13 novembro, 2011

Nós, os mentirosos

Dica da @Maria_Fro
___________________

Há um traço de nossa conduta que tentamos ocultar a todo custo, ainda que nem sempre consigamos. Algo em nós fala mais alto, e mentimos. Uma inexplicável compulsão nos impele a omitir a verdade, a enganar, trapacear, contar uma lorota, mudar a versão dos fatos, passar adiante um boato. Ou simplesmente mentir com a cara mais deslavada para levar alguma vantagem ou se livrar de uma encrenca. Todos nós mentimos e, acredite, isso não é uma mentira.


O filólogo e filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900) entendia a mentira como uma necessidade para podermos viver e superar a aspereza da realidade. Georg Simmel (1858-1918), sociólogo conterrâneo de Nietzsche, considera a mentira parte estrutural de todo e qualquer processo comunicativo, dado que os interlocutores nunca saberão exatamente o que se passa na cabeça uns dos outros. Assim, mentir é inerente à comunicação. Daí, conclui-se que a mentira como aspecto cotidiano da conduta humana tornou-se um fenômeno social bem aceito.

Não falta quem dê à mentira ares de patologia, associando-a à doença, e, assim sendo, aquele que mente tem problemas psicológicos e precisa de tratamento. A verdade é que a mentira nos seduz desde cedo. Na infância, a psicologia a vê como um recurso para alcançar um desejo ou satisfazer uma necessidade. A criança mente para se proteger de uma punição, para extravasar a agressividade ou vingar-se de alguém, como quando acusa o irmão de uma falta imaginária para vê-lo castigado e assim aplacar o próprio ciúme. 
    
                          
Quando adultos, as mentiras são mais refinadas.Quem garante que dela pode prescindir? Quando se trata da mentira, as sociedades têm uma percepção e um nível de tolerância diferentes umas das outras. Dependendo do grupo, da relação, do sistema de poder, mentir pode ser objeto de orgulho ou de vergonha, de elogio ou de recriminação. Em 1883, o italiano Carlo Collodi apresentou Pinóquio ao mundo e, por meio dele, deu-nos a entender como a mentira pode prejudicar a nós e as pessoas que amamos. Não foi com esses ensinamentos, porém, que homens e crianças deixaram de mentir.


Immanuel Kant (1724-1804) não admite a mentira sob qualquer hipótese, pois, para ele, nossos deveres incondicionados excluem o direito de blefar, prevalecendo a verdade mesmo sob as piores consequências. Sua rígida ética deontológica não autoriza a mentir nem para salvar a mãe, ou a si mesmo. Em oposição, o franco-suíço Benjamin Constant (1767-1830) não reconhece esses deveres éticos ou jurídicos incondicionados e, assim, não admite a mentira mais por uma questão de honra. Exceção para casos em que a verdade ameaça um valor maior do que a honra: a vida – própria ou de outra pessoa.

No século 16, Galileu Galilei (1564-1642) usou desse subterfúgio para escapar da morte. Perseguido e condenado por anunciar que a Terra gira em torno do Sol, e não o contrário, ele acabou concordando com a teoria geocentrista da Igreja para salvar a própria vida. No Brasil, em 2008, ainda ministra da Casa Civil, a presidente Dilma Roussef admitiu ter mentido sob tortura durante o regime militar para salvar companheiros e a ela própria da morte. Dilma esteve presa por três anos em Porto Alegre (ver nota de rodapé nesta postagem) por causa do ativismo político contra os militares.


Na hierarquia ética e jurídica, a vida vale mais do que a honra. Por analogia, poder-se-ia dizer que, levada ao extremo, a filosofia kantiana desconsidera a legítima defesa, uma vez que o dever incondicionado por ele defendido não nos autoriza a matar sob qualquer pretexto. Kant parece ter ficado isolado nesse seu postulado. A matriz jurídica de nações democráticas, Brasil inclusive, confere ao réu o direito constitucional da ampla defesa, no qual se imiscui o direito de ficar em silêncio e até de mentir. Tudo para não produzir prova contra si.

