo aumento da qualidade dos serviços e desburocratização de suas atividades. A Finep está entre as primeiras a aceitar esse desafio e iniciou com força sua reinvenção. Ainda neste mês a Finep enquadrará, em até 30 dias, todo projeto de crédito para inovação que as empresas solicitarem. Em 30 dias as empresas saberão as condições de juros, prazos e cobertura para decidirem se assinam ou não um contrato com a Finep.

Temos orgulho de participar do esforço pela renovação das instituições públicas. É o que nos dá força para sugerir e incentivar a preparação de um casamento indissolúvel entre a sociedade brasileira e a educação, ciência, tecnologia e inovação.

15 julho, 2013

Um novo movimento exige uma nova agenda

Foto do Terra
Do IHU
Dica @ptrenatosimoes 

A população que se identificou com os movimentos de rua de junho não atendeu à convocação das centrais sindicais para o Dia Nacional de Luta, quinta-feira. Para a socióloga Maria da Glória Gohn, professora da Unicamp e especialista em movimentos sociais, a nova geração de jovens não se identifica com as formas de organização existentes e reage ao modelo de sociedade em que vive, "de muito consumo, mas de qualidade de vida sofrível".

Entrevista de Marcelo Beraba, no Estadão.

Autora do recém-lançado "Sociologia dos movimentos sociais" (Cortez Editora), ela respondeu às questões do Estado por escrito logo que desembarcou, quarta-feira, de uma viagem de observação à Turquia, onde uma onda de protestos de rua contesta o governo do primeiro-ministro, Tayyip Erdogan.

Como define os movimentos de junho no Brasil?

Os movimentos ocorridos em Junho de 2013 em 12 capitais e cidades de médio porte brasileiras foram denominados pela mídia e outros como "manifestações". De fato eles foram, na maioria das vezes, manifestações que expressam estados de indignação face à conjuntura política nacional. As mobilizações adquiriram, nestes eventos, caráter de movimento de massa, de protesto, revolta coletiva, aglutinando a indignação de diferentes classes e camadas sociais, predominando a classe média propriamente dita; e diferentes faixas etárias, destacando-se os jovens. Os movimentos de Junho de 2013, que provisoriamente chamarei de "Movimento dos Indignados das Praças, Ruas e Avenidas", focalizam demandas locais, regionais ou nacionais. Atuam em coletivos não hierárquicos, com gestão descentralizada, produzem manifestações com outra estética - não dependem de um carro de som para mover a marcha, não usam bandeiras e grandes faixas de siglas ou palavras de ordem; os participantes tem mais autonomia, não atuam sob a coordenação de uma liderança central. São movimentos com valores, princípios e formas de organização distintas de outros movimentos sociais, a exemplo dos sindicais, populares (urbanos e rurais), assim como diferem dos movimentos identitários (mulheres, quilombolas, indígenas, etc.). Para compreender essa onda de mobilizações, além de identificar as especificidades e diferenças dos jovens em ação, uma questão significativa é: porque uma grande massa da população aderiu aos protestos.

Que sentido e significado estes jovens atribuíram aos acontecimentos para transformá-los em movimento de massa com ampla legitimidade?

Sabe-se que protesto de Junho foi desencadeado por coletivos organizados com o predomínio do MPL- Movimento Passe Livre, a partir de uma demanda pontual - contra o aumento da tarifa dos transportes coletivos. Olhando-se para os noticiários da mídia nacional nos últimos meses pode-se listar os prováveis motivos para a indignação que levou milhares de brasileiros às ruas, aderindo ao movimento dos jovens, a saber: os gastos altíssimos com estádios da Copa, megaeventos e uso do dinheiro público em eventos promocionais, a má qualidade dos serviços públicos, especialmente nos transportes, educação e saúde. Outros agravantes são: a persistência dos índices de desigualdade social, inflação, denúncias de corrupção, clientelismo político, a PEC 37, sentimento de impunidade, sistema político arcaico, a criminalização de movimentos sociais - especialmente rurais e indígenas, o projeto de Lei que tramitava no Congresso sobre "cura gay", a condução de importantes postos políticos no cenário nacional por políticos com passado marcado por denúncias etc. Ou seja, a despeito das políticas governamentais de inclusão social, e a boa imagem internacional do país até recentemente, como um emergente de sucesso, o Brasil tudo azul, para o senso comum de seu povo em geral, era uma construção irreal. Este 'povo' propriamente dito fazia suas leituras nas entrelinhas das notícias do dia-a-dia, e quando viu na TV e jornais jovens sendo espancados por lutarem por bandeiras que eram também sua, a mobilidade urbana, este 'povo' saiu às ruas e mais uma vez demonstrou que a cordialidade do brasileiro tem limites, dado por valores que atingem sua dignidade, e provocam ira e indignação. Estima-se que mais de um milhão de pessoas saíram às ruas no país em Junho. Só no dia 17, dados da mídia contabilizaram cerca de 230 mil pessoas, do Pará ao Rio Grande do Sul.

