30 junho, 2013

Ensaio geral para 2014

Foto: Brasil De Fato












por Paulo Moreira Leite

Para o governo Dilma, acabou a estratégia do piloto automático, de quem poderia, com base em altos índices de aprovação popular, apenas administrar o governo até o momento da votação. 

Ao cair 27 pontos, Dilma permanece em posição de favoritismo - pelo menos até o primeiro turno - mas já enfrenta concorrentes de verdade. 

Uma leitura cuidadosa do levantamento mostra que a presidente teve uma boa iniciativa ao assumir a direção dos debates sobre a reforma política. O mesmo eleitor que jogou sua aprovação para baixo aplaude a ideia de plebiscito, por 68%. 

Mas é bom ver o que os números dizem sobre os candidatos. 

Marina Silva deu o salto mais respeitável. 

Joaquim Barbosa demonstrou que tem seu lugar entre uma parcela de eleitores, em especial de renda mais alta. 

Aécio Neves cresceu mas paga o preço de ser o mais "político" dos concorrentes num ambiente de rejeição a tudo que representa a categoria. 

Eduardo Campos ficou estatisticamente no mesmo lugar, situação que, se não se modificar rapidamente, coloca em questão o chamado espaço vital de sua candidatura. 

Se essa situação for mantida até outubro de 2014, teremos eleição em dois turnos, o que é o pior cenário para Dilma. 

Está claro que, após três derrotas consecutivas a partir de 2002, a oposição não escolherá candidato, prioritariamente. Sua prioridade é retirar o PT do Planalto, de qualquer maneira. Para isso, mesmo uma quarta (ou quinta) candidatura, de José Serra, pode ser benvinda. 

A queda de Dilma ocorreu após três semanas de protestos imensos, que colocaram reivindicações legítimas. 

Mas é obvio que a queda foi amplificada de modo gigantesco pelo comportamento da maioria dos meios de comunicação. Eles trataram as mobilizações com inédita simpatia, chegando a minimizar momentos de baderna e violência para não criar grande rejeição entre os espectadores. 

Determinados analistas comparam a queda de Dilma com a queda que Fernando Collor enfrentou logo confisco de depósitos bancários, no distante ano de 1990. Mas, apesar do imenso prejuízo causado às famílias, por um plano que provocou comentários irônicos mesmo por parte de Fidel Castro, em seus primeiros momentos o confisco recebeu o apoio resignado da maior parte dos meios de comunicação. Foi elogiado pela ousadia, pela audácia, porque não havia outro jeito, sei mais o que.

Dilma não teve direito a nenhum tipo de refresco. Politizados, ajudando a construir o discurso oposicionista, os meios de comunicação atuaram como parte de uma máquina ocupada em usar gritos e faixas das manifestações de rua para desgastar o governo pela direita e pela esquerda, por cima e por baixo, exibindo uma tolerância despudorada pela desordem que nem todos souberam compreender e aceitar no devido tempo. 

Numa operação universal, até veteranos apresentadores de programa de auditório entraram na dança. 

Jovens humoristas também. 

A internet mostrou uma oposição mais ativa e organizada do que o governo. Estava pronta para o combate, com palavras-de-ordem que capturaram um movimento espontâneo, com alvos da vida cotidiana, para a denuncia global contra o governo federal. Colou o ForaDilma aos 0,20 dos ônibus. 

Numa atitude colonial, que demonstra até onde determinados adversários podem chegar, chegou-se a empregar até vídeos em inglês, com legendas em português, num recurso que tinha uma finalidade dupla. 

Externamente, ajudavam a criar um ambiente de alarme e boicote, num esforço que poderia permitir, num segundo momento, ações concretas de governos estrangeiros contra o governo brasileiro. 

Internamente, buscava-se produzir uma ilusão de ótica - a de que o país se encontra internacionalmente isolado, o que é errado e até ridículo após vitórias recentes, como a direção da OMC e a conquista de uma cadeira na Comissão de Direitos Humanos da OEA. 

Nem tudo pode resumir-se a um conflito de máquinas de propaganda, porém. Os protestos trouxeram questões reais e reivindicações legítimas, muito além da motivação inicial, que era revogar o aumento da passagem de ônibus. 

O dado da pesquisa é que Dilma não perdeu terreno entre os mais pobres mas entre os cidadãos com renda média e mais alta. 

Conforme o DataFolha, a maioria dos brasileiros aponta a saúde pública como principal problema de sua existência. Isso quer dizer alguma coisa. 

Estamos falando do ponto essencial do Estado de Bem-Estar, que o Brasil começou a colocar de pé, muito embrionariamente, após a Constituição de 1988 e, em especial, após a posse do governo Lula, quando os gastos sociais assumiram uma proporção inédita no orçamento federal. 

Ao produzir uma evolução reconhecida na distribuição de renda, o desenvolvimento dos últimos anos jogou uma massa de milhões de famílias para aquele universo da chamada nova classe média, classe C, o que for. São pessoas com novas preocupações e prioridades. Uma delas é que, com uma renda maior, as vezes só um pouco maior, passam a pagar impostos maiores - e sentem-se, corretamente, no direito de fazer exigências mais elevadas junto aos poderes públicos.

São pessoas que com mais dinheiro no bolso, escaparam da má qualidade do SUS para cair nas arapucas dos planos privados, tão eficientes para cobrar mensalidades como incompetentes para prestar serviços prometidos. 

Para fugir da má qualidade do ensino público, pagam mensalidades de escolas privadas - muitas de qualidade duvidosa, igualmente.

Esta é, a meu ver, a questão de fundo que irá dominar o debate nos próximos meses. O apoio ao plebiscito mostra que o governo Dilma tem um espaço para caminhar na ampliação do bem-estar. 

Ao fugir, de qualquer maneira, de uma consulta popular, a oposição já deixou claro a imensa distancia que mantém em relação às exigências democráticas colocadas pelas ruas.

A eleição não será resolvida no debate sobre formas de governo ou financiamento de campanha mas em respostas concretas para a maioria da população. 

Para o governo, a pergunta é o que fazer para recuperar o eleitor perdido. 

Para a oposição, agora com nova audiência, a pergunta é que fazer para atrapalhar essa recuperação e consolidar uma situação que pode ser favorável em 2014. 

A mensagem é esta. 

Comprometida, de forma cada vez mais clara, com programas de enxugamento de gastos que conduzem, necessariamente, ao desmanche de serviços públicos, a oposição tem pouco a oferecer neste terreno. Seus candidatos podem variar, mas o eixo de suas preocupações é outro. 

Trata-se de construir um Estado mínimo, que nem de longe será capaz de atender àquilo que a rua reclama. Não há como fingir: seu programa é a versão, verde-amarela, da austeridade que hoje conduz a Europa a ruína. 

Vamos falar com clareza maior. A oposição brasileira tem evoluído para uma visão radicalizada e extremista de seu próprio conservadorismo. 

Não convive com meias medidas nem reformismos leves, como o PMDB que fez a carta de 1988 ou mesmo o PSDB e sua fatia desenvolvimentista. 

Se é possível fazer inúmeras críticas a condução da política econômica do governo Dilma, não custa lembrar que as principais ideias da oposição eram, invariavelmente, muito piores. 

Em nome de uma prioridade duvidosa ao combate à inflação, defendiam medidas que fariam o desemprego explodir e o crescimento, já baixo, transformar-se em recessão. 

Em vez de ir as ruas protestar por novos direitos, como agora, a população estaria mobilizada para defender o que possui. 

Este é o debate que se inicia

28 junho, 2013

O monstro acordou


por Ferréz
da Carta Capital

Imagem: Colecionador de pedras 


Se você entrasse num bar de periferia há alguns anos e perguntasse o que eles acham do Movimento Sem Terra ou das “invasões”, como são comumente chamadas, os fregueses do bar, em sua maioria, diriam que era uma pouca vergonha e alguns até desafiariam o movimento a entrar em suas casas, ironicamente um barraco de madeira de dois metros quadrados.

