21 abril, 2014

Petróleo movediço

Pangea. Imagem original de @korelmis
por Ildo Sauer*
do Estadão

As disputas que envolvem a Petrobrás transcendem os argumentos e motivações até agora enunciados. Estão vinculadas ao papel da apropriação social da natureza, particularmente da energia, para garantir a existência humana. Recursos com caraterísticas especiais, como o petróleo, têm permitido incrementar de forma extraordinária a produtividade do trabalho socialmente incorporado no processo de produção e, dessa forma, gerar excedente econômico. A partir do início do século passado o petróleo ocupou espaço central nas relações geopolíticas e nos conflitos, tendo como protagonistas as Sete Irmãs (as grandes do petróleo) e a disputa pelo acesso e controle dos recursos. A disputa do excedente está no foco das guerras, disputas, traições, invasões, golpes (Irã, Iraque, Líbia, etc.).

No pós-guerra, com a descolonização, os países centrais abriram mão dos territórios ocupados, mas não do controle sobre o petróleo e de outros recursos essenciais para a acumulação. A criação da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), em 1960, quando as petrolíferas internacionais ainda controlavam mais de 80% das reservas, abriu a disputa entre os países detentores dos recursos e as empresas e governos centrais que controlam a produção e consumo, e assim, o excedente. Os choques de 1973 e 1979 foram as primeiras tentativas, frustradas, dos países da Opep de se apropriarem de fatia da renda petrolífera. Esse quadro se alterou a partir de 2005 pela articulação entre a Opep e a Rússia, que já controlavam mais de 90% das reservas de petróleo. Lograram impor o preço acima de US$ 100 por barril, que é o custo de produção de líquidos com carvão, a única fonte alternativa com potencial de atender a toda a demanda.

Hoje os custos diretos de produção do petróleo, apenas capital e trabalho, sem transferências, impostos, taxas, situam-se entre US$ 1 (Arábia Saudita) e US$ 15 (pré-sal no Brasil e xisto, um petróleo não convencional, nos Estados Unidos) por barril. Com preços acima de US$ 100, emerge a renda petroleira de cerca de US$ 2,5 trilhões a US$ 3 trilhões, para uma produção bruta mundial de US$ 80 trilhões. Essa é a raiz da feroz disputa geopolítica. A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE, formada por 34 países para promover a democracia e o livre mercado) e a China buscam, via difusão dos recursos não convencionais (xisto), biocombustíveis, aceleração de novas fronteiras como pré-sal, Golfo do México e África, promover uma oferta capaz de afetar a coesão da Opep e Rússia para manter o equilíbrio entre produção e demanda e, com isso, os preços elevados.

Nesse contexto, a Petrobrás, com uma trajetória cinquentenária de avanços tecnológicos e com uma nova visão estratégica implantada a partir de 2003 (quando valia US$ 15 bilhões), ascendeu aos holofotes globais. Passou a priorizar a pesquisa e exploração no País e no exterior, a promover o uso do gás natural como substituto local do petróleo e a promover o desenvolvimento de fontes renováveis: biocombustíveis, eólica, solar. A descoberta do pré-sal foi resultado dessa estratégia, assim como a trajetória de valorização, superior à das demais petrolíferas, no mesmo ambiente de preços. Em fim de 2007, valia mais de US$ 250 bilhões. Os planos de investimento acompanharam a expansão, superando dezenas de bilhões por ano. Com os altos preços do petróleo, a renda petroleira, minúscula até 2005, aproximou-se dos US$ 70 bilhões anuais, sendo desperdiçada, sem objetivo estratégico, em royalties, participações, lucros e gastos correntes.

A renda petroleira poderá chegar a cifras monumentais, dependendo da confirmação das reservas do pré-sal, de US$ 200 bilhões a US$ 500 bilhões anuais, capazes de propiciar transformações radicais nas condições de vida do País. Porém, a exuberância de recursos, contratos e escolhas enseja desafios e armadilhas.