Em que se assemelham e se diferenciam dos movimentos que ocorreram no Oriente muçulmano, na Europa e nos Estados Unidos?

Os movimentos brasileiros de Junho de 2013 têm vários pontos de semelhanças e muitos de diferenças com os citados na pergunta. Em comum: fazem parte de uma nova forma de movimento social composta predominantemente por jovens, escolarizados, predominância de camadas médias, conectados por e em redes digitais, organizados horizontalmente e de forma autônoma, por isso são críticos das formas tradicionais da política tais como se apresentam na atualidade -especialmente os partidos e os sindicatos. As convocações para os atos são feitas via as redes sociais e a grande mídia contribui para a adesão da população ao noticiar a agenda e os locais e hora das manifestações. Eles têm estética particular nas manifestações: no conjunto não desfraldam bandeiras de organizações e nem usam faixas pré-confeccionadas; usam palavras de ordem em cima da demanda foco, sem carros de som, e o batuque ou as palmas são utilizados no percurso das marchas. O movimento acontece 'em se fazendo' e não via grandes planos de organizações com coordenações verticalizadas. Cada um leva seu cartaz em cartolinas, uma nova mensagem pode gerar uma decisão tomada no calor da hora. Na estética individual predomina o preto, máscaras de gás ou outras (como a de Guy Fawkes, do Anonymous), e eventuais percings. Eles têm sido alvo de ações violentas por parte da repressão policial. Conectam-se à redes de apoio internacional e a solidariedade entre eles é um valor e um princípio. São laboratórios de experimentações de novas formas de operar a política. Dirigem suas reivindicações a personagens específicos da cena público-política de cada país. Por esta razão, os movimentos brasileiros diferenciam-se dos Indignados da Europa, especialmente, Espanha, Portugal e Grécia, países em profunda crise econômica causada pelas políticas neoliberais de ajustes fiscais, controle e monitoramento pela 'troika' (FMI+ Banco Central Europeu), desemprego, retirada de direitos sociais, corte de salários, dispensa de funcionários públicos etc. Os Indignados brasileiros diferem mais ainda dos movimentos da Primavera Árabe devido à frágil democracia e forte controle social que predominam na maioria daqueles países e as relações entre política e religião via o Islamismo. Finalmente os Indignados nacionais diferem do Occupy Wall Street não só porque adotaram formas diferentes de agir, mas porque eles tiveram, no início, uma pauta específica: contra o aumento da tarifa e lutar pela tarifa zero. Eles não ocuparam um território específico como o Occupy, optando pelas passeatas; e nem realizaram bloqueios - tática que passou a ser utilizada depois, em atos que deram sequência às manifestações de Junho, em movimentos de caminhoneiros, motoboys, e no Dia Nacional de Luta (11/07/2013), organizado por nove centrais sindicais, MST, UNE, movimentos populares de moradia etc. reunindo cerca de 105 mil pessoas no país. Neste dia o MPL/SP optou pelo apoio à manifestação dos metroviários, mas não ao conjunto das manifestações, que considerou ter uma pauta ampla, burocratizada, focada só nos trabalhadores.

Como se diferenciam dos movimentos de 1968 e dos anos 1990 no Brasil?

1968 foi marcado, no Brasil, por movimentos que lutavam, em primeiro lugar, contra o regime militar vigente, em segundo pelo desejo de participar em uma sociedade que se modernizava mais ainda tinha acessos restritos, como à universidade com o problema dos 'excedentes' nos vestibulares. Certamente que havia no Brasil a influência de Maio de 1968 na França, e de outros países onde ocorreram mobilizações de estudantes. Os pontos comuns entre os movimentos de 2013 e 1968 são: o protagonismo de jovens, especialmente estudantes; a falta de espaço e canais para vocalizar demandas; a influência de ideias do socialismo libertário, o uso de meios de comunicação da época para articularem às ações - muros e a TV em 68, redes da mídia e celulares/IPAD etc. em 2013.