De uns anos pra cá, quando se trata de qualquer movimento social, as conversas mudaram, o cidadão começou a prestar mais atenção no que anda rolando, com vários meios de comunicação agregados, como blogs, redes sociais etc. A notícia tem vários pontos de vista, todo mundo que tem um celular é um repórter, todo mundo que digita mensagens também pode escrever um texto com sua opinião.

Já presenciei cenas em que o ponto de vista de um senhor de 50 anos foi transmitido pelo seu neto, que viu na internet o fato e comentou com o avô.

E, quem diria, as conversas tão exaltadas do governo, segundo quem não existe mais miséria no Brasil, seriam um dia contestadas, não por intelectuais que conhecem de números e índices, mas sim pelo próprio povo que o elegeu.

Os protestos não se dão por um só motivo, muita gente sabe disso, mas a fragmentação do que querem é ainda maior. Uns lutam por hospital, outros pela reprovação da PEC 37, e a maioria pela moralização da política brasileira.

Vamos aos fatos na crua realidade do dia-a-dia. O que adianta ter carro, se as vielas não tem passagem, se chegar a qualquer lugar virou um desafio infinito de paciência? O governo diz que somos todos pedestres, pede respeito um ao outro, mas depois de uma hora no trânsito todo mundo vira um canalha.

São Paulo tem lindas pontes para exibir seu congestionamento; lindos prédios para você ver enquanto caminha a pé na marginal; nossos moradores têm medo de assalto, alergia a poluição. Fazemos brigas dignas de UFC ao vivo em qualquer lugar. Ter ponte igual à Europa não quer dizer que os postos de saúde tenham pelo menos algodão.

É fácil se tachar e ser tachado de classe média e não poder pagar a luz de casa, não poder ter tevê a cabo, pois o arroz subiu de 6 para 10 reais em meses.

A classe média engorda os protestos, pois tudo que paga também não funciona – os planos de saúde marcam consultas para dois meses com especialistas. Está quase no padrão SUS.

A bolha falsa do progresso estourou, a caixa de Pandora se abriu, e isso é visível quando você vê o tiozinho que é fanático por futebol dizendo que esses gastos com estádio são “tiração” demais, pois sua cirurgia foi remarcada para o ano que vem, e os exames só valem mais três meses.

O monstro acordou, ninguém pode mais para dormir, tudo tem um limite e o nosso já chegou. Eles mentem na tevê, a gente se liga na internet, eles falam de pesquisas, a gente ouve as vozes das ruas, eles mudam de opinião, a gente desliga o rádio e vai pra rua ouvir algo mais contundente.

A balela em defender o patrimônio está caindo, não adianta morar bem e não poder abrir a janela.

Agora ninguém fecha mais, somos mais do que a luta por moradia, pelo direito de ir e vir, não podem nos tachar por classe social, pois todo mundo tá junto nessa. A cidade é nossa e essa briga também.

Os gritos são contra a roubalheira, contra apanhar de fardado por querer levar o pão para casa, por querer vender CD’s nas ruas – chega de levar tiro por estar no bar jogando sinuca.

Todos parecem querer olhar bem na cara do sistema e dizer: Nem sua mídia tá mais do seu lado, o cenário que eles vão encontrar aqui no ano da Copa é parecido comThe Walking Dead, pois todos nós estamos na ilha de Lost.

Quem em qualquer periferia consegue manter a família do jeito que tá? No centro das cidades, quantas empresas fechando, quantos pequenos comerciantes desistindo, pois todo tipo de mercadoria vem mais barato do estrangeiro?

Tenho dezenas de exemplos de amigos que sempre trabalharam duro e, agora, sem saída, estão vendendo tudo que têm, tentando correr atrás de outra possibilidade de manter a sua família. Mas, se o progresso era tão festejado, onde ele está?

Nas passeatas, a força da multidão mandou baixarem as bandeiras de partido. Os que caminham com lenço no rosto não se identificam mais com nada que tenha siglas. Suas falas são contundentes.

Estamos todos cansados de pagar, de apanhar, de cheirar fumaça, de ser trânsito, de perder celular no farol, de ser maltratado por todo mundo que tem um uniforme, de ser convencido a ter e não a ser uma pessoal melhor.

A resposta do governo é a de sempre – bala de borracha para o aluno que nunca teve material digno na escola, gás lacrimogêneo para o pai de família que não teve sequer inalação para o filho no posto de saúde, spray de pimenta para o camelô que luta o dia todo e viu que a marmita já estava azeda.

O que todos querem? É só ler as placas: hospitais padrão Fifa. Mas fazer política no Brasil é ficar muitos anos sem conversar com o povo, descobrir as favelas só para pedir votos.

O povo quer alguém que, ao descer as vielas, saiba andar nelas, quer ver o terno cheio de poeira, o colarinho aberto, o suor na pele não tão lisa, não tão branca, quer um deles com cara de nós.

O povo não quer pedir mais nada, quer exigir, por isso foi para as ruas, que são deles, que são nossas, mas onde não mais levamos nossos filhos para brincar.

Um sonho era ver brasileiros usando a bandeira não somente para os jogos.

Talvez tenhamos um plano mesmo para gerir esse país, sem que tenhamos que mudar as cores dos uniformes das escolas a cada troca de prefeitura, um país que não mude as gestões das subprefeituras a cada troca de vereador.

Talvez um país onde a escola particular seja igual à pública, onde o convênio e o SUS são parecidos em qualidade, onde a segurança não precise ser privada.

Ainda se tem muito para mudar, muito para exigir, e nossos motivos para protestar nunca foram tantos.
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*Ferréz é escritor 
e fundador da 1DaSul, 
grupo que promove eventos 
e ações ligadas ao hip-hop 
no Capão Redondo, em São Paulo





27 junho, 2013

Um sistema vencido e que não ousa inovar-se

Imagem: Inovadores


por Tarso Genro*
do IHU (original publicado na FSP)

A abertura de um processo constituinte para promover uma reforma política é o caminho republicano para repactuar a sociedade brasileira no presente ciclo histórico.

Só assim será possível evitar o caminho da violência, recompor o espaço democrático para resolução dos conflitos de interesse e valorizar os novos movimentos sociais, que exigem novas formas de escuta e de diálogo.

Sustento que a anomia e a violência, que podem ser hoje desatadas por qualquer fagulha, em qualquer país do mundo, são absolutamente nocivas por razões ético-morais e por razões políticas.

A sua síntese só poderá ser uma: mais fechamento do Estado aos clamores da cidadania e não mais liberdades e mais direitos.

A sociedade brasileira não é a mesma de dez anos atrás, não só pelos novos protagonistas em "rede" - com o seu desejo de participação e sua irreverência em relação às instituições clássicas da democracia (aliás, mais ou menos falidas). Mas também porque a inclusão de milhões de famílias no consumo suscitou novas demandas, especialmente nas grandes regiões metropolitanas, cujos serviços públicos de baixa qualidade devem ser completamente remodelados.

É óbvio que momentos como o atual incendeiam avaliações românticas, tanto do esquerdismo como do fascismo, de novas marchas "pós-modernas" sobre Roma ou de tomadas de Palácios de Inverno.

Mas o poder não está mais lá. Nem se tem mais ideia, hoje, do que seria (nas condições da atual estrutura de classes e das novas tecnologias infodigitais) uma revolução dos trabalhadores (quais deles?) ou um "grande irmão" fascista (ou um comitê de "grandes irmãos"?), este que colocaria tudo em ordem para a classe média alta não se incomodar.

De outra parte, não só aqui no Brasil, o partido moderno surgido da experiência das grandes revoluções está totalmente superado e não tem saída.

Não se trata de uma crise por "falta de ética na política", mas pelo fato de que as "redes" promoveram o salto do cidadão anônimo para a esfera pública. Ele agora se exprime na sua pura singularidade, sem a necessidade de compartilhar publicamente para tornar-se influente.

Um processo constituinte atípico para promover uma profunda reforma política, precedido de um plebiscito convocado segundo a Constituição, é uma oportunidade extraordinária para fazer avançar o sistema por dentro da democracia.

Esse processo poderia incorporar a contribuição, por meio das novas tecnologias à disposição do colegiado de representantes constituintes, de milhões de jovens das redes, cujas linguagens, desafios e desejos não foram compreendidos por nenhum partido até o presente.