A Petrobrás, mais que antes, tornou-se objeto de interesse agudo da base política e econômica de sustentação do governo, dos acionistas e dos consumidores. As antigas práticas dos governos de coalizão de conceder franquias a grupos políticos nomeando despachantes de interesse em estatais e órgãos públicos avançam. Ocupando os cargos, privilegiam as empresas e empresários simpáticos aos partidos e políticos patrocinadores em detrimento dos legítimos interesses e obrigações, com abandono de projetos essenciais e implantação de outros inadequados.

A democracia, que prometia o resgate da dívida social, metamorfoseia-se com características de cleptocracia. Acirra-se a disputa pelo butim. Os acionistas buscam a valorização das ações, os consumidores, especialmente os de insumos industriais e do transporte individual, querem preços mais baixos. O governo atropela a lei para controlar o índice inflacionário, impondo preços subsidiados. O povo, pelo artigo 20 da Constituição é proprietário do petróleo e dos potenciais hidráulicos, e pelo artigo sexto tem assegurados direitos sociais à educação, saúde, moradia e outros, mas continua excluído.

Surgem, na esteira de Pasadena, investigações, debates e a CPI para tratar de problemas de vulto muito maior, sumidouros de riqueza pública. A Petrobrás precisa explicar os custos fora do padrão em Abreu e Lima, no Comperj (Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro), no gasoduto Urucu-Manaus, SBM e assemelhadas. Também os processos e valores obscuros da venda dos campos de petróleo, já em produção, na África e no Golfo do México, da venda de ativos e de reservas no Brasil. Há ainda o danoso leilão de Libra e as tergiversações sobre as responsabilidades do Conselho de Administração e dos dirigentes. Se as investigações e debates elucidarem os conflitos e abrirem espaço para o povo se assenhorar do petróleo e da Petrobrás, para construir sua autonomia e resgatar seus direitos, com o mínimo da democracia, o País terá avançado.
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*Ildo Sauer é PhD pelo MIT,
professor do Instituto de Energia e Ambiente da USP
e ex-diretor de gás e energia da Petrobrás, de 2003 a 2007.


09 abril, 2014

Espelhos

por Denise Queiroz

setembro de 2012, arquivo pessoal
Meu pai nasceu em 1913. Trigêmeo e de parto normal lá naquele lugar que era só um povoado, no interior do Rio Grande do Sul. Revezavam-se ele e as irmãs para mamar, ora na vó, ora na ama de leite, a mãe do seu Euzébio, que jurava ser mais velho que o pai. Conheci os dois já quando estavam com os cabelos esbranquiçando. Seu Euzébio ensinou, a quem quis aprender, os sinais que os passarinhos nos dão. ‘Pica-pau bicou no telhado’ ele já ligava o radinho de pilha pra saber quem tinha falecido. Além da natureza e de terem mamado na mesma mãe, sabiam da cidade quem ‘prestava’ e de quem deveriam manter distância.

Numa tarde, quando já morávamos na cidade - os irmãos mais velhos já em cidades maiores para estudar - pára um carro na frente. Cidade pequena, todos sabiam quem tinha que carro. O pai lá nos fundos, cuidando da lenha. Fomos, minha irmã e eu avisar que o seu fulano, um vizinho lá de fora que só conhecíamos pelo nome, estava lá. O pai arregalou bem arregalados os olhos azuis, escorou com cuidado o machado e foi andando até a pia para lavar as mãos, que não usava para cumprimentar aquela pessoa.

Na frente da casa soltou um 'buenas' seco e depois um 'pois não'. O outro anunciou a que veio. Alguma rês ferida ou morta, alguma cerca rompida, não lembro. “Vamos, te levo”, disse o vizinho. “lhe agradeço, vou no meu auto”. E o pronome lhe deixava claro o tipo de proximidade que tinha ou queria com o outro. Foram, cada um no seu veículo, acho que resolveram o problema.

