20 janeiro, 2012

Se ameaçar establishment, internet vai para o buraco

Ministro venezuelano Jesse Chacón




Entrevista com Jesse Chacón
 
Quadro influente na revolução bolivariana encabeçada por Hugo Chávez, o venezuelano Jesse Chacón era o ministro de Telecomunicações do país na época em que a empresa RCTV não teve sua concessão pública renovada, em 2007, causando histeria da mídia corporativa mundo afora. Em entrevista ao Brasil de Fato, Chacón resgata este episódio e debate os avanços e a agenda a cumprir-se no continente para a democratização da comunicação.


Brasil de Fato - Em que se baseou a decisão de vocês no caso RCTV?

Jesse Chacón - Nesse momento venciam três concessões, de 25 anos cada. Em 1998 se aprovou a nova Constituição da Venezuela que estabelecia taxativamente que o Estado deveria criar um canal de serviço público. Como venciam as concessões, era mais importante para o Estado criar este canal do que renovar o canal privado. Além disso, o Estado não é obrigado a renovar, é uma decisão do Estado, que precisa ser fundamentada, mas pela Constituição a renovação não é automática, não sei se aqui é assim.

Pela Constituição não, mas na prática sim, é automática...

Bom... Se o espectro eletromagnético é um recurso limitado, você não pode ter infinitos canais. Se alguém explorou um canal de TV 25 anos, por que não dar a oportunidade a outro se o espectro é um bem de domínio público? Se o espectro é público e limitado tem que haver um sistema que permita que um maior número de elementos da sociedade desfrute desse recurso. Com a Constituição nos dizendo que deveríamos criar um canal de serviço público, que por ser dessa natureza dá maior entrada de atores do que o canal privado, não renovamos o privado.Buscamos a melhor solução técnica para dizer qual não seria renovado. A Televen é um canal UHF, RCTV e Venevisión eram VHF. Em matéria de propagação, o VHF é uma melhor freqüência. Com isso se descartou a Televen. Entre a RCTV, que operava no canal 2, e a Venevisión, no canal 4, optamos pelo canal 2, pois é uma freqüência melhor do que o canal 4. Assim, renovamos a concessão de Venevisión e Televen, não renovamos a RCTV e criamos o canal público. Juridicamente é impecável a decisão. O dono do espectro é a RCTV ou os venezuelanos? Se isso fosse um canal a cabo, eles poderiam seguir explorando, mas se estamos falando do espectro, temos que pensar uma maneira democratizá-lo.

Esse canal público já está no ar?

Sim, se chama TVes [Televisão Venezuelana Social].

Quando se trata da renovação de uma concessão pública, em qualquer setor, o Estado ou a sociedade, em tese, deveriam avaliar o serviço prestado durante o último período de concessão para, então, decidirem sobre a renovação ou não. No caso da RCTV, não houve avaliação deste tipo?

Nesse caso não foi necessário, mas nas próximas concessões a vencer o Estado terá que valorar se durante o tempo desta concessão se cumpriu o uso que de alguma maneira se defi niu para ele. Vão existir pessoas querendo ter sua televisão e dizendo“por que eles que já a exploraram por 25 anos e ganharam milhões seguem com o direito de explorar e eu não?” Há que se saber sob que condições se renova. Em alguns países as leiloam, então ganha quem tem mais poder. A questão é quem dá e quem tira o direito. Quanto tempo tem a Globo coma concessão no Brasil? Não há outra família que pode herdar isso? Se o espectro fosse um bem ilimitado, poderíamos dar a todos, mas como não é, onde está a democracia? A democracia deveria dar liberdade de acesso a todos os grupos. Nós fizemos uma proposta, que está em pronta discussão na Venezuela, de se separar o meio da mensagem. Onde não se entrega o meio a um concessionário específico. Cria-se uma redistribuição e se entrega o espaço em todos os meios, então, alguém ficaria com o canal 2 entre às 14 e 16 horas da tarde, outro entre às 16 e 18 horas, um terceiro entre às 18 e 20 horas. Através de cada um teremos diferentes visões da sociedade e não a visão que tem o dono do canal. Entretanto,a briga não é fácil. Mas, como querer uma sociedade plural se não há pluralidade no que se comunica?

Com a ascensão de governos de esquerda na América Latina a pauta da democratização da comunicação avançou?

A luta pela hegemonia é uma luta permanente. Se a sociedade não se dota de um elemento plural de difusão, quem tem o controle das transmissões de valores e símbolos impõe o modelo cultural dessa sociedade. Eu acho que a sociedade latino-americana está passando por um reencontro com o público, em matéria de comunicação. A Europa nasceu com um conceito público dos meios de comunicação, a América do Norte nasce com um conceito privado, que depois foi imposto à América Latina e nos causou muitos danos. Acho que temos que redefinir isto. Toda sociedade se constrói com um mecanismo onde você tem um contrato social, uma Constituição, e cidadãos que compartilham desse contrato. Para que eles compartilhem tem que ter um esquema de valores e um esquema de desejabilidade dentro dos marcos dessa Constituição. O único elemento que pode difundir esses valores assim definidos, porque o elege o povo e o tira o povo, é o público. Se faz necessário uma discussão entre o que significa um meio público realmente, no sentido de que é aberto a todos e é transparente em termos de gestão pública. Em segundo lugar, já nessa entrada do século 21, a sociedade se dotou de uma capacidade para divulgação muito maior. É preciso analisar a necessidade de facilitar o surgimento da comunidade como elemento gerador de mensagens, não como consumidor. Isso nos levaria a um novo esquema comunicacional onde deveriam conviver público, privado e a comunidade organizada. Na Venezuela avançamos nesse caminho, temos essa estrutura, com seus erros e acertos. Temos uma figura de rádio e televisão que se chama comunitária, que é distinta do alternativo. Alternativo nós entendemos como o jornal de vocês, porque é um grupo de pessoas que estão interessados no tema comunicacional, sem fins lucrativos. O comunitário é o veículo da comunidade. Na Venezuela um distrito pode se organizar e solicitar sua própria rádio ou televisão, criar sua fundação e a cada dois anos, em assembleia, reelegem quem vai ser o responsável. Esse modelo teve muita entrada. Em alguns lados teve um êxito gigantesco, em outros não, porque todo processo de socialização depende muito da maturidade da comunidade para entender que ela é a dona, não os que montaram o veículo.