Todas as agremiações, sem exceção, foram pegas de surpresa e ou tentaram se unir aos movimentos ou tentaram direcioná-los segundo os seus interesses políticos imediatos.

Teríamos daí, no Brasil, uma experiência democrática de vanguarda. A eleição daria origem a uma assembleia de representantes, que incluiria pessoas eleitas sem partido. Combinado a isso, contaríamos com a participação e a colaboração direta de milhões, não só por meio das mobilizações sociais tradicionais, mas igualmente pelos meios virtuais, tanto para receber contribuições como aferir opiniões.

Resta saber se o Congresso Nacional terá a ousadia de vencer sua paralisia burocrática para responder à crise nacional. A questão do país não é uma corrupção em abstrato. A questão do país é a corrupção concreta de um sistema político vencido e é um cansaço da democracia, que não ousa inovar-se.
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*Tarso Genro foi prefeito de Porto Alegre, Ministro da Educação e da Justiça e é governador do Rio Grande do Sul.

26 junho, 2013

Rocinha e Vidigal na porta do Cabral

É a política, estúpido


por Roberto Amaral 
da Carta Capital
via @WillianFagiolo


Certamente, o melhor caminho para esse artigo será começar com uma comemoração: viva o fim da pasmaceira, viva a redescoberta da política, amaldiçoada pela grande imprensa, condenada pela direita e ignorada por uma esquerda que renunciou à luta ideológica. Os jovens romperam com a esquizofrenia dos dois mundos contemporâneos, o falso mundo da alienação diante dos problemas sociais, e o mundo real da crise social – o mundinho do político fazendo politicazinha, aprovando emendinhas, verbinhas para pontezinhas, e o mundo real da tragédia urbana. Enquanto o País fervia nas ruas, a Câmara Federal discutia a matança de cachorros no interior do Pará, e o seu presidente, em doce vilegiatura em Moscou, se divertia enviando fotos do Kremlin. Foi o melhor uso que encontrou para o Twitter.

Mas o gigante despertou e decidiu da melhor maneira que se conhece na democracia: pela voz das ruas.

Afora os adivinhadores de fatos já ocorridos, os observadores da cena política se mostraram surpreendidos tanto pela irrupção estudantil quanto por suas consequências. Um movimento de classe média (segundo o IBOPE-TV Globo, 75% dos manifestantes em São Paulo eram estudantes, 70% deles universitários, 43% tinham menos de 24 anos, 49% tinham renda familiar superior a cinco salários mínimos) despolitizado, que agia sem atender ao chamamento de organizações políticas, antes as rejeitando (96% dos manifestantes não são filiados a qualquer partido, 83% não se sentem representados por qualquer líder político, 89% não se sentem representados por qualquer partido político), bradando contra um aumento de 20 centavos nas passagens de ônibus na cidade de São Paulo, terminou, com a inefável colaboração da truculência da polícia paulista, em protestos que se espalharam como rastilho de pólvora por todo o País – chegando, no Rio de Janeiro, a mobilizar uma multidão de algo como 200 mil manifestantes que percorreu as quarto pistas da avenida Presidente Vargas, da Candelária até à Cidade Nova, onde fica a Prefeitura. Nada menos que 3,5 quilômetros de pessoas em movimento.

O fato político notável já se caracterizara, fosse pela espontaneidade (a ausência de partidos, sindicatos e outras organizações financiando e mobilizando a movimentação das massas), fosse pelas multidões que acorreram às ruas. Reivindicações difusas, expressas em inumeráveis cartazes de cartolina escritos à mão, forte e saudável participação de jovens a indicar que felizmente deixavam de pensar apenas no próprio umbigo, e ausência de lideranças ostensivas (não havia discursos) foram as principais características de todas as manifestações. Não almejavam o poder, nem tinham um inimigo claro a combater. O que os unia era o desejo de um Brasil melhor. Já não se pode chamar essa juventude de alienada, como antes.

A repressão paulista teve o dom de trazer para o campo das ações a questão democrática, não só o direito de manifestação da cidadania, que os governos de São Paulo e Rio de Janeiro tentaram impedir, mas a obrigação do Estado de assegurá-lo, respeitando os direitos civis. Em menos de uma semana, enquanto partidos e sindicatos burocratizados permaneciam atônitos e silentes, os jovens desorganizados realizaram a proeza de trazer a política de volta e pautar a política do país. Refiro-me ao encontro dos estudantes com a presidente Dilma e desta com governadores e prefeitos, concertando uma pauta de reivindicações nacionais.

E aqui atrevo-me a assinalar o que me ocorre como o fato mais significativo: a inversão da política. A mão única, do Estado (como tal leia-se também Congresso e tudo o mais), deliberando à revelia do povo, mesmo quando o fazia em seu benefício, como as conquistas sociais outorgadas pela ditadura do Estado Novo. A tradição da via prussiana sofre seu primeiro grande abalo. Pela primeira vez desde 1964 – quando as baionetas calaram as ruas – são as ruas que indicam para seu governo (no seu sentido mais lato) as conquistas que desejam e exigem.

Na verdade, o levante contra o aumento das tarifas de ônibus foi a gota d’água de um copo que os partidos de esquerda, e a grande sociedade, não sabiam que estava por transbordar. Os jovens, que primeiro chegaram às ruas reclamando da política (mas, na verdade, pretendendo condenar os políticos e os partidos), condenavam, sem disso terem consciência, a ausência da política simbolizada na absoluta ausência de debates, na absoluta ausência de diálogo ideológico, na inoperância de um Congresso sem representatividade e de uma Justiça cara e lenta, letárgica e injusta quando se trata de julgar os pleitos dos pobres. E de uma onda de chefes de executivos, do Planalto para baixo, optando pela gestão pela gestão como forma de fazer política, quando Lula (e antes dele Juscelino) nos haviam ensinado que é pela política que se faz a boa gestão, porque gerir é fazer opção.

Os jovens se manifestavam contra um sistema político que renuncia à política para privilegiar a artimanha, e por isso põe no mesmo palanque Lula e Maluf. Um sistema no qual o líder da campanha contra os ‘mensaleiros’ (capa da revistona) é um senador sócio de um traficante; e sonegar impostos, como faz a elite econômica, não é crime, mas esperteza.

Em nome da governabilidade, o governo se assenta em uma bancada que vai do seu PT ao PP e assim se impede promover as reformas que deve ao País. Passa, assim, a ter a forma do PMDB, ou seja, forma nenhuma. Falando às pedras do deserto, o governador Eduardo Campos, justiça lhe seja feita, vem advertindo que a coalizão governamental de hoje não tem mais correspondência com o Brasil real. Este que grita nas ruas.

A política não é a ‘arte’ da só negociação, da transação, da unanimidade, nem do consenso, inimigos da revolução e das reformas. A política exige lado. A pasmaceira mentirosa, o centrismo amorfo, foram desmoralizados pelos jovens nas ruas, mostrando que a República que começamos a construir em 1988 está velha, envilecida, superada, com suas artes e suas manhas, seus chefes e chefetes, seus patronos e seus áulicos, os rentistas da avenida Paulista e o sindicalismo de resultados. Os partidos de direita, falsos até em não se reconhecerem como tal, e os partidos do campo da esquerda repetindo o Príncipe de Lampedusa: é preciso que tudo mude para que tudo fique como está.

Eis a tragédia: em nome da continuidade eleitoral, deixamos de ser instrumentos da mudança, o projeto que nos justifica. Em nome do pragmatismo, abandonamos a política, abandonamos nossas teses, abandonamos nossos programas, nossas diferenças... até a construção da geleia atual, cujo objetivo é deixar como está para ver como fica. Partidos e políticos de esquerda e de direita, estadistas e anões, chafurdando no mesmo lodaçal, passamos a ser a mesma coisa para o povo, pois, à noite, todos os gatos são pardos.

