30 julho, 2013

A construção de uma nação de telespectadores


imagem revista Trip

do Le Monde Diplomatique 
por Lamia Oualalou* 

Promovidas sob a ditadura para conectar o país, as novelas brasileiras evoluíram. Acompanhadas pelo conjunto da população, elas representam um espelho para uma sociedade em efervescência. A transformação do gigante não pode ser resumida pela divisa “ordem e progresso”, como mostram as recentes manifestações de rua.
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"Não vai ter ninguém!” A equipe da campanha de Fernando Haddad, à época na corrida pela prefeitura de São Paulo, foi clara: a presidente Dilma Rousseff não poderia pensar seriamente em organizar um comício para apoiar o candidato do Partido dos Trabalhadores (PT) naquela sexta, 19 de outubro, exatamente na hora em que seria transmitido o último episódio de Avenida Brasil, a telenovela sensação da Rede Globo. Naquela noite, dezenas de milhões de brasileiros assistiriam ao confronto final entre as duas heroínas, Nina e Carminha, a fim de finalmente saber quem matara Max. Convencida, a presidente adiou o evento para o dia seguinte.

Avenida Brasil parece ter voltado a atingir as massas, marcando o retorno da reunião da maioria das famílias diante da telinha. Um desafio quando se lembra de que a telenovela brasileira, ou simplesmente novela, como preferem chamá-la por aqui, celebrou seu sexagésimo aniversário em 2012.

Quando a televisão surgiu no Brasil, as soap operas norte-americanas já tinham conquistado Cuba via Miami. E foi naturalmente para os autores da ilha, amedrontados pela revolução, que se voltaram as redes de TV, a começar pela pioneira, a TV Tupi. Dessa forma, O direito de nascer, lançada em 1964, foi uma adaptação do folhetim radiofônico homônimo que inundara as ondas da ilha caribenha em 1946. Como em Cuba, o folhetim teve um fim, enquanto nos Estados Unidos se prolongou por décadas. Pela primeira vez, a vida parava em São Paulo e no Rio de Janeiro por meia hora, várias vezes por semana... mas não ao mesmo tempo. A novela ainda não era diária e a transmissão em rede não existia: tão logo o episódio ia ao ar em São Paulo, a gravação era encaminhada por avião ou carro para o Rio de Janeiro, então a capital do país.

Na época, as tramas eram propositadamente exóticas, como evidenciado por títulos comoO rei dos ciganos, O sheik de Agadirou A Ponte dos Suspiros. Em 1968, Beto Rockfellermarcou uma ruptura. Pela primeira vez, o herói vivia em São Paulo. Ele trabalhava em uma loja de calçados em uma rua popular da metrópole, mas fingia ser um milionário que morava em outro endereço. Com um vocabulário do dia a dia, referências às coisas boas e aos desafios do Brasil urbano, ainda mais visíveis pelo fato de algumas cenas serem filmadas ao ar livre, a novela mudou de cara. “A partir daí, ela passou a incorporar as questões sociais e políticas do Brasil, enquanto no México ou na Argentina o tema continuava sendo os dramas familiares”, diz Maria Immaculata Vassallo de Lopes, que coordena o Centro de Estudos de Telenovela da Universidade de São Paulo (USP).

Em seguida, surgiu a TV Globo, que se apoderou do formato. Tanto assim que, de acordo com Bosco Brasil, um ex-autor da rede, “quando se fala em ‘novela brasileira’, se pensa em ‘novela da Globo’”. Nascida em 1965, um ano após o golpe militar, a rede é principalmente o resultado do gênio político de Roberto Marinho, herdeiro de um grande jornal, O Globo, mas sem influência nacional. Ele entendeu como era estratégico para a junta militar alcançar a integração do território. Enquanto para Juscelino Kubitschek (1956-1961) esta passava pela construção de uma rede de estradas, os militares, no poder de 1964 a 1985, iriam apostar na mídia. E, nessa área, a Globo seria uma peça central: “Do ponto de vista econômico, ela desempenhou um papel essencial na integração de um país de dimensões continentais, por meio da formação de um mercado consumidor. Do ponto de vista político, sua programação levou uma mensagem nacional de otimismo ligado ao desenvolvimento, crucial para apoiar e legitimar a hegemonia do regime autoritário”,1analisa Venício de Lima, pesquisador de comunicação da Universidade de Brasília.