Mesmo discutível sob o ponto de vista ético e jurídico, a mentira é válida nos tribunais quando dita pelo réu em benefício próprio. A inverdade como álibi nada mais é do que o exercício do legítimo direito de ampla defesa. Cabe à acusação provar a fraude. Não se está propondo a apologia à mentira, mas, convenhamos, ela é tão atual como sempre foi. O enredo de trapaças esteve tão presente desde o início da Humanidade que mereceu destaque entre os 10 mandamentos. “Não levantarás falso testemunho”, diz o oitavo deles. Tornou-se letra vazia, ainda que letra de Deus.

Tempos bíblicos


A mentira é como um patrimônio da humanidade. A filosofia a trata pelo aspecto moral religioso, a psicologia a toma como parte do comportamento humano. “A mentira é uma expressão que tem um significado falso, pronunciada com a intenção de enganar”, sentencia Santo Agostinho (354-430). A Bíblia traz dezenas de alertas sobre o quanto ela é danosa em nossa relação com o divino, desde que Adão e Eva tentaram a primeira dissimulação. Depois deles, inúmeros casos mostrariam que falsear para salvar a própria pele não é fraqueza só da patuleia do rés do chão.




Alguns dos mais eméritos eleitos de Deus também foram pegos na mentira. Abraão, o pai das três religiões monoteístas (Judaísmo, Cristianismo e Islamismo), por duas vezes pediu a Sara que omitisse ser sua esposa, passando-se por irmã. Diante da grande beleza da mulher, temia que o faraó do Egito o matasse para ficar com ela. Repetiu a farsa em Gerar, frente ao rei Abimeleque. Outros homens de Deus, como Isaque, Jacó e Davi, também forjaram uma verdade provisória para atender a seus interesses.

No campo dos homens comuns, há os que deixam suas farsas documentadas, crentes de que jamais serão descobertos. O jornalismo está coalhado deles. Nem todos deixam rastros, mas alguns não fazem a coisa direito. Ninguém questiona a credibilidade do New York Times, um templo sagrado do jornalismo. Porém, vez ou outra, uma “nota do editor” pede desculpas ao leitor pelo mau comportamento de algum repórter. Em 2002, o jornalista Michael Finkel foi pego mentindo numa reportagem do NYT. No ano seguinte, o mesmo se deu com Jayson Blair.

Finkel e Blair demonstraram talento com a escrita, habilidade de seduzir com a palavra. Por que, então, preferiram a ficção travestida de verdade quando, em geral, a realidade é mais interessante do que a ficção? Finkel explica os porquês e tenta se redimir do erro no livro A História Verdadeira (Editora Planeta do Brasil). Em síntese, eles usaram de má-fé para encurtar caminho à notoriedade. Fizeram o que todos fazem, ainda que em menor proporção: mentir para parecer melhor do que realmente é. Afinal, somos todos atores num grande teatro de dissimulações.

Para o filósofo contemporâneo André Comte-Sponville, sendo a boa-fé uma virtude, a mentira, em contraposição, não poderia ser. Mas, ressalva o pensador francês, isso não quer dizer que toda mentira seja condenável e nem que, por causa de uma razão mais forte, devamos sempre nos proibir de mentir. Se a mentira nunca é uma virtude, a tolice e o suicídio também não o são. “Simplesmente, às vezes é preciso se contentar com o mal menor.”

Os álibis dos políticos

Que melhor lugar do que a política para o homem exercer sua vocação para mentiroso? Faça-se, porém, um aparte para conceder o benefício da dúvida ao tomar como verdade que nem todos do ramo lançam mão desse recurso. O político tem no que justificar suas dissimulações, e o abono não vem de um qualquer. Platão (428-348 a.C.) chegou a cogitar a mentira como virtude. Em A República, o filósofo grego diz que ela pode ser útil quando, por exemplo, empregada pelos governantes para o bem do povo. Eis um álibi.