O povo que saiu às ruas, a classe média que se supunha morta (de início, predominantemente estudantes universitários do Mackenzie e da USP), para protestar contra um irrelevante 20 centavos de aumento no preço dos transportes, terminou, em dias, realizando a obra renunciada pelos partidos: inserir na pauta política as reformas pelas quais o País clama desde os tempos das ‘reformas de base’ do governo Goulart: uma reforma política que avance da falsidade representativa de hoje para a participação direta da cidadania, como há tantos anos reclamam constitucionalistas como Paulo Bonavides; uma reforma que assegure um sistema de representação mais verdadeiro, uma relação mais genuína e fluente entre eleitos e eleitores, governantes e governados; a reforma tributária e sua carga regressiva que os interesses fiscais dos Estados sabotam, punindo o consumidor; a reforma do Judiciário monárquico e seletivamente lerdo, porque classista; e a democratização dos poderosos meios de comunicação, sem o que falar em democracia será pura hipocrisia, porque não há democracia onde há monopólio da informação.

O povo, na ruas, fortaleceu a democracia. E nenhum objetivo seria aceitável se o pressuposto não fosse esse. Estamos longe daqueles idos nos quais os proletários nada tinham a perder, ‘senão os grilhões que os prendiam’. O Brasil tem a perder a conquista de caro, caríssimo processo de construção democrática e nacional que sem dúvida alguma é ainda insatisfatório, mas foi duramente conquistado e tem muitas posições avançadas a defender.

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23 junho, 2013

O futuro que passou



Do IHU

Enfim concedida a revogação dos aumentos das tarifas de transporte nas duas principais metrópoles brasileiras, Rio de Janeiro e São Paulo, a tarde de quinta-feira se anunciava como o momento de comemoração para o movimento cívico e apartidário que tomou as ruas do País nas últimas duas semanas. O que se viu, no entanto, foi a expansão incontrolável dos protestos, com mais de 1 milhão de pessoas em cerca de cem cidades brasileiras. E, embora o tom geral das massas de manifestantes se mostrasse pacífico, cenas de conflito e vandalismo foram vistas por toda parte. Em Brasília, três ministérios foram depredados. No Rio, 62 pessoas ficaram feridas. No interior paulista, um jovem manifestante morreu atropelado e, em Belém, uma gari perdeu a vida após inalar gás lacrimogêneo lançado pela polícia.

por Ivan Marsiglia
do Estadão


No calor de acontecimentos que atingem proporções inéditas desde a redemocratização brasileira, o filósofo Paulo Arantes desfia, na entrevista a seguir, as perplexidades do "país do futuro" - que afinal chegou, trazendo consigo antigas contradições. "A vida no Brasil sem dúvida melhorou, e muito, nestas duas décadas de ajuste ao capitalismo global. No entanto, ninguém aguenta mais", afirma o professor aposentado da USP e doutor pela Universidade de Paris X, Nanterre.

Para Arantes, nunca é demais lembrar que o Maio de 1968 na França também eclodiu em um contexto de crescimento econômico, pleno emprego e políticas de bem-estar social. Comparação que, no entanto, para por aí. E que se as "jornadas de junho" nacionais, como o filósofo as chama, referenciam-se de fato em rebeliões altermundistas como a de Seattle-1999ou de Nova York-2011, encontram no Brasil ambiente ainda mais explosivo, "tamanha a desagregação social em que nos enfiamos". E avisa: para evitarmos o risco de uma derivação autoritária, será preciso que governantes municipais, estaduais e federais deixem de lado suas "cabeças de planilha" e levem a sério a reivindicação radical de cidadania expressa nas ruas.

Eis a entrevista.

‘Perplexidade’ foi a palavra mais usada na descrição dos últimos acontecimentos em todo o País. O sr. também ficou surpreso?

É verdade, só hoje de manhã li pelo menos três artigos confessando "perplexidade" diante dessas realmente espantosas "jornadas de junho". Cada um com o seu assombro diante da "mais expressiva, surpreendente e rápida vitória popular de nossa história", nas palavras do cientista político Rubens Figueiredo, que atribui a rendição dos governantes locais, Estado e município, à "potência e capacidade de mobilização das redes sociais". O que os ideólogos da sociedade em rede estão chamando de autocomunicação, Kant falaria em uso público da razão. Seja como for, mais um motivo de espanto. Voltemos às três visões perplexas. O cronista, que admite não estar entendendo nada e exige a mesma franqueza dos demais, da imprensa, dos políticos e dos próprios manifestantes; o correspondente internacional, que talvez tenha vivido anestesiado pela rotina da profissão, cobrindo anos de prosperidade festejada pelos investidores estrangeiros; o veterano do mundo petista agoniado pelos sinais alarmantes de fadiga da estratégia de mudanças sem ruptura, com dez anos de conquistas dentro da ordem e níveis coreanos de aprovação eleitoral arriscando ir para o vinagre à menor gota d’água.

Como entender esses sinais, em um contexto de baixo desemprego e de crescimento, ainda que modesto, na economia?

A vida no Brasil sem dúvida melhorou, e muito, nestas duas décadas de ajuste ao capitalismo global. No entanto, ninguém aguenta mais. Essa a dissonância básica, ainda mais estridente quando o contexto é de baixo desemprego, como você bem lembrou. Não seja por isso. Sei que a comparação frisa o disparate, mas não custa recordar que o maior movimento contestatário da segunda metade do século XX, disparado pelo maio francês de 1968, ocorreu justamente no auge de um ciclo inédito de crescimento econômico, pleno emprego e Estado social a todo vapor, sendo que três meses antes da explosão o mais acatado colunista da época publicara um artigo descrevendo a França como um país entorpecido pela autossatisfação. A herança do Maio, entretanto, já se disse, é uma herança impossível. E a moçada do Passe Livre sabe muito bem disto: onde havia um horizonte de superação, existe uma ratoeira. Essa armadilha é o Brasil do futuro que afinal chegou. Como disse um poeta, "o horizonte sorri de longe e arreganha os dentes de perto". Por exemplo, a brilhante dentadura do PM baixando o porrete no casal de namorados num bar da Av. Paulista.

De que maneira o Passe Livre, que teve início em 2005, se aproxima e se diferencia dos movimentos sociais a que estávamos acostumados no Brasil?

O Movimento Passe Livre, como de resto seus congêneres nascidos da galáxia altermundista, sobretudo os descendentes da velha tradição da Ação Direta, discrepa dos movimentos sociais clássicos, para não falar é claro, dos partidos da esquerda histórica, embora seja igualmente temático como os demais movimentos, e obviamente de esquerda. É filho de Chiapas, Seattle, etc., das lutas contra a OMC, Alca & cia. Sua família é por certo a dos autonomistas. E, embora restrito a um foco único, é maximalista, como estamos vendo agora: a meta é a tarifa zero. Cuja razoabilidade demonstrada nas suas cartilhas de clareza igualmente máxima são exemplares como introdução prática à crítica da economia política. Pelo tênue fio da tarifa é todo o sistema que desaba, do valor da força de trabalho a caminho de seu local de exploração à violência da cidade segregada rumo ao colapso ecológico. Simples assim, por isso, fatal, se alcançar seu destinatário na hora social certa, como parece estar ocorrendo agora.

Daí a ressonância de uma causa como a da ‘tarifa zero’, tida como inviável?

Exato. E são tão afiados no manejo do melhor argumento contra a aberrante insensatez do atual modelo de transporte coletivo - e socialmente convincentes, como estamos vendo -, que, em contraste, as planilhas dos governantes parecem, elas sim, cifras fantasiosas ornamentando o jogo das concessionárias que se conhece. Mas de tanto levarem às cordas essas raposas das planilhas criativas, a expertise adquirida no processo foi aos poucos colando, num só personagem, o libertário e o gestor ideal de políticas públicas "igualitárias". Não estou insinuando que cedo ou tarde esses jovens estarão operando do outro lado do balcão - como já o fazem no âmbito da cultura digital, no qual a livre associação de livres produtores revelou-se o melhor caminho para gerar empreendedores shumpeterianos e novos formatos de negócios, como se diz no jargão do capitalismo cognitivo.