Muitos outros vindos do teatro

Com o tempo, a rede criou “um repertório comum, uma comunidade nacional imaginária”, explica Maria Immaculata. Em 2011, 59,4 milhões de famílias, ou seja, 96,9% do total, tinham um televisor, e cada brasileiro consumia em média 700 horas de programas da Globo a cada ano. Embora um gaúcho, mais próximo dos argentinos em seu estilo de vida, não tenha muito a ver com um pescador da Amazônia ou um agricultor do Nordeste, todos compartilham hoje o sonho de conhecer o Rio de Janeiro, principal cenário dos folhetins globais, ou de vestir a camisa branca e o cinto dourado de Carminha. A identificação é mais fácil quanto menos nítida é a fronteira entre ficção e realidade. Quando os brasileiros comemoram o Natal, seus heróis na telinha fazem o mesmo. O desmoronamento, real, em janeiro de 2012 de um prédio no Rio de Janeiro foi comentada pelos personagens da novela Fina estampa nos dias seguintes. E quando, durante um episódio, um eleito fictício é enterrado, políticos reais concordam em se deixar filmar ao redor do caixão.

Jovens e velhos, ricos e pobres, analfabetos e intelectuais: todos devem poder se contemplar no espelho. De acordo com a psicanalista Maria Rita Kehl, “essas imagens únicas que percorrem simultaneamente um país tão dividido como o Brasil contribuem para transformá-lo em um arremedo de nação, cuja população, unificada não enquanto ‘povo’, mas enquanto público, articula uma linguagem segundo uma mesma sintaxe”.2

A inegável benevolência dos militares não explica por si só como a Globo conseguiu impor essa sintaxe. Nas horas de maior audiência, a rede alcança a proeza de transmitir produções próprias: na França, nessas faixas de horário, com frequência são as séries norte-americanas que triunfam. “Tudo isso é baseado em um verdadeiro talento artístico e técnico, que se concentrou na novela”, diz Mauro Alencar, professor de Teledramaturgia Brasileira e Latino-Americana da USP. Ao decidir fazer da novela o cerne de sua rede, Roberto Marinho abraçou um desafio. Ironicamente, a ditadura lhe facilitou a tarefa, posto que a censura proibia bons dramaturgos, muitos deles de esquerda, de montar suas peças. Assim, autores como Dias Gomes, Bráulio Pedroso e Jorge Andrade se viram trabalhando para o “doutor” Marinho e para a televisão, que antes desprezavam.

Contra todas as probabilidades, esses grandes nomes descobriram que uma liberdade verdadeira lhes era oferecida pelos dirigentes da rede, que concordavam em enfrentar os censores. A Globo já tinha rodado 36 capítulos de Roque Santeiro, de Dias Gomes, quando a novela foi proibida. Ela conheceria um sucesso retumbante ao ser refilmada, dez anos depois, em 1985, após o advento da democracia. Em 1996, O rei do gado, de Benedito Ruy Barbosa, foi uma elegia à reforma agrária que deu visibilidade sem precedentes ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

“Já faz 35 anos que trabalho para a Globo, sou autor de dezessete novelas e nunca ninguém me disse o que eu deveria fazer. Sempre fui totalmente livre “, testemunha Silvio de Abreu, um dos principais autores da rede. Para Maria Carmem Jacob de Souza Romano, professora de Comunicação da Universidade Federal da Bahia, “os grandes autores têm um poder de barganha, é claro. Eles dão mostras de bom senso e não podem transformar a novela em discurso social, mas podem abordar temas que lhes são caros, se o sucesso vai ao encontro disso”.

A partir do centro do Rio, é preciso viajar uma boa hora de carro, com trânsito bom, para chegar ao Projac, a fábrica de sonhos montada pela Globo em Jacarepaguá, na zona oeste da cidade. Mais de 1,65 milhão de metros quadrados, dos quais 70% de floresta, permitem à rede concentrar, desde 1995, todas as etapas da produção de uma novela. “Antes, as filmagens eram divididas em vários estúdios por toda a cidade. Concentrar tudo permite uma enorme economia de tempo e de dinheiro”, explica Iracema Paternostro, gerente de relações públicas, mostrando uma maquete das instalações.

É preciso um carro para fazer o tour. Ali, um edifício agrupa as equipes de pesquisa encarregadas de compilar os arquivos e os estudos de mercado. Um pouco mais adiante, os figurinos são desenhados, costurados e cuidadosamente conservados para serem utilizados no futuro. Em seguida, entra-se em uma gigantesca oficina de carpintaria, na qual são elaborados os móveis e os cenários imaginados a alguns metros dali: um salão do século XIX, um trem do metrô – tudo em partes, para que se possa montá-los em algumas horas, em um dos quatro estúdios de mil metros quadrados, onde as novelas são gravadas todos os dias do ano. As peças serão, então, desmontadas e guardadas para filmagens futuras ou destruídas para serem recicladas.