E a outra cena que tenho lembrado muito nestes dias é do meu irmão, moleque, chegando correndo em casa num final de tarde, anunciando que o Brasil tinha ganho a copa. Acho que era a de 70. Pulava faceiro na área dos fundos e contava que lá no café e no hotel, lugares que tinha TV e onde todos se reuniam para ‘ver o mundo’, estava a maior festa. O pai olhou pra ele e disse “Muito bem, que comemorem. A vaca ta lá esperando o pasto” (era uma das tarefas desse irmão, cortar o pasto para a vaca que a mãe ordenhava toda manhã).

Conto estas passagens só para esclarecer que não vejo defesa possível para alguém usar favores de pessoas sabidamente desonestas. Assim como não vejo defesa possível para que um evento bilhardário e midiático seja merecedor de tanta atenção e despesa. E nem é a vaca que está esperando o pasto.


02 abril, 2014

O limite para o escárnio virá das urnas?

por Denise Queiroz



Em meio à averiguação de um crime bárbaro, um dos investigadores é visto mandando uma mensagem para um dos suspeitos. A mensagem tranquiliza o destinatário, a investigação dá em nada, o crime hediondo fica sem punição, assim como o investigador.

A situação é absurda, mas, no entanto, real. Só não soube dela quem não quis, pois ocorreu à vista de todos e os protagonistas são figuras públicas. A ilicitude foi pauta nos noticiários por dias, em 2012. 

E nesta semana, às vésperas da instalação de outra CPI, fomos informados de que o atual vice-presidente da Câmara dos Deputados viajou com a família, para férias de verão, num jatinho do doleiro Alberto Youssef, preso desta vez pela operação lava-jato, da Polícia Federal.  Ele justificou o uso do jatinho : “As passagens aéreas estavam muito caras, ele tinha um jatinho e eu paguei o combustível”.

Pobre deputado, não? Será que temos que rever os salários destes dedicados servidores, eleitos para cumprir a Constituição do país (que prevê punição para favorecimentos e trocas de favores)? Com estes salários baixíssimos que recebem, é afinal plenamente justificável aliar-se e receber favores de conhecidos criminosos, não é Sr. André Vargas? Óbvio também que é mais barato pagar o combustível do avião do desinteressado amigo do que comprar uma passagem para viajar nos apertados assentos das companhias aéreas, onde teria que dividir espaço com gente 'normal'.

Estou com pena do deputado. Sério. Seguramente as verbas de gabinete também são tão baixas que ele nunca teve acesso aos jornais na época da CPI do Banestado, onde o seu querido amigo de 20 anos, que ele não sabia como ganhava o pão, ficou conhecido para além dos gabinetes.

Qual pessoa minimamente informada não ouviu falar do escândalo do Banestado? E dos nomes envolvidos? E também: que pessoa se relaciona com outra por 20 anos e não tem a mínima ideia da fonte do pão dessa pessoa? 

Talvez mais grave que pegar carona em jatinho de contraventor, seja tentar fazer todos de bobos. Ou isso escancara afinal o que pensam, lá dos gabinetes, com sua aura refrigerada, os que são alçados à categoria de condutores dos destinos de milhões de brasileiros?
 
Escárnio. Foi isto que vimos na CPI do Cachoeira, quando Cândido Vaccarezza, também petista, garantiu ao governador do PMDB do Rio que ele não seria investigado, naquela mensagem digna do submundo, “você é nosso, nós somos teu” . E escárnio é o que lemos nas declarações primárias do vice-presidente da câmara.

Infelizmente nós, que pagamos do próprio bolso para ler jornais ou assistir TV, sabemos que eles não são os únicos e que, também nos outros partidos, vários tem as mãos sujas. A diferença, para mim, é que nunca votei num deles nem participei ou fiz campanha para eleger qualquer de seus filiados.  

Mas, além de Vargas e Vaccarezza, me envergonham todos os outros membros e militantes dos diretórios do PT que tentam justificar com algo semelhante a ele fez, mas os outros também fazem, em vez de exigir a saída imediata deles do partido e dos cargos que ocupam - os quais, está claro, não têm a grandeza necessária para ocupar. 

Era outra a proposta, pois não?
  
Curar a raiz que atitudes como as desses dois senhores ajudaram a danificar, já não se pode mais. Mas não custa podar. 

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