Não à toa, demonstra-se por a+b que a circulação urbana planejada à luz de uma tarifa zerada exponenciaria a performance econômica de uma cidade, e estenderia o direito à cidade. Uma ruptura de época está nos arrastando para uma outra praia não menos conflagrada e na qual os europeus já vivem há tempos: onde em torno dessas famigeradas políticas públicas de gestão de um presente congestionado - da segurança à moradia - um grupo se amotina e as correspondentes instituições coercitivas fecham o cerco. Por isso na Av. Paulista um dia é pau outro dia é flor.

Além da reivindicação ‘irrealista’ da proposta de tarifa zero, fala-se muito sobre o ‘caráter difuso’ dos protestos. O sr. concorda?

Me parece muito mais insensata a hipótese contrária, de que centenas de milhares de pessoas ganhem as ruas para pedir a Lua. O engenheiro Lúcio Gregori, secretário de Transportes na cidade de São Paulo no governo Luiza Erundina, tem dito para quem quiser ouvir que só a horrenda política tributária no Brasil impede a gratuidade no transporte coletivo, tão viável quanto o SUS, escolas públicas e coleta de lixo. Quanto ao "caráter difuso" das demandas, trata-se de um bordão pejorativo porque, em sua infinita variedade, além de serem de uma espantosa precisão - nada menos do que tudo, como o Terceiro Estado em 1789 queria tudo por não ser nada -, elas sugerem um limiar que no fundo ainda não se ousou transpor.

Muitos têm dito também que as manifestações são o equivalente brasileiro de movimentos como o da Primavera Árabe e o Occupy Wall Street. A comparação procede?

A Primavera Árabe são outros quinhentos. Salvo a tática de ocupação de um local emblemático e o ímpeto do enfrentamento, nada a ver. Da geopolítica - estão no olho do furacão de uma guerra pela ordem mundial - à mescla de trabalhadores pobres e populações destituídas com uma religião militante e suas violentas divisões sectárias. Já o similar doOccupy americano reproduziu-se por aqui há dois anos, mas passou desapercebido, encoberto pela melhora dos índices de Gini no País.

Na Turquia sim, um par de analogias salta aos olhos, porém não mais do que isso, pois estamos falando de um país-membro da Otan e implicado numa guerra civil no vizinho árabe: também um estopim com cara de causa menor, a desfiguração de uma praça entregue à especulação imobiliária, do outro lado da barreira, um governante com altos índices de aprovação e por isso mesmo acometido da apoteose mental que conhecemos bem, enterrado até o pescoço em megaprojetos para lá de duvidosos.

Quanto aos Indignados espanhóis, é inegável o ar de família, menos quanto ao desfecho conservador, embora ninguém saiba qual será o nosso, tamanha a desagregação social em que nos enfiamos: uma imponderável deriva à direita pode ocorrer a qualquer momento.

O fato é que há mesmo muita "indignação" de um tipo novo nas ruas brasileiras em ebulição, tão nova essa indignação que ousou tocar no santo dos santos, a Copa. E olhe que acompanho futebol desde 1950, nunca vi ninguém se atrever a tamanha profanação. O papa não perde por esperar...

A imagem de estádios de Primeiro Mundo em contraponto a serviços públicos de terceiro deu força à tal ‘revolta da catraca’?

O estopim da tarifa também passou por aí, e para além do importante movimento dos atingidos por megaeventos, alcançou a imaginação da massa infeliz condenada à catraca: queremos tarifa com padrão Fifa - bem como hospitais, escolas, creches, no mesmo padrão Fifa de qualidade. Humor popular direto ao ponto, porém um tantinho inquietante: então seria esse o metro da "cidadania social" a que se aspira? Luxo e apropriação direta dos fundos públicos?

A proximidade com os Indignados europeus dá mesmo o que pensar. Fica no ar a dúvida: e se tivermos ingressado finalmente na era dos protestos desengajados - como os qualificou um sociólogo britânico -, quando protestar se tornou uma questão estritamente pessoal, e o ativismo, a rigor, um estilo de vida?

Em fevereiro de 2003 1 milhão de pessoas foram às ruas na Grã Bretanha em protesto contra a iminente invasão do Iraque. Recolhidos cartazes e bandeiras, não deixaram nenhum rastro social ou político pelo caminho, salvo a palavra de ordem famosa "não em meu nome", isto é, não me envolvam nessa barganha de sangue por petróleo.

Na mesma linha, outro conhecedor da cena inglesa observou que os europeus que promovem festa e casamento durante os protestos o fazem porque sabem que as demonstrations só demonstram para os próprios demonstradores. Quando a maré virou, e a vara de condão da PM "transformou" vândalos em indignados pacificamente distribuídos por nichos genéricos de demandas, a narrativa midiática dos acontecimentos não precisou forçar a mão para desviar-se do gatilho do movimento - e apresentar a manifestação como um fim em si mesma. Essa a moldura do imortal "está lindo vocês nas ruas".

Essa alternância entre vandalismo e cidadania foi o que tornou os protestos tão difíceis de decifrar?

Acho que há menos mistificação do que supõe a socióloga da FGV Silvia Viana, ao notar, num ótimo artigo, que são tantas as negativas - "não são só os 20 centavos, não é só o transporte, não é só a Copa..." - que o movimento parece um protesto por nada. Mas não é o que diz uma jovem manifestante, ao ser indagada sobre as motivações de sua presença no ato: "Olha, eu não consigo imaginar uma razão para não estar aqui".

O teórico alemão Wolfgang Streek traduziria um pouco à la bruta: vim consumir política, no caso, repudiar um sem-número de "produtos", a saber tais e tais políticas públicas que não me satisfazem. Se não me engano, foi esse o ponto da entrevista do professor José Garcez Ghirardi (Em Trânsito", 16/6), domingo passado neste mesmo caderno. Alguém observou que muitas palavras de ordem nos protestos decalcavam slogans publicitários, a começar pelo "Grande Despertar" de uma marca de uísque.

E o próprio ‘vem pra rua’, da propaganda de uma fábrica de automóveis...

Puro agitpub: o autor da boutade acrescentou que se tratava menos de ouvidos treinados por jingles do que casos dedetournement espontâneo à maneira dos situacionistas franceses. Mas, e se não for bem assim? À notícia da capitulação, o bom senso tático da esquerda tradicional recomendaria uma pausa para consolidação das conquistas. Parece não ser mais o caso. Nas palavras de um ativista, não só em solidariedade às outras cidades que ainda estão na luta, mas porque uma pauta puxa a outra, "a mobilização não pode parar, a cultura da mobilização não deve parar". Mas precisamos, sim, parar para pensar, antes de celebrar o que quer que seja, salvo a derrota acachapante dos reis da planilha.

Um coletivo de estudiosos e militantes da questão social no Brasil poderia muito bem dizer que essa mobilização permanente tem menos a ver com a mobilização total de uma sociedade de consumo do que com a implicação, e o "engajamento", das pessoas arrastadas pelo novo assalariamento vulnerável, que estão ralando e padecendo e no entanto engajadas em duas frentes, a do trabalho que ninguém gosta de ver estropiado por chefias despóticas e avaliações espúrias e a do senso do vínculo social a ser reconquistado que decorre dessas engrenagens desenhadas para infligir sofrimento. Quem sabe não virá também dessa outra fonte de energia social o som e a fúria que se vê nas ruas?

Do ponto em que estamos, já é possível vislumbrar em que isso tudo vai dar?

Até agora mais ou menos cem cidades com manifestações marcadas ou já ocorrendo. Era de 70% de aprovação no Datafolha, segundo consta, o índice do Movimento das Diretas no seu começo. Como lhe dizer que estou entendendo o que seria inconcebível dez dias atrás? E olhe que o povo lulista - na acepção precisa que lhe deu o cientista político André Singer - mal começou a dar o ar de sua graça: tarifa zero dentro da ordem seria demais para o seu "horizonte de desejo", para usar a ótima expressão de Wanderley Guilherme? E quando o desemprego voltar com o tremendo arrocho fiscal pela frente? Deixará de lado a saída empreendedorista pela ação coletiva? Como reagiria a classe média, que até agora extravasou seu ressentimento atávico contra um pouco de tudo, na hora em que a gente diferenciada deixar de ser apenas uma ameaça virtual? Salvo a Copa, o consenso em torno do Brasil emergente ainda não foi arranhado. Se em algum momento se sentir sob ataque, reagirá como de hábito, cerrando fileiras em torno de um campo popular ad referendum, os cenários pré-64 sairão das gavetas mais uma vez, etc. Muitas dissonâncias portanto nessa unanimidade toda, além do mais fabricada pelos âncoras transmitindo ao vivo o impensável na pasmaceira dos últimos anos.

