14 fevereiro, 2012

Cadeia para os assassinos (por Mauro Santayana)

Goya


por Mauro Santayana


Algumas religiões santificam a mendicância, como o ato mais expressivo da humildade. Pedir aos outros o pão, em lugar de o obter mediante o trabalho, é visto, assim, como o contraponto à vaidade e à arrogância. As sociedades, sendo profanas, não vêem com os mesmos olhos o ato de pedir. Os costumes, diferentes das razões éticas, sobretudo os construídos pela consciência burguesa, condenam a mendicância, ainda que admitam, com certo cinismo, a caridade. É interessante registrar que Sartre, senhor de grande lucidez e, em algum tempo, militante revolucionário, andava com moedas nos bolsos, que distribuía aos mendigos do Quartier Latin. Talvez se sentisse, com isso, menos culpado dos desajustes do mundo.

Matar mendigos não é um esporte novo. A civilização cristã oscila entre o exercício da caridade (que, em alguns casos, costuma ser negócio lucrativo) e da repressão. Entre a piedade e a forca, conforme o ensaio do historiador Bronislaw Geremek sobre os miseráveis e pequenos bandidos da Idade Média. No Brasil, a agressão e o assassinato dos diferentes estão assumindo dimensões insuportáveis. Numerosos moradores de rua em Salvador foram trucidados durante a greve dos policiais militares. Há suspeitas de que foram policiais, eles mesmos, os matadores. Coincidindo com os fatos da Bahia, um jovem universitário tentou intervir, ao assistir à agressão de um morador de rua na Ilha do Governador, no Rio, por cinco jovens. Foi quase linchado, teve seu rosto arrebentado pelas patadas, só reconstituído mediante o emprego de 63 pinos de platina.

Não é um fato isolado. Ao ser confundido como mendigo, conforme confessaram os matadores, um índio pataxó foi queimado por jovens bem situados de Brasília. No Rio de Janeiro, há décadas, os adversários de um governador da Guanabara o acusaram de mandar matar mendigos e atira-los junto à foz do Rio da Guarda. E houve quem sugerisse o incêndio, como uma forma de resolver o problema das favelas no Rio de Janeiro. Mais cínicas, autoridades de São Paulo decidiram criar obstáculos sob as marquises e os viadutos, a fim de impedir que ali os miseráveis pudessem repousar. No Rio, outras autoridades dividiram os bancos dos jardins, para que, sobre eles, os mendigos não pudessem deitar.

Esses caçadores de mendigos naturalmente são conduzidos pelo senso estético da ordem do capitalismo totalitário. Uma cidade sem pedintes é muito mais bela. Mas é também muito mais bela, se nela não houver pessoas feias ou enfermas. Assim pensavam os nazistas, em sua cruzada de eugenia – embora não fossem belos nem fisicamente saudáveis homens como Himmler e Goebbels, entre outros. Da mesma forma que pretendiam a eliminação completa dos judeus, incomodava-os, pelo menos no discurso, a existência de homossexuais. Depois se soube que muitos deles eram homossexuais, mais dissimulados uns, menos dissimulados outros, como Ernst Röhm. Joachim Fest, o grande biógrafo de Hitler, chegou a suspeitar que houvesse uma ligação homossexual entre o líder nazista e seu arquiteto predileto e possível sucessor, Albert Speer.

E como o caminho da perfeição, de acordo com essa insanidade, é sem fim, quiseram eliminar, alem dos judeus, outros perturbadores de sua ordem estética e “moral”, como os ciganos, os negros, os mestiços, os eslavos – e os comunistas.

O racismo e a insânia dos nazistas não desculpam – e, sim, agravam – os atos estúpidos contra os miseráveis brasileiros que, sem teto, sem famílias, sem amigos, sem destinos, são nômades nas ruas, onde alguns nascem, e muitos quase sempre morrem. Mas, dessa visão curta de humanismo, padecem pessoas instruídas e aparentemente responsáveis, como a ministra francesa, que aconselhou os sem teto de seu país a não sair de casa, por causa do frio europeu que vem matando os desabrigados às centenas, e a juíza brasileira, que decretou a prisão domiciliar de um morador de rua.

A polícia tem o dever de identificar os matadores de mendigos e de levá-los à Justiça. E os juízes não podem se deixar engambelar pelos advogados dos assassinos. Em uma sociedade já tão injusta com os pobres, cabe ao Ministério Público e à Justiça socorrer os que, desprovidos de tudo, só têm a lei como consolo e esperança.

A sociedade se emociona com a coragem solidária do jovem Vitor. O Estado deve a ele uma manifestação oficial de reconhecimento. Seria louvável se a Assembléia Legislativa lhe concedesse a Medalha Tiradentes, a mais alta condecoração do Estado.


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