A leste do território se encontra a cidade cinematográfica, com alguns equipamentos permanentes, como uma curiosa igreja que dispõe de uma fachada tríplice: uma barroca, outra italiana, outra portuguesa. “Sempre precisamos de uma igreja”, brinca Iracema, referindo-se ao casamento inevitável do episódio final. Atrás, há pedaços de cidade que são erguidos por nove meses, a duração média de uma novela. Como a metade da ação de Salve Jorge, veiculada no início de 2013, se passava na Turquia, a direção de arte reconstituiu uma pequena Istambul, observando os menores detalhes: um cartaz rasgado, um livro caído de uma biblioteca, uma chaleira tradicional. Para instalar esse cenário, milhares de fotos foram tiradas no local e uma batelada de objetos típicos foi levada para o Rio de Janeiro. As equipes também filmaram horas do cotidiano do lugar, os vendedores de rua, o fluxo dos carros. Durante a montagem, as imagens, sempre panorâmicas, eram encaixadas nas cenas filmadas na cidade cinematográfica. A ilusão funciona perfeitamente. E o processo não é usado apenas para destinos distantes: ao lado da pequena Istambul, há um labirinto de ruas recriado em 1.800 metros quadrados do Complexo do Alemão, uma das maiores favelas do Rio de Janeiro. Também nesse caso acreditamos estar no lugar real. A Globo chegou a contratar Adriana Souza, uma vendedora de empadas, para vender seus produtos no cenário de papelão, como faz na favela.

Tocar todas as classes sociais

O segredo do sucesso da Globo é sua capacidade de industrializar todas as fases da criação, para conseguir transmitir todos os dias pelo menos três novelas, cada uma com algo entre 140 e 180 episódios de quarenta minutos, durante seis a nove meses. Para cada horário, sua atmosfera, segundo um modelo não modificado desde 1968: a novela das 18 horas aborda um tema leve; a das 19 horas é com frequência cômica; as questões sociais e os dramas ficam reservados para a das 21 horas, o horário nobre. Quanto à história, ela muitas vezes retoma as receitas típicas do melodrama, girando em torno da questão da família, da identidade – ignorada ou usurpada, levando à procura do pai ou da mãe – e da vingança.

Produzir uma novela custa caro: cerca de US$ 200 mil por episódio, de acordo com estimativas de Maria Immaculata. “Uma forte tendência nos últimos anos é o remakedos grandes sucessos do passado”, explica Nilson Xavier, autor do Almanaque da telenovela brasileira (Panda Books, 2007). “Uma escolha idiota” aos olhos de Gilberto Braga, um dos mais cortejados autores da Globo. Para ele, “não há uma receita que funcione todas as vezes”.

Quando sua proposta é aprovada, o autor envolve um punhado de auxiliares que escrevem uma parte dos diálogos e das cenas num ritmo frenético. Cerca de trinta episódios são gravados antes do lançamento. Desde os primeiros dias de exibição, a reação do público é cuidadosamente auscultada, seja por meio de pesquisas, seja em redes sociais. “A novela é uma obra aberta”, explica Flavio Rocha, um dos diretores da Globo. “Um casal pode parecer pouco convincente aos olhos do público e, eventualmente, desaparecer, enquanto um personagem secundário pode tornar-se central, se alcançar mais sucesso. O autor se adapta.”

O discurso sobre a “obra aberta” é um mito cultivado pela Globo. Porque, antes de deixar sua imaginação divagar, os autores são convidados a pensar nos custos de produção: idealmente, as cenas que vão acontecer em uma sala devem ser escritas com antecedência, para serem filmadas em sequência, antes da destruição do cenário e de sua substituição por outro no estúdio. Os atores encadeiam assim durante uma mesma tarde a gravação de cenas dos episódios 8, 22, 24 e 42. Somente aqueles que estão acostumados a esse tipo de filmagem conseguem se encontrar na trama.

Trabalhar com uma estrela é um quebra-cabeça para o autor: alguns atores fazem constar no contrato que só irão ao Projac às terças e quintas ou exigem uma fortuna para reformular sua programação. Eles também querem concentrar suas cenas em um mesmo dia. “É por essa razão, por exemplo, que os principais personagens nunca se divorciam: isso poderia forçá-los a deixar sua casa, que constitui o cenário principal, e a gravar em uma infinidade de outros”, diverte-se um autor sob o manto do anonimato. O texto deve ser simples e bastante repetitivo para que o espectador possa se reconectar com a história depois de perder alguns episódios. Mas os personagens não são menos complexos, e a narrativa – que muitas vezes remete a um rico patrimônio literário – é suficientemente sofisticada para assombrar a sociedade por anos após sua transmissão.