Na sexta-feira, já ficava clara não só a apreensão da Fifa em relação à Copa do ano que vem, mas a do Comitê Olímpico Internacional sobre a Olimpíada de 2016 no Rio de Janeiro. São preocupações fundadas?

A Copa do Mundo não está indo para o vinagre apenas porque está ficando cada vez mais claro o engodo da redenção urbana operada por megaeventos do gênero. A ficha que caiu agora é o escândalo do seu tremendo custo público alavancando lucros privados inconcebíveis. Temos um ano pela frente, num cenário de retrocesso econômico, de volta à ortodoxia do primeiro mandato de Lula, tempo suficiente para que amadureça a percepção pública do real significado da Lei da Copa, essa sim uma verdadeira lei de exceção. Veremos de perto, entre outras derrogações e violações, o exercício da soberania corporativa sobre territórios e populações. Não faltarão gatilhos para outra onda de manifestações em cascata: tem muita gente com coceira nos dedos.

O sr. disse certa vez que o pensamento crítico brasileiro encontrava-se em ‘coma profundo’. Parafraseando um dos slogans mais cantados nos atuais protestos (‘o povo acordou’), acha que ele pode despertar agora?

Vasto assunto. Como o dito pensamento crítico brasileiro prestou relevantes serviços à inteligência nacional, por que não deixá-lo descansar em paz?
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Leia também:  Esperando o expresso 2222

20 junho, 2013

O preço do progresso (em política não há vazio)




por Boaventura Souza Santos*
do Carta Maior

Com a eleição da Presidente Dilma Rousseff, o Brasil quis acelerar o passo para se tornar uma potência global. Muitas das iniciativas nesse sentido vinham de trás mas tiveram um novo impulso: Conferência da ONU sobre o Meio Ambiente, Rio +20, em 2012, Campeonato do Mundo de Futebol em 2014, Jogos Olímpicos em 2016, luta por lugar permanente no Conselho de Segurança da ONU, papel ativo no crescente protagonismo das "economias emergentes", os BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), nomeação de José Graziano da Silva para Diretor-Geral da Organização da Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), em 2012, e de Roberto Azevedo para Diretor-Geral Organização Mundial de Comércio, a partir de 2013, uma política agressiva de exploração dos recursos naturais, tanto no Brasil como em África, nomeadamente em Moçambique, favorecimento da grande agricultura industrial sobretudo para a produção de soja, agro-combustíveis e a criação de gado.

Beneficiando-se de uma boa imagem pública internacional granjeada pelo Presidente Lula e as suas políticas de inclusão social, este Brasil desenvolvimentista impôs-se ao mundo como uma potência de tipo novo, benévola e inclusiva. Não podia, pois, ser maior a surpresa internacional perante as manifestações que na última semana levaram para a rua centenas de milhares de pessoas nas principais cidades do país. Enquanto perante as recentes manifestações na Turquia foi imediata a leitura sobre as "duas Turquias", no caso do Brasil foi mais difícil reconhecer a existência de "dois Brasis". Mas ela aí está aos olhos de todos. A dificuldade em reconhecê-la reside na própria natureza do "outro Brasil", um Brasil furtivo a análises simplistas. Esse Brasil é feito de três narrativas e temporalidades.

A primeira é a narrativa da exclusão social (um dos países mais desiguais do mundo), das oligarquias latifundiárias, do caciquismo violento, de elites politicas restritas e racistas, uma narrativa que remonta à colónia e se tem reproduzido sobre formas sempre mutantes até hoje. A segunda narrativa é a da reivindicação da democracia participativa que remonta aos últimos 25 anos e teve os seus pontos mais altos no processo constituinte que conduziu à Constituição de 1988, nos orçamentos participativos sobre políticas urbanas em centenas de municípios, no impeachment do Presidente Collor de Mello em 1992, na criação de conselhos de cidadãos nas principais áreas de políticas públicas especialmente na saúde e educação aos diferentes níveis da ação estatal (municipal, estadual e federal).

A terceira narrativa tem apenas dez anos de idade e diz respeito às vastas políticas de inclusão social adotadas pelo Presidente Lula da Silva a partir de 2003 e que levaram a uma significativa redução da pobreza, à criação de uma classe média com elevado pendor consumista, ao reconhecimento da discriminação racial contra a população afrodescendente e indígena e às políticas de ação afirmativa e à ampliação do reconhecimento de territórios e quilombolas e indígenas.

O que aconteceu desde que a Presidente Dilma assumiu funções foi a desaceleração ou mesmo estancamento das duas últimas narrativas. E como em política não há vazio, o espaço que elas foram deixando de baldio foi sendo aproveitado pela primeira e mais antiga narrativa que ganhou novo vigor sob as novas roupagens do desenvolvimento capitalista todo o custo, e as novas (e velhas) formas de corrupção. As formas de democracia participativa foram cooptadas, neutralizadas no domínio das grandes infraestruturas e megaprojetos e deixaram de motivar as gerações mais novas, orfãs de vida familiar e comunitária integradora, deslumbradas pelo novo consumismo ou obcecadas pelo desejo dele.

As políticas de inclusão social esgotaram-se e deixaram de corresponder às expectativas de quem se sentia merecedor de mais e melhor. A qualidade de vida urbana piorou em nome dos eventos de prestígio internacional que absorveram os investimentos que deviam melhorar transportes, educação e serviços públicos em geral . O racismo mostrou a sua persistência no tecido social e nas forças policiais. Aumentou o assassinato de líderes indígenas e camponeses, demonizados pelo poder político como "obstáculos ao desenvolvimento" apenas por lutarem pelas suas terras e modos de vida, contra o agronegócio e os megaprojetos de mineração e hidrelétricos (como a barragem de Belo Monte, destinada a fornecer energia barata à indústria extrativa).

A Presidente Dilma foi o termómetro desta mudança insidiosa. Assumiu uma atitude de indisfarçável hostilidade aos movimentos sociais e aos povos indígenas, uma mudança drástica em relação ao seu antecessor. Lutou contra a corrupção mas deixou para os parceiros políticos mais conservadores as agendas que considerou menos importantes. Foi assim que a Comissão de Direitos Humanos, historicamente comprometida com os direitos das minorias, foi entregue a um pastor evangélico homofóbico e promove uma proposta legislativa conhecida como “cura gay”. As manifestações revelam que, longe de ter sido o país que acordou, foi a Presidente quem acordou.

Com os olhos postos na experiência internacional e também nas eleições presidenciais de 2014, a Presidente Dilma tornou claro que as respostas repressivas só agudizam os conflitos e isolam os governos. No mesmo sentido, os presidentes de câmara de nove cidades capitais já decidiram baixar o preço dos transportes. É apenas um começo. Para ele ser consistente é necessário que as duas narrativas (democracia participativa e inclusão social intercultural) retomem o dinamismo que já tiveram. Se assim for, o Brasil estará a mostrar ao mundo que só merece a pena pagar o preço do progresso, aprofundando a democracia, redistribuindo a riqueza criada e reconhecendo a diferença cultural e política daqueles para quem progresso sem dignidade é retrocesso.

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Boaventura de Sousa Santos é sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).

19 junho, 2013

Sejamos realistas, façamos o óbvio

Foto: Jardineira


Por Antonio Lassance
Do Carta Maior

Em maio de 1968, os jovens franceses que erguiam barricadas tinham como uma de suas palavras de ordem: “sejamos realistas, peçamos o impossível”. Em uma das manifestações, a universidade de Paris, com o aval do governo francês, indicou o sociólogo Alain Touraine como negociador. Touraine perguntou: quem é o líder de vocês e o que vocês querem? O interessante das duas perguntas é a total surpresa e prostração de muitos governantes, diante do inimaginável, e o nó na cabeça quando se está diante de pessoas que pedem “o impossível”, ou que são “contra tudo e contra todos”.