Como diferença destaca-se a relação com a política. Os jovens de 68 queriam participar da política, eram contrários às políticas conservadoras e porta vozes de políticas libertárias, aderiam a grupos com ideologias políticas; os manifestantes de 2013 querem outra política, diferente dos termos e formas como tem sido praticada. Querem outra política sem enquadramentos partidários e ideológicos, mais libertários. Em 68 propunham-se alianças com operários e camponeses.

Em 2013 não se coloca a questão de alianças de classe; questões da ética, da moralidade pública são prioritárias. Em síntese: em 68 os jovens queriam mudar a sociedade via mudanças políticas. Hoje, querem mudanças na política via atuação diferenciada do Estado no atendimento à sociedade. Não negam o Estado, querem um Estado mais eficiente.

A década de 1990 também é um referencial comparativo interessante para o caso brasileiro porque o protagonismo da sociedade civil despertou, na época, para a questão da ética e dos direitos, levando ao impeachment do ex-presidenteCollor de Melo. Os estudantes 'cara-pintadas' tiveram lugar de destaque na cena dos protestos. A conjuntura política do país passou a mudar e levou a formas institucionalizadas das reivindicações e demandas, com a construção dos conselhos e outros, previstos na Constituição de 1988. Os movimentos populares urbanos se reorganizaram para os novos tempos, de atuação na esfera pública. As ONGs cresceram e passaram a ocupar lugar de destaque na interlocução com o governo, atuando em projetos sociais com apoio de fundos públicos. Novas leis surgiram para regulamentar à relação Estado-sociedade civil. O conflito social no campo acirrou-se e o MST passou a ocupar a cena como o líder das lutas sociais. A virada do século trouxe o protagonismo de atores da sociedade civil organizada em temas dos movimentos identitários, formados a partir da onda de novos movimentos sociais que sacudiu o país ao final dos anos de 1970-1980, atuando em formas institucionalizadas, normatizadas por leis sob controle de máquinas governamentais. Os movimentos alterglobalizantes do final dos anos de 1990 e 2000, presentes nas edições do Fórum Social Mundial, introduziram novas pautas e formas de agir e se organizam de forma transnacional, com temas globais que podem ser acionadas em qualquer lugar do mundo. Nesta forma, as demandas do cotidiano perderam espaço na agenda social global. Criou-se assim condições para a nova onda de protestos, tais como o Movimento dos Indignados nas Praças, Ruas e Avenidas, que desencadearam mobilizações sem precedentes nas manifestações de Junho 2013 no Brasil.

O que querem estes jovens brasileiros que foram para as ruas protestar? Por que estão insatisfeitos se a educação foi ampliada, se estamos em pleno emprego e os problemas econômicos são recentes?

Eles querem ser escutados, querem falar e denunciar o desrespeito aos diretos dos cidadãos, e ter canais próprios para expressar demandas que não são específicas da categoria jovem, mas de toda sociedade. Vocalizam, por exemplo, que querem educação de qualidade (que inclui mais verbas, salários dignos, infraestrutura física adequada, formação para professores e demais profissionais da rede pública, bibliotecas e salas de informática, metodologias adequadas, transporte gratuito para os estudantes etc.). Para o ensino superior não aceitam ações apenas informadas por índices e provas, políticas de cotas, programas como PROUNI, etc. Na área da saúde idem. Os jovens são otimistas com o futuro e desencantados com o presente, simultaneamente. Do passado, poucos têm trajetórias de militância e experiências associativas anteriores. Participam de coletivos, mas preservam valores individualizantes, que é diferente de ser individualista.

A individualização é uma revolução de valores silenciosa que se observa em muitos países europeus na atualidade. Busca-se autonomia aliada à aspirações de ordem qualitativa; o desenvolvimento econômico é uma condição necessária, mas não suficiente. Há outros fatores para dar sentido à autonomia como respeito à cultura religiosa, senso cívico, interesse por causas públicas, participação associativa, confiança no outro e nas instituições, liberdade de escolha etc. Há falta de perspectivas aos jovens sobre o futuro deles na sociedade atual.

As políticas públicas de inclusão social propiciaram a ampliação do acesso ao ensino superior, mas o mercado de trabalho continua elitista. A maioria dos empregos é no setor de serviços. Os raros projetos sociais oficiais para a juventude circunscrevem-se a eventos culturais, oficinas (música, informática, hip hop). Além de insuficientes, de oferta irregular, estes projetos são voltados para o jovem das periferias, esquecendo-se dos jovens das camadas médias, não atingem o universo dos sonhos e desejos de perspectivas dos jovens em geral.