Qual seria a agenda da democratização da comunicação por cumprir na América Latina?

Necessitamos fazer uma análise sobre como se constituem as comunicações aqui e se esse é o sistema que necessitamos. Um sistema que não permita a apropriação da comunidade da comunicação não vai facilitar o crescimento de uma sociedade plural. Em primeiro lugar, deve haver a possibilidade de que o privado, o público e o comunitário dividam esse espaço. Segundo: tem que haver um sistema que faça com que as mensagens sejam plurais, por isso temos que fracionar.

E a universalização da internet?

É muito importante. Agora, precisamos ter infraestrutura. Hoje, toda a rede de telecomunicações está globalizada e foi privatizada. O que se crê descentralizado é, na verdade, muito centralizado. E sobre isso se foram criando redes sociais. Creio que temos que voltar ao conceito de Estado-nação. Por exemplo, a Venezuela maneja sua própria rede de telecomunicações, seu satélite e agora está construindo o seu NAP [Node Access Point], o ponto onde se produz o intercâmbio de tráfego de todos os operadores de internet. Hoje, todos eles estão em Miami e tudo que surgiu na rede está aí porque o poder que centraliza isso ainda não se sente ameaçado. Mas, já começaram os problemas. Na Inglaterra, todo o movimento que se agrupou contra a privatização da educação foi retirado do Facebook quando viram que estavam se aglutinando. No Egito, quando começaram as manifestações, apagaram a rede completa à toda sociedade. Então, a pergunta é: é real este crescimento das redes sociais na internet, a ponto dela ser um espaço de disputa do poder? Ou é uma ilusão que terminará no momento em que o poder sinta que a rede atenta contra ele? Há pouco tempo, a secretária de Estado dos EUA, Hillary Clinton, disse que internet é um desafio para seu país e que deve haver um equilíbrio entre segurança e liberdade. Palavras mais, palavras menos, o que ela disse é que na internet, no contexto das redes sociais, existem dois tipos de pessoas: aqueles que a usam em benefício da sociedade e os “terroristas” que a utilizam contra a paz. E todos aqueles que ela determine como terroristas vão para o buraco. Isso signifi ca que a internet vai para o buraco quando for um perigo para o establishment. Esse é um dos grandes desafios da sociedade no século 21.

Isso desmonta a tese dos que acham que as redes sociais fazem revoluções.

De fato, elas tem potencial, funcionou nos países árabes. A pergunta é o que vai acontecer quando isso aconteça na Inglaterra, EUA, França. Quem tem a “tomada” na mão vai plugá-la ou desconectá-la? Aí está o desafio. A internet segue sendo um espaço interessante, o que não podemos é ser inocentes em pensar que ela por si só vai permitir todo o surgimento de um movimento antissistema gigantesco. Hoje ela se desenvolveu porque há sistema, ainda não lhe significa um risco.

A América Latina tem as possibilidades econômicas para ter o poder da“tomada”?

O mais difícil é a parte física, que já está enterrada aqui. O grande problema é que os processos de privatização levaram para as mãos das transnacionais grande parte destas redes. Seria interessante, por exemplo, que o tráfego de informações que vai da Venezuela ao Brasil, ao invés de subir ao NAP de Miami, ficasse entre os nossos NAPs. Sairia para o norte somente o tráfego de informações com o norte. Isso é muito simples de fazer, aqui já se fez coisas muito maiores.

Por que não se faz?

Mais por vontade política do qualquer outra coisa. O problema é que as telecomunicações não estão em mãos de empresas públicas ou privadas que sejam dos países e que tenham a visão dos países, mas são grandes transnacionais. O interesse deles é global, não é um negócio daqui. Aí passaríamos pelo tema do quão importante é termos essa estrutura hoje, de forma que se nos desligam lá em cima, seguimos conectados aqui embaixo. Do ponto de vista técnico, isso não é nada complexo. Do ponto de vista de custo, pode-se manter também.


Quem é

Jesse Chacón, 46, graduado em Engenharia de Sistemas pelo Instituto Politécnico da Força Armada Nacional da Venezuela e pós-graduado em Telemática na França. Atualmente é diretor da fundação Grupo de Investigação Social Século XXI (GISXXI). Muito influente no governo Hugo Chávez, dirigiu os ministérios do Interior, de Comunicação e Informação, de Telecomunicações, de Ciência, Tecnologia e Indústrias Intermediárias. Também esteve à frente do despacho da Presidência da República e da Comissão Nacional de Telecomunicações (Conatel).
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