Ainda mais incrível é como a tarefa de reduzir o preço das passagens se tornou algo considerado “impossível”. Na verdade, em várias das cidades brasileiras, a passagem de ônibus baixou. Significa dizer que, para muitas cidades, a ação do Governo Federal de zerar alguns dos impostos que incidem sobre o transporte coletivo surtiu efeito rápido e imediato, mas não nas capitais. Em algumas delas, é a justiça quem está obrigando à redução.

Como o Governo Federal distribuiu a benesse sem cobrar contrapartidas mais específicas, que nesse caso poderiam inclusive ajudar em seu esforço para diminuir a inflação, a oportunidade oferecida pela redução dos impostos foi engolida pelos governos estaduais ou municipais. Alguns justificaram como uma opção concreta para recuperar investimentos. Mas não é com o dinheiro da PIS/Cofins e da Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico que isso deveria ser feito.

Dados da Secretaria de Transportes de São Paulo revelam que, desde 2004, o número de ônibus em São Paulo diminuiu, enquanto a quantidade de passageiros cresceu em quase 80%. O período compreende o último ano da administração municipal do PT e atravessa toda a era Serra-Kassab na prefeitura paulistana. Provavelmente, a situação é similar em várias outras cidades, o que explica claramente como o transporte coletivo foi meticulosamente preparado na última década para se tornar uma panela de pressão ainda mais quente. Mas, a essa altura do campeonato, pouco importa perguntar de quem é a culpa.

A eclosão dos movimentos de contestação ao preço das passagens do transporte urbano coincide com o calendário da Copa das Confederações, o que transformou o evento em um momento emblemático do contraste entre os investimentos suntuosos em estádios, que ficaram rigorosamente prontos a tempo, e o atraso nas obras de mobilidade. As cenas do Recife, com torcedores uruguaios e espanhóis indignados com a situação dos ônibus e metrô, mostraram que o verdadeiro cartão de visitas do Brasil aos torcedores estrangeiros já não é mais o estádio e o aeroporto, é o transporte urbano. As capitais têm um ano para refazerem os planos e acelerarem a conclusão das principais obras de melhoria urbana. De preferência, com as máquinas trabalhando na madrugada, como foi feito para construir estádios.

As manifestações também praticamente coincidem com o calendário das conferências estaduais das cidades. Elas estão previstas de ocorrer de julho a setembro. Prefeituras e governos estaduais, além dos canais de negociação que acabaram de ser abertos, deveriam canalizar suas energias para mostrar que as conferências podem ser o palco não apenas da discussão sobre o preço das passagens, mas sobre o direito à cidade. Em alguns casos, antecipar sua data de realização talvez fosse uma boa medida para mostrar a disposição dos governos em discutir os problemas a fundo.

Ou esse debate é abraçado pelos dirigentes governamentais como algo a ser enfrentado e discutido de peito aberto, nas conferências, ou a rua vai continuar sendo o palco da maior conferência de cada uma dessas cidades.

Todavia, em mais um lance do inacreditável futebol clube, o ministro das Cidades, até o momento, apenas falou mal e ironizou os manifestantes, ao invés de aproveitar a onda de protestos como um mote para discutir as políticas públicas de sua área.

Outra medida óbvia pode ser extraída do velho clichê de transformar uma crise em uma oportunidade. Os governos têm pouco mais de um ano e meio para regulamentar a política nacional de mobilidade urbana. Aprovada em 2012, a lei é fruto de um debate que ficou interditado no Congresso durante praticamente uma década. A obrigação de cumprir os prazos da lei agora se transformou em urgência política.

A lei da mobilidade é uma oportunidade para os governos reformularem sua política de financiamento ao transporte e passarem a defender abertamente a retomada dos subsídios e resgate das empresas públicas de transporte. Ficou claro que, se podemos construir estádios, podemos inverter prioridades para financiar o transporte coletivo. Se podemos ter estádios de primeiro mundo, podemos ter transporte de primeiro mundo. A questão, mais uma vez, óbvia, é quem pode e deve pagar essa conta; quanto vai custar e de onde vão sair os recursos.

Isso implica não apenas em discutir novas fontes de financiamento como assumir compromissos no sentido de abrir a caixa preta do transporte coletivo. Em inúmeros casos, o cartel dos transportes coletivos se transformou em máfia faz tempo. É bom que prefeitos e governadores se apressem em abrir seus livros-caixa antes que sejam obrigados a fazê-lo, ou pelos protestos, ou pelo Judiciário, ou pelos tribunais de contas, ou, o que é mais provável, por todos eles. Não pode pesar dúvida sobre a relação de prefeitos e governadores com empresas de transportes, nem sobre o destino dos recursos utilizados no sistema.

Nessa hora, por mais paradoxal que possa parecer, o importante é partir do óbvio para se chegar ao improvável. Cabe aos governos, mais do que aos manifestantes, organizar o debate. Aos manifestantes cabe o papel muito salutar de virar as ideias de cabeça para baixo.

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*Antonio Lassance é cientista político e pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). As opiniões expressas neste artigo não refletem necessariamente opiniões do Instituto.

Precisamos de mais democracia, participação e transparência


Talvez uma das expressões que o governador Tarso Genro mais use seja 'temos obsessão pela transparência'. E sempre que a usa, explica que a transparência, junto com a participação, é o que fortalece a democracia. Na última quinta-feira (13), no lançamento do aplicativo "De olho nas Obras", do Gabinete Digital, essa foi mais uma vez tônica do discurso, uma vez que o aplicativo é uma importante 'chave de fenda' para a democracia. 

A ferramenta interativa permite que todos acompanhem, via web, as etapas das obras em execução no Estado. Desde os dados financeiros, licitação, prazos - dados antes restritos aos gabinetes do governador, dos secretários e administradores - a fotos e videos, podem ser consultados e comentados no aplicativo, de funcionamento semelhante ao facebook. Um avanço extraordinário em relação aos sites de dados abertos usados (quando usados) por prefeituras, pelos outros estados e mesmo pelo governo federal e outros poderes. Um passo também na absoluta e necessária inclusão da web como meio de comunicação direta dos governantes com os cidadãos. 

Nestes tempos em que as redes sociais mobilizam multidões que se sentem à margem dos processos decisórios, esse tipo de comunicação facilita, tanto por parte dos governantes quanto da população, o monitoramento das ações e demandas sócio-culturais, seu entendimento e, óbvio, com vontade política, o diálogo para estabelecimento de prioridades. 

Nesse dia o governador comentou sobre as manifestações, nesse momento ainda restritas a algumas cidades. Ele analisa como sinal de que há avanços e democracia e onde os há, há demandas. Ressaltou que onde há diálogo e transparência, o povo na rua não assusta os governantes. Abaixo da foto, post do Marco Weissheimer com entrevista coletiva que Tarso concedeu ontem (18) sobre as manifestações que se intensificaram em todo o país e onde mais uma vez usa o bordão: "precisamos de mais democracia, participação e transparência".
  
Lançamento do aplicativo de Olho nas Obras, do Gabinete Digital Foto: Denise Queiroz

por Marco Weissheimer
no Sul21
O governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro, promoveu uma conversa com jornalistas de vários meios de comunicação de Porto Alegre, na tarde desta terça-feira (18), no Palácio Piratini, sobre os protestos de rua que estão sacudindo diversas cidades do país nos últimos dias. Na abertura do encontro, o chefe do Executivo gaúcho disse que pediu a conversa mais para trocar ideias do que propriamente para fazer uma entrevista. “Eu também gostaria de fazer algumas perguntas para saber o que vocês estão pensando sobre o que está acontecendo”, disse Tarso. E foi o que aconteceu, de fato. Durante aproximadamente 45 minutos, o governador apresentou sua avaliação preliminar sobre os protestos, respondeu perguntas e fez questionamentos aos jornalistas.