Também é necessário atingir todas as classes sociais: “É o imperativo da novela, como também o do jornal televisivo da Globo. E, no entanto, escrever para todos é aparentemente um contrassenso. Raros são os que conseguem isso”, ressalta Bosco Brasil. Ser autor de novela não é para qualquer um: “Entre 1989 e 2004, 25 novelas foram veiculadas no horário nobre, e elas foram assinadas por apenas seis autores, alternadamente”, confirma Maria Carmem. O salário dos membros desse clubinho ultrapassa muitas vezes os R$ 250 mil por mês.

Uma fortuna para alguns, mas uma soma insignificante diante do que se ganha com esse produto artístico e comercial. Estima-se que uma publicidade de trinta segundos durante a novela no horário nobre custe em torno de R$ 350 mil. Mas, para o último capítulo deAvenida Brasil, o preço dobrou. Naquela noite, o episódio durou setenta minutos, quase duas horas, levando em conta os comerciais. Entre os anunciantes nacionais e regionais, quinhentos espaços foram vendidos.

O espelho da modernidade funciona ainda melhor quando incorpora um discurso pedagógico sobre as principais causas apoiadas pela rede e por seus autores. Estudos do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID)3 estimam que as novelas desempenharam um papel importante na redução significativa do número de nascimentos – a taxa de fertilidade caiu 60% desde os anos 1970 – e na quintuplicação dos divórcios.4 A leucemia de Camila, personagem de Laços de família, exibida em 2000, causou uma explosão de doação de órgãos. “Algumas novelas também têm contribuído grandemente para a aceitação da homossexualidade”, acrescenta Silvio de Abreu, lembrando que a Globo dispõe de um departamento encarregado de sugerir temas de sociedade.

Muitas vezes politicamente correto, esse “merchandisingsocial” é uma marca comercial da novela brasileira e, sem dúvida, contribui para promover o debate na sociedade. Para a Globo, o maior conglomerado midiático da América Latina, controlado unicamente pela família Marinho, “é também uma forma de oferecer uma boa imagem, a de uma rede privada preocupada com uma missão de serviço público”, estima Maria Carmem. Por sua vez, Mauro Alencar confia que o velho lema da Globo, “A gente se vê por aqui”, e o atual, “A gente se liga em você”, “não são apenas sloganspublicitários: eles demonstram a intensa relação de identificação do público e o interesse da rede pelos grandes temas nacionais”.

Manter essa relação não é simples. Por um lado, porque, se a Globo continua sendo a rainha indiscutível da novela, com as outras redes simplesmente copiando seu modelo de produção, sem ter os meios para colocá-lo em prática, ela sofre hoje em dia com a concorrência da internet e o desinteresse de alguns jovens. Até os anos 1970, as pontuações médias da audiência de novelas com frequência ultrapassavam os 60%, quando não chegavam aos 80%. Hoje, captar o interesse de 40% dos lares representa um sucesso. Em 2012, a audiência total da Globo atingiu o nível mais baixo da história, com uma queda de 10%5 – que, certamente, atingiu todas as redes. “O problema é que assistimos à novela no computador, no telefone, e ainda não temos nenhum instrumento de medição para essas mídias”, argumenta Mauro Alencar.

Na verdade, contra todas as expectativas, a queda da audiência não implica redução de benefícios: as novelas rendem mais do que nunca. Nas agências de publicidade, reconhece-se que isso é em parte o resultado de certa inércia. Tal como acontece na imprensa escrita, é mais fácil levar os anunciantes a concentrar seu orçamento em alguns títulos, sem prestar atenção em seu menor impacto. E essa ilusão é alimentada pelo fato de que a novela tem contaminado todas as áreas: dezenas de revistas são dedicadas a ela, as redes sociais mantêm o suspense, para não mencionar os especialistas de todo tipo convidados a falar sobre o fenômeno em outros programas da rede, mas também nas colunas do jornal O Globo, bem como nas rádios e em outros canais ligados ao grupo, uma sinergia pouco estudada nas universidades. “Cada vez mais falamos e ouvimos falar da novela, sem necessariamente assistir a ela”, constata Bosco Brasil.

Especialmente porque a sociedade brasileira mudou dramaticamente ao longo dos últimos dez anos, com a saída da pobreza de cerca de 50 milhões de pessoas, alçadas ao mercado de consumo de massa, e uma redução significativa das desigualdades. “São famílias cujo poder aquisitivo aumentou consideravelmente. Torna-se mais interessante investir em publicidade ou ações de merchandising”, ressalta Mauro Alencar.