Por que a rejeição e hostilidade aos partidos políticos?

Estes movimentos representam todos aqueles que têm, na atualidade, uma profunda falta de confiança em toda forma de política e categoria de políticos. Por isso sua mensagem foi respondida por milhares que uniram-se a eles, indo às ruas. Eles querem outro país onde a ética e política andem juntas. Querem uma revolução na forma de operar a política e não uma reforma ou remendo do que existe. Não confiam na política atual e nem nos políticos. Negam a política atual e isso também é uma forma de propor outra coisa. A exemplo do MPL, que se declara apartidário, mas não antipartidário, eles querem renovar a política e o tipo de partidos e políticos atuais. Por isto o tema de uma reforma política inicialmente não lhes atraiu - a reforma seria feita pelos políticos que estão aí, que eles estão contestando. Não se sentem representados no quadro político institucional existente, eles não têm canais de expressão. Com isso detecta-se também uma crise de representação social destes grupos e uma crise de legitimidade das instituições públicas. A linguagem política dos manifestantes é outra. Seus códigos não se enquadram em planilhas, organogramas, planejamentos, siglas de planos e projetos.

Em que se inspiram estes movimentos? Que ideologias os inspiram?

Inspiram-se em variadas fontes, segundo o grupo de pertencimento de cada um. Como rejeitam lideranças verticalizadas, centralizadoras, não há hegemonia de apenas uma ideologia, utopia ou esperança que os motivam. Alguns retiram da esquerda ensinamentos sobre a luta contra o capital e as formas de controle e dominação do capitalismo contemporâneo, na busca da emancipação. Do anarquismo e socialismo libertário, grupos ressuscitam e renovam leituras sobre a solidariedade, a liberdade dos indivíduos, a autogestão, e a esquecida fraternidade-retomada nas ações de enfrentamento à repressão policial. Há também um novo humanismo na ação de alguns, expresso em visões holísticas e comunitaristas, que critica a sociedade de consumo, o egoísmo, a violência cotidiana - real ou monitorada pelo medo nas manchetes diárias sobre assaltos, roubos, mortes etc., a destruição que o consumo de drogas está causando na juventude e outros. Busca-se reumanizar os indivíduos, a paz, o combate à violência. Muitos não têm formação alguma, estão aprendendo na luta do dia-a-dia, formatando seus valores conforme o calor da hora.

Que reivindicações sintetizam as palavras de ordem das atuais manifestações? Quais são os grandes temas que mobilizam estes jovens?

No início, sabemos, o foco esteve nos transportes públicos, que no Brasil é transporte coletivo porque o caráter público se esvai com as concessões às empresas privadas, na sua operacionalidade. Depois o leque de demandas ampliou-se para outros serviços públicos (saúde e educação).Com a adesão de multidões às manifestações, as demandas ampliaram-se mais ainda e o alvo passou a ser 'contra tudo', seguida da denuncia sobre a violência da polícia. Os slogans dos cartazes, a maioria deles escritos à mão, rudimentares, são emblemáticos para ilustrar esta questão. "Nossos sonhos valem mais que 0,20"; "Democracia Já", "Desculpem o transtorno, mas estamos construindo outro Brasil", ou "Desculpem o transtorno, estamos mudando o país", " A Juventude acordou"," O povo não deve temer o governo, o governo deve temer o povo"," O Gigante acordou"," Ou para a roubalheira, ou paramos o Brasil" etc. Frases que proferiam também expressam suas ideias: "O povo unido não precisa de partido", "Parem de falar que é pela passagem. É por um Brasil melhor". No caso de São Paulo, um ativista do MPL deixou claro "Nós queremos um novo plano diretor e maior mobilidade na cidade". Portanto, aqueles que afirmam não ter o movimento metas, propostas, projetos, estão sendo cegos e surdos porque suas demandas são à base de outro modelo de desenvolvimento, baseado na escolha de outras prioridades nas políticas públicas, e em outros parâmetros éticos para os políticos que ocupam cargos públicos.

O que é "igualitarismo democrático" no nosso caso específico? Se aplica aos movimentos dos nossos jovens?