Tarso voltou a defender a legitimidade das manifestações e disse que a juventude que está nas ruas está dando uma grande contribuição para o país. Assinalou, por outro lado, que os governos estaduais enfrentam uma conjuntura particularmente difícil neste processo. “Por um lado, não temos mecanismos e instrumentos financeiros para incidir sobre a questão do transporte coletivo nas cidades e tampouco lidamos com as planilhas que definem o preço das passagens. Por outro, temos o dever de manter a ordem pública, uma tarefa que tem duas dimensões: garantir o direito à manifestação e a integridade física dos manifestantes; e proteger a população de excessos cometidos por minorias ou por infiltrados no movimento”. A atuação da Brigada Militar foi um dos principais temas de questionamento por parte dos jornalistas que participaram da conversa. Vários deles, cobraram mais rigor na ação da Brigada, especialmente na defesa do patrimônio.

Conversa com Dilma

O governador relatou que conversou longamente com a presidenta Dilma Rousseff na manhã desta terça. Ela ligou pedindo um relato sobre os acontecimentos no Rio Grande do Sul. “O governo federal ainda está em processo de avaliação sobre o que está acontecendo”, assinalou. “Uma das novidades que estamos presenciando”, disse ainda Tarso, “é que estamos diante de um movimento social atípico, composto em sua maioria por estudantes e profissionais liberais, sem lideranças visíveis e com uma pauta diversificada”. “Precisamos pensar esse fenômeno de maneira global, estabelecendo uma rede de solidariedade entre todos os entes federados”. Ele reconheceu que o transporte coletivo brasileiro é caro e de má qualidade e está submetido a cálculos de tarifa muito opacos, sem transparência. Além disso, acrescentou, a frota não aumentou nos últimos anos, ao contrário do número de usuários.

Tarso admitiu a possibilidade de o Estado contribuir com medidas para a redução do preço da tarifa do transporte coletivo nos municípios. “Podemos reduzir o ICMS do diesel, por exemplo. Isso pode ser negociado. O prefeito Fortunati disse hoje pela manhã que vai me enviar um documento sobre esse tema. Assim que eu receber esse documento vou ligar para ele e marcar uma conversa”.

Atuação da Brigada Militar

A atuação da Brigada Militar nas manifestações de rua foi um dos principais temas da conversa de Tarso com os jornalistas. Vários deles manifestaram preocupação com a destruição de patrimônio e com a possibilidade de uma demasiada tolerância da BM com esse tipo de prática. “A orientação que eu dei está sendo cumprida”, respondeu o governador. “Segundo essa orientação, se houver dúvida que uma intervenção numa determinada situação possa gerar uma repressão indiscriminada entre os manifestantes, a orientação é não intervir. Não vamos proteger uma vitrine se o custo disso for ferir cinco ou seis pessoas. A responsabilidade pela destruição de patrimônios é dos promotores da manifestação”.

Questionado pelo jornalista Tulio Milman, da RBS, sobre a possibilidade dessa orientação deixar prédios e outras instalações sem proteção, Tarso respondeu que a Brigada está, sim, fazendo essa proteção. “A Brigada não deixou ontem que o prédio da RBS fosse atingido, vocês sabem disso. Eram vocês da RBS que seriam atacados, tem alguma dúvida disso? Não vamos deixar que isso ocorra, seja no prédio da RBS, do Correio do Povo ou na sede do PSOL. A orientação que está sendo observada é, fundamentalmente, no sentido de proteger a integridade das pessoas”.

O impacto da Copa

Tarso Genro também falou sobre o tema dos custos da Copa do Mundo de 2014 e seu impacto nos protestos. “A Copa do Mundo se transformou em um grande conglomerado de negócios globais. As pessoas não conseguem mais entrar nos estádios, pois os preços estão se tornando proibitivos. O que está impactando é o custo de novos estádios novos como este construído em Brasília e o deslocamento de populações em virtude de obras da Copa. Pela primeira vez na história do país, há uma insatisfação com o futebol e essa insatisfação tem um núcleo muito claro: estádios muito caros onde a população não pode entrar”.

O governador identificou ainda outros elementos como potenciais catalisadores dos movimentos de protesto: as obras de Belo Monte, a eleição de Marcos Feliciano para a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados. “Há um movimento de inconformidade anti-sistema. A saída para isso é mais democracia, mais participação, mais transparência e mais combate à corrupção. A evolução desse movimento vai depender da resposta que a nossa democracia for capaz de dar a ele. Diante desse quadro, os partidos políticos deveriam ter a dignidade de fazer uma ampla e profunda Reforma Política. Os partidos estão muito envelhecidos, com métodos arcaicos”.

Tarso reconheceu, por outro, uma dificuldade para conversar com os jovens que estão protestando. Se não há lideranças, se não há representantes, com quem conversar e negociar mudanças na situação atual? Antes de se reunir com os jornalistas, Tarso recebeu lideranças de movimentos sociais e sindicatos do Rio Grande do Sul para discutir essa situação. O governador anunciou que, neste momento, todas as autoridades públicas estão em busca de interlocutores junto aos manifestantes para conversar.

“Modelo lulo-desenvolvimentista bateu no teto”

Ainda na avaliação do governador gaúcho, os protestos dos últimos dias estão mostrando que o “modelo lulo-desenvolvimentista” bateu no teto. “Isso está ocorrendo não porque esse modelo fracassou, mas porque ele deu certo. Mas ele chegou ao seu limite e é preciso avançar”.

Tarso também foi questionado sobre o quanto o tema da corrupção estaria influenciando os manifestantes. E respondeu: “A indignação com a corrupção é justa. O problema é a indiferenciação dos políticos e da política. Se você retira a mediação da política, o que resta? O que resta é uma tecnocracia e a depredação”.

Um caldeirão de qualquer coisa

por Denise Queiroz



O que está nas ruas afinal? É a redução das passagens, é um Estado mais presente, dizemos. São os gritos de peraí, elegemos um governo capitaneado pela esquerda e queremos avanços. Não queremos os afifs, os cesar borges, os eliseos padilhas, as katias abreus e os felicianos dando pitacos, nem pagando os garçons na nossa festa. Queremos demarcações, reforma agrária, saúde e muita, muita, muita educação. Queremos o marco regulatório das comunicações, porque assim não dá mais. Avanços, avanços e avanços, pois temos pressa.

Isso sim está nas ruas, o problema é que nem só isso. Estão os vídeos, as páginas da extrema direita, os bolsonaros.

Esse ingrediente mofado que serve para dar consistência a alguma massa, não pode ser desprezado. Assistimos ontem ao vivo do que ele é capaz. Rodrigo Vianna o sentiu na Praça da Sé. É o discurso embutido, trabalhado - e absorvido - há anos pelas novelas, pelos programas policialescos, pelos colunistas das vejas da vida, personificado pelos freqüentadores dos shoppings, dos caríssimos estádios de futebol.

Se há uma periferia onde 20 centavos fazem muitíssima diferença sim na hora do jantar, há outra faceta deste país que entende que o porteiro ter carro e filhos na universidade é uma afronta. Essa gente não quer redução na passagem e está articulando não uma vaia, mas virar de costas (para o gramado e as câmeras da Globo) quando o Hino Nacional for tocado nos estádios, esses caríssimos que só eles podem entrar - e que para serem construídos, aqueles onde 20 centavos fazem diferença, foram ‘exilados’ em periferias onde o somatório do dia pode significar 80 centavos. Os que viram de costas, como sempre fizeram, encontram nos estádios a visibilidade que não conseguem nos shoppings e estão dizendo que este país não os representa. E não haverá tropa de choque para jogar gás nem vinagre, que poderia tirar o mofo dessas idéias.

E a rua é de todos, sempre dissemos isso, pregamos, conclamamos, usamos. Mas não saímos, não fomos, não tomamos um espaço que sempre foi nosso, da esquerda libertária que quer sim que haja desenvolvimento e que o filho - e depois o neto - do porteiro tenha orgulho em dizer que seu pai é porteiro ou faxineiro e que trabalhou duro e valeu a pena porque estamos mudando o país. Mas não tomamos a rua. Nossas bandeiras abandonadas provisoriamente em 2002 nos armários deveriam ter sido arejadas em 2005... Agora criaram mofo e precisaremos muito vinagre para que essa parte do caldo que está no fogo não intoxique as próximas gerações.

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