30 julho, 2013

Brasil: protestos por cidadania e direitos

Protestos foram registrados em todo país nos últimos dois meses

por @felippe_ramos
do Opera Mundi


Para compreender a conjuntura política do Brasil hoje e os protestos que tomaram as ruas em junho, é necessário desfazer três leituras equivocadas ou insuficientes: (a) sobre a realidade socioeconômica do Brasil; (b) sobre a composição, forma e orientação político-ideológica das manifestações de junho; (c) sobre o papel que deve e pode desempenhar a esquerda organizada face aos novíssimos movimentos sociais e as manifestações que eclodiram sem liderança identificável.

Após dez anos de governos encabeçados pelo Partido dos Trabalhadores (PT), o Brasil apresenta um cenário socioeconômico mais favorável do que o período neoliberal (década de 90). O boom das commodities iniciado em 2003 permitiu ao país viver um ciclo de expansão de exportações agrícolas e minerais para mercados asiáticos emergentes, principalmente a China, que passou a ser o principal parceiro comercial do Brasil.

Com mais divisas, equilíbrio macroeconômico e superávits comerciais sustentados, o presidente Lula, eleito nessa nova conjuntura macroeconômica, contou com a fortuna necessária para todo bom governo e soube administrar o país com a virtude do grande líder. A partir de uma correta (mas não a única possível) leitura da realidade (estrutura e conjuntura), o líder acabou por criar as condições da construção de uma nova hegemonia política que passou a ser nomeada lulismo e que consiste na constituição de uma ampla coalizão de partidos políticos, movimentos sociais, elites econômicas e grupos de interesse, capaz de promover a redução da miséria e da pobreza sem tocar em interesses fundamentais do topo da pirâmide social.

As políticas de transferência emergencial de renda (Bolsa Família) e a valorização do salário mínimo possibilitaram o crescimento do mercado interno, o que contribuiu, por meio de políticas anti-cíclicas por parte do governo, para proteger o país da crise econômica mundial eclodida em 2008. Essas políticas simultaneamente respondiam demandas das classes mais baixas (D e E) por inclusão social e demandas das classes mais altas (A e B) por equilíbrio e crescimento econômico.

A grande incógnita passou a ser a classe C, principalmente setores com mais renda nessa classe, que antes votava no PT e que passou a buscar uma terceira alternativa à alternância PT-PSDB. O grande pacto de classes permitiu, nesse sentido, uma gestão macroeconômica conservadora que não afetava interesses do grande capital, ao mesmo tempo em que impulsionava políticas sociais que recolocavam o Estado como importante agente indutor do desenvolvimento. Alguns autores chamam a isso, de forma um tanto imprecisa, de pós-neoliberalismo.



Alguns protestos acabaram se tornando verdadeiras praças de guerra

A fórmula lulista foi bem sucedida e reequilibrou a hegemonia política no país ao inserir não apenas as classes D e E do ponto de vista econômico, mas ao abrir oportunidades políticas aos atores com origem em movimentos sociais diversos (sindicais, estudantis, luta pela terra, minorias, etc.). Quadros administrativos e políticos em distintos escalões passaram a ser compostos por indivíduos com lealdades políticas diferentes do núcleo da hegemonia conservadora do pacto, o que possibilitou e legitimou a existência de conflitos intra e inter-institucionais que deram vigor e dinâmica ao próprio projeto que foi sempre tocado ao sabor da instável e mutante correlação de forças.

A tática foi lotear o aparato do Estado entre os interesses, de acordo com a força política dos agentes políticos: por exemplo, Ministério da Agricultura para o agronegócio; Ministério do Desenvolvimento Agrário para a reforma agrária e a agricultura familiar. O discurso na esquerda foi o de que o governo se encontrava em disputa e de que não haveria alternativa politicamente viável mais à esquerda. Era preciso, então, apoiar as pautas progressistas e combater as pautas conservadoras, mas sempre dentro da coalizão.

Do ponto de vista da esquerda e da contestação, portanto, o pacto lulista significou uma oportunidade política de acesso parcial ao Estado e ao poder, mas com o custo da desmobilização e o risco da burocratização dos principais movimentos sociais e políticos forjados na luta pela redemocratização (anos 80) e contra o neoliberalismo (anos 90).

O problema político evidenciou-se quando o lulismo chegou ao seu esgotamento (se parcial ou total só será possível afirmar com as eleições de 2014), cujo marco foi a eclosão das manifestações espontâneas de massa em junho de 2013. A fórmula lulista do pacto amplo possibilitou a inserção econômica de amplos estratos populacionais antes excluídos, mas essa inserção se deu basicamente via consumo. O aumento da capacidade individual de consumo de bens básicos e supérfluos significou, para aqueles que se beneficiaram, um aumento de bem-estar e ao mesmo tempo garantiu a ampliação do mercado interno, o que agradou a indústria nacional.

No entanto, a mesma fórmula lulista do pacto amplo também impediu que políticas públicas mais ousadas de promoção da cidadania e de ampliação de direitos fossem tomadas. Isto é, a fortuna e a virtude lulistas tinham um limite: a inserção deveria acontecer, primordialmente, pelo consumo e pela lógica do privado e não pela cidadania ou pela lógica do bem público.

A expansão do público se observou, mas apenas sob duas condições: (a) quando o aumento do gasto acompanhava o aumento da arrecadação e o respeito a “responsabilidade fiscal” e (b) quando se tratava de atribuição direta, mas não exclusiva, do governo federal, como no caso do fortalecimento das universidades federais. Isso não impediu, contudo, que o ensino superior privado crescesse mais do que o público e tampouco significou uma melhoria significativa do ensino básico, relegado a cada conjuntura estadual e ao pacto de governabilidade com os governadores. O mesmo poderia ser dito sobre a saúde: o fortalecimento do SUS não retira a ninguém o desejo de ter um bom plano de saúde privado.



Manifestantes aproveitaram o momento de tensão para saquear lojas

Foi justamente um desafio à lógica do privado em detrimento do público o recado que primeiro emanou das ruas durante os protestos e que levou multidões às manifestações de junho. A negativa popular ao aumento do valor da tarifa do transporte público em São Paulo foi o estopim de um imenso número de demandas e pautas que mais à frente apareceriam escritos à mão nos cartazes de cartolina exibidos nas ruas de todo o país. Dessa multiplicidade, no entanto, podem ser extraídas as categorias temáticas: educação pública, saúde pública, direito à cidade e mobilidade urbana, segurança pública e redução da violência e da criminalidade, direito à habitação e moradia, combate à corrupção.

As bandeiras mais reacionárias e conservadoras, destacadas por alguns com o objetivo de deslegitimar o grito das ruas, foram, na verdade, limitadas e pouco representativas, ainda que inevitáveis, dado o caráter descentralizado e horizontal dos protestos, composto majoritariamente por jovens neófitos em manifestações e influenciados pela cultura de massa e pelo cartel ideológico dos meios de comunicação. A leitura mais abrangente dos cartazes à mostra revela, contudo, certa coerência na polifonia das ruas: a demanda é pelo público. Os partidos políticos de esquerda e os movimentos sociais tradicionais não tinham condições políticas nem legitimidade para liderar tais protestos, justamente pelo fato de terem composto e legitimado o governo que resolveu parcialmente os problemas sociais, mas que também cristalizou os limites para qualquer solução mais radical e profunda.

A adesão, desmobilização, burocratização, institucionalização e/ou cooptação dos movimentos sociais e partidos de esquerda nos governos Lula e Dilma possibilitaram os ganhos socioeconômicos obtidos pela nova classe trabalhadora em um contexto de consolidação democrática, mas também impediram que esses grupos dirigissem a overdose de pautas fragmentadas emanadas das ruas que são fruto do passivo do pacto conservador.

Quando a presidenta Dilma Rousseff manifestou-se publicamente pela segunda vez desde a eclosão dos protestos soube evitar que a agenda fosse ditada por interesses escusos dos meios de comunicação (Rede Globo) e contrariou leituras de eminentes personalidades de seu próprio partido (a tese de que as manifestações expressavam a tríade “golpe, fascismo e direita”). Mas ao proclamar um pacto com governadores, prefeitos e sociedade civil, o primeiro dos cinco pontos – responsabilidade fiscal – evidencia que, a despeito de haver percebido a necessidade de fazer política ao invés de uma gestão supostamente técnica, o lulismo segue ditando as respostas políticas: a análise da conjuntura e da correlação de forças do momento orienta o desenho da ação cirúrgica para curar os efeitos desestabilizadores.

De fato, o recado das ruas era claro ao pedir políticas que teriam como consequência a elevação do gasto público em detrimento da política de austeridade (corte de gastos e elevação da taxa básica de juros) que vem sendo implantada pelo governo. No entanto, segundo a fórmula lulista, as respostas governamentais às demandas populares são aceitáveis, legítimas e até desejáveis, desde que não afetem interesses consolidados dos interesses rentistas e oligopólicos que dominam a estrutura econômica. Por isso os demais pontos do pacto proposto (transporte público, saúde, etc.) devem se subordinar ao primeiro (responsabilidade fiscal), inserido por pressão dos grupos dominantes e dos governadores e prefeitos, ainda que contra a vontade manifesta das ruas.

A nova classe trabalhadora, uma vez beneficiada pela inclusão no mundo do consumo, deseja direitos e cidadania: percebeu que a vida melhorou da porta da casa para dentro, mas segue desagradável da porta