Uma das questões profundas que está em causa nas manifestações de Junho no Brasil, e em manifestações em outras partes do mundo, é a discussão da democracia. A democracia representativa está em crise, à democracia direta é um ideal, viável apenas em pequenos grupos ou comunidades; a democracia deliberativa poderia unir as duas anteriores, mas ainda é um modelo frágil, que padece de arranjos clientelistas nos poucos casos onde ocorre. Em suma, a democracia está em crise, mas há certo consenso de que ela é necessária. Resta, portanto, buscar nos atuais movimentos os indícios de novas formas de organização política, nos marcos da democracia. Seriam eles movimentos sociais em transição para movimentos políticos, que construiriam novas formas de representação? Talvez sim, desde que se entenda a política de forma diferente da atualidade. A política como arte da negociação para a construção do bem comum. Aqueles que decretaram a morte das utopias precisam rever suas ideias. A nova geração de jovens que se organizou e foi às ruas em Junho de 2013 não se identifica com as formas organizativas existentes, e estão atentas ao modelo de sociedade que vivem. Muito consumo, mas qualidade de vida sofrível.

O governo federal está tentando responder às reivindicações com uma reforma política através de plebiscito. Esse é o caminho? Isso será suficiente para satisfazer os movimentos em curso?

Políticos e autoridades governamentais mostraram-se surpresos com as manifestações em Junho. Após o impacto inicial, o governo federal passou a criar uma nova agenda para dar resposta à onda de mobilizações sociais. Isso já demonstra uma vitória e uma conquista da jornada de lutas de Junho, muito além da redução dos centavos nas tarifas. Os efeitos das manifestações foram sendo produzidos paulatinamente e observados na adesão de milhares de pessoas às manifestações, na repercussão internacional das manifestações, em jornais, TVs, Revistas, atos de apoio aos protestos (em Londres, Lisboa, Madri, Barcelona, Copenhagen, Berlin, York, Sydney, Atenas, Istambul etc.),e na aceleração na aprovação ou rejeição de propostas no Congresso (a exemplo do arquivamento da PEC 37 e do projeto da 'cura gay').

As manifestações levaram também, em Julho, a retomada das ações de mobilizações nas ruas por parte das centrais sindicais e movimentos populares rurais e urbanos, que há muito circunscreviam suas ações a atos em Brasília e na participação em conferências e eventos co-organizados por secretarias governamentais. Não deixa de ter significado também a queda da popularidade do governo federal e da Presidenta da República como indicadores claros de que o movimento não foi apenas duas semanas de agitação nas ruas. Certamente que o plebiscito-instrumento democrático previsto na Constituição foi uma ideia apressada, não bem explicitada, que não resolve no curto prazo as demandas colocadas. Ele serviu para diluir o debate sobre a conjuntura das mobilizações, e rejeitado pelo Congresso.

O governo esta tendo dificuldade de encontrar interlocutores após as manifestações de Junho. Ao retomar uma agenda de diálogo com os movimentos sociais, em Julho, os convidados para ir ao palácio presidencial foram os mesmos dos últimos dez anos: movimentos rurais, centrais sindicais, movimentos identidários (mulheres, afrodescendentes, indígenas, movimento LGBTTTS etc.), ambientalistas etc. As novas formas de movimentos, organizadas por ativistas em torno de tópicos específicos, como o MPL e outros coletivos destacados neste texto, não estavam anteriormente na agenda das políticas públicas.

No seu livro não há menção ao Movimento do Passe Livre, que deu início a esta onda de manifestações. Qual a importância deste grupo?

O MPL foi criado em 2005 em Porto Alegre, presente em manifestações importantes de estudantes em Florianópolis,Salvador etc. na questão das tarifas de ônibus . Promoveram ações em 2006 que denominavam de 'escrachos', momentos em que ridicularizaram atos oficiais e pautavam a demanda da Tarifa Zero. Segundo o site do MPL, ele se define como: "um movimento horizontal, autônomo, independente e apartidário, mas não antipartidário. A independência do MPL se faz não somente em relação a partidos, mas também a ONGs, instituições religiosas, financeiras etc." (www.saopaulo.mpl.org.br).

Meu livro, Sociologia dos Movimentos Sociais(Cortez 2013) foi lançado em Abril deste ano,e discute movimentos de jovens entre os anos 2011-2012, (os Indignados europeus, Wall Street, Primavera Árabe, no Brasil) e Maio de 68 na França. Ele retrata o cenário de novíssimos movimentos sociais, do gênero que esteve presente nas manifestações de Junho no Brasil.