Empregadas domésticas como heroínas

Essa é também uma das razões do enorme sucesso de Avenida Brasil, que deve seu nome à via rápida que liga os subúrbios do norte à zona sul do Rio de Janeiro, rica e turística. Não foi tanto o enredo – uma jovem criada em um aterro municipal pretende se vingar por ter sido abandonada por sua madrasta, que se tornara rica – que se mostrou decisivo, e sim o surgimento de um novo tipo de protagonista. As tradicionais cenas nas praias de Ipanema ou de Copacabana e nos bairros mais exclusivos do Rio de Janeiro foram substituídas por um mergulho em um bairro fictício, Divino, típico da classe média baixa da zona norte da cidade. Essa não é a primeira vez que os pobres estão representados; mas, em geral, seu único sonho, que se realizava no happy end, era conseguir acesso ao Rio rico e ilustre. Não em Avenida Brasil: Tufão, o herói, transformado em milionário graças ao futebol, permanece no bairro de sua infância. Ali, as pessoas falam alto e não sabem usar os talheres corretamente, mas ele gosta. Sucesso enorme junto ao que o governo tenta descrever como uma “classe média emergente” (mas que continua sendo mais um “segmento pobre” da população ativa),6 que se vê representada pela primeira vez como próxima dos mais ricos, que têm assim acesso a um mundo desconhecido.

Esse coquetel de orgulho em uns e de curiosidade em outros também explica o sucesso de Cheias de charme(2012), cujas heroínas são três empregadas domésticas: algo nunca visto. “Até então, era um personagem secundário e muitas vezes caricatural: a empregada que se mete em tudo na vida da patroa, sem existência própria”, diz Nilson Xavier. Entre o aumento do salário mínimo, que passou R$ 200 a R$ 678 entre 2002 e 2013, e o aumento do nível de ensino – a proporção de jovens de 19 anos que foram escolarizados por pelo menos onze anos aumentou de 25,7% em 2001 para 45% em 2011 –, o equilíbrio de forças começou a mudar na sociedade, levando os autores, Filipe Miguez e Izabel de Oliveira, a imaginar esse cenário. “Antes, a empregada aparecia somente em sua função. Decidimos segui-la em sua vida, em sua casa, na rua, em seus sonhos”, conta Miguez. Mais uma vez, o sucesso foi ter conseguido não mexer com os mais ricos, de ideias bem pouco progressistas, como observado pelo autor: “Fizemos uma pesquisa que colocava perguntas como: ‘Você acha certo que uma empregada suba no mesmo elevador que você?’, e a maioria respondeu que não. É esquizofrênico: como ela é a empregada, não pode usar seu elevador ou seu banheiro, mas pode cuidar de seu filho!”.

Nos escritórios do Projac são muitos a se debruçar sobre as mudanças econômicas e tecnológicas que sacodem o país, e Silvio de Abreu dá uma de filósofo: “Eu não tenho bola de cristal para prever o futuro da novela, mas uma história bem escrita sempre vai fascinar o público. Tanto faz que ela seja vista no ônibus, na internet, em um telefone, para mim nada vai mudar: eu vou sempre me levantar às 7 da manhã e escrever até a meia-noite, para produzir um capítulo por dia”.

*Lamia Oualalou é jornalista


1 Venício de Lima, Mídia. Teoria e política, Fundação Perseu Abramo, São Paulo, 2001.
2 Alcir Henrique da Costa, Maria Rita Kehl e Inimá Ferreira Simões, Um país no ar, Brasiliense, São Paulo, 1986.
3 Eliana La Ferrara, Alberto Chong e Suzanne Duryea, “Soap operas and fertility: evidence from Brazil” [Novelas e fertilidade: evidências do Brasil], Banco Interamericano de Desenvolvimento, Washington, 2008.
4 Alberto Chong e Eliana La Ferrara, “Television and divorce: evidence from Brazilian novelas” [Televisão e divórcio: evidências de novelas brasileiras], Banco Interamericano de Desenvolvimento, 2009.
5 “Globo fecha 2012 com pior ibope da história”, Midianews, 3 jan. 2013. Disponível em: .
6 Marcio Pochmann, Nova classe média? O trabalho na base da pirâmide social brasileira, Boitempo, São Paulo, 2012.


Um comentário:

  1. Muito interessante este artigo; fornece elementos para uma explicação das ampliações da identidade brasileira contemporânea. Vera Felicidade

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