Nicolau Maquiavel (1469-1527) confere à mentira política uma função de Estado, ao dar-lhe um estatuto especial na medida em que julga o príncipe (governante) no direito de usar qualquer meio para alcançar seus fins. Eis outro álibi. Há “príncipes” que levam esse postulado muito a sério. George W. Bush e Tony Blair falsearam relatórios sobre armas químicas para justificar a invasão do Iraque, em 2003. Diziam ser para o bem de todos e deu no que deu. As armas químicas nunca apareceram.

A mentira política independe de nacionalidade ou ideologia. É tão atemporal quanto universal. “A mentira política se instalou em nossos povos quase constitucionalmente e o dano moral tem sido incalculável, alcançando zonas muito profundas do nosso ser. Movemo-nos na mentira com naturalidade”, conclui o poeta, ensaísta e diplomata mexicano Octávio Paz Lozano (1914-1998), ganhador do Nobel de Literatura de 1990. Ou seja, político é igual em qualquer lugar.

O hábito da mentira é comum entre os políticos, cuja maior qualidade notadamente é a de reconhecer que sua classe não é das mais confiáveis. Um hábito decorrente da condição de devedores que são pela confiança neles depositada e da opinião que deles se faz: um foge da prestação de contas dos seus atos, o outro foge das implicações judiciais; este quer ocultar um erro, aquele quer convencer a todos que é vítima de embuste. Com eles, nenhum fato se dá ao acaso, nenhuma ação é gratuita.

Como acreditar em alguém que passa o mandato inteiro tentando explicar porque não poderá cumprir o que prometeu com tanta convicção na campanha? A todo momento estão tentando convencer-nos de que estão limpos, são honestos, benfazejos e que falam realmente em nome do povo. Não seria suspeito aquele que a todo segundo se afirma honesto?

Ninguém mais parece ter ilusão sobre o desvio de conduta como propedêutica para uma política de melhoramentos próprios. E sempre há um meio de dar a essas tramoias uma aparência de veracidade. Não à toa, a desconfiança e o desapreço pelo sistema político se estendem de forma generalizada a todos seus atores diretos, alimentando sentimentos hostis em relação àqueles que se dedicam à vida pública. Ainda que nem todos sejam da mesma estirpe.

_________________
(***) Nota Tecedora: Dilma cumpriu prisão em São Paulo e só depois é que foi para Porto Alegre. 

Um comentário:

  1. Interessante texto. Algumas notas para complementar e não contestar.A moral de Kant deve ser pensada como uma avaliação de uma ação que necessariamente deve se universalizar. Assim, por exemplo, explorar seres humanos é imoral porque não pode ser universalizado, ou seja, todos não podem explorar, já que para tanto, sempre deverá existir os explorados. Roubar também é uma ação que não pode se universalizar. Se todos fossem ladrões quem seriam as vítimas? Vale o mesmo para o caso da mentira. Se todos mentissem, enganassem, quem seria o enganado?
    Contraposta a ética do dever kantiana, também existe a ética conseqüencialista, a qual avalia uma ação pelas conseqüências de seus efeitos para a maioria. Assim, mentir pode ser até uma ação ética, desde que seus efeitos sejam benéficos para a maioria das pessoas envolvidas. Por exemplo se alguém vivesse na Alemanha nazista e escondesse uma família judia em seu porão e a SS batesse na porte e perguntasse se havia alia judeus, a mentira é ação ética correta. Resta uma discussão contemporânea sobre o benefício da maioria, ou princípio da maximização da felicidade. Deveria se incluir todas as formas de vida, ou apenas os humanos? Peter Singer é o grande filósofo contemporâneo que defende a inclusão de todas as formas de vida no cálculo dos efeitos de uma ação ou conseqüência ética de uma ação (ecologia radical - biocentrismo). #ToComEle.

    ResponderExcluir

Web Analytics