Não listei nominalmente o MPL mas ele foi incluído no rol das novas reivindicações dos atuais movimentos sociais brasileiros, ao citar a sua principal demanda - "passe livre nos transportes públicos"( pág. 68). O MPL foi abordado em outro livro meu como parte do movimento estudantil (Movimentos Sociais e Redes de Mobilizações Civis, Vozes, 2010). A extensão do bilhete único existente em várias cidades brasileiras foi uma conquista que deve ser atribuída à luta do MPL. Dado o papel que o MPL desempenhou nas manifestações de Junho, certamente ele passará a ter um lugar central em novas manifestações futuras e receberá atenção de analistas e gestores. É bom recordar também que a luta pelos transportes públicos é histórica. Relembro a "Revolta do Vintém" em 1880 no Rio de Janeiro, e a luta por transporte (ônibus) ao final dos anos de 1970, em movimentos sociais populares em bairros da periferia em várias cidades brasileiras apoiados pelas CEBS - Comunidades Eclesiais de Base. A mobilidade urbana é uma questão central para o cidadão, para o exercício da cidadania e une todas as camadas sociais, que sofrem o pesadelo dos deslocamentos diários no trânsito, de ônibus, carro, trem ou metrô lotados.

Uma das evidências dos que acompanham as manifestações é de que o movimento reivindicatório sem violência está espremido entre grupos que agem com violência e a repressão policial. Como a senhora analisa este embate?

As manifestações iniciadas em São Paulo foram caracterizadas inicialmente, na mídia e por muitos políticos, como atos de "vândalos". Uma manifestante revoltada com este tratamento saiu no dia 13 de Junho com um cartaz "Não sou vândalo mídia". Neste dia, a 4ª manifestação do movimento em São Paulo, a policia tratou a todos como inimigos, houve centenas de feridos, muitas prisões e muita indignação. Este dia marcou a virada do olhar da sociedade, que passou a apoiar o movimento e ir às ruas para se manifestar também. A partir de então se pode observar melhor o que foi denominado como as 'tribos' que compunham o núcleo permanente dos manifestantes. Em São Paulo, participaram das manifestações, junto com o MPL, integrantes de partidos de esquerda PSOL, PSTU, PCO e alguns militantes do PT. Todas as bandeiras partidárias foram rejeitadas nas manifestações, gerando inclusive tumultos entre os que insistiram em desfraldá-las. Grupos anarquistas (Black Block, Anonymous, Kaos) estiveram presentes, com máscaras ou não. Teve-se também a presença de alguns punks. Os novíssimos movimentos sociais dos indignados das praças, ruas e avenidas, em várias partes do mundo, contam com a presença de grupos anarquistas e alguns reagem com violência à violência policial, em dadas circunstâncias. Eles são parte das novas formas de movimentos. Representam a 'resistência' - expressão usada nos países da Primavera Árabe para indicar os que não desistem, os que enfrentam e afrontam o poder constituído. Muitos são presos, feridos ou mortos, pois são alvos prediletos das ações de repressão da polícia. Quando ocorrem ações violentas, os confrontos são desiguais porque a maioria dos manifestantes portam apenas equipamento de autoproteção -máscaras, água, vinagre, bolinhas de gude para atrapalhar a cavalaria etc.

O fato dos movimentos serem constituídos por coletivos diversificados e diferenciados causa problemas internos quando um dos grupos aciona ações próprias, ou quer se destacar - mostrando suas bandeiras partidárias, por exemplo, ou usando a violência depredando bens públicos e privados. Acrescentem-se às dificuldades nas ações dos coletivos fatos como os ocorridos em algumas das manifestações, quando grupos de populares aproveitaram a confusão e saquearam lojas e edifícios públicos. Como estas diferenças poderão ser resolvidas, em um sistema de autogestão, sem líderes chaves (motivo de dificuldade também no diálogo ou negociação com os poderes constituídos), é uma incógnita. Um enigma a decifrar, pois é impossível manter mobilizações de massa por muito tempo.

Vários analistas têm alertado para a fragilidade organizatória do movimento, a não definição de rumos, e o perigo de ser apropriado por forças conservadoras da direita, como já ocorreu em outros momentos históricos de tensão social. Entretanto, não se pode esquecer a capacidade de aprendizagem dos ativistas, seu poder de reflexão e elaboração de sínteses a partir da prática. Muitos deles estão na fase de batismo na política, mas aprendendo muito. Outros, sabem o que não querem, e buscam definir o que querem nos parâmetros dos valores que acreditam. Por tudo isto é cedo para grandes balanços sobre as 'mobilizações de Junho'. O processo está em curso, um novo ciclo apenas iniciou-se, ele deve continuar, indo e vindo, como as ondas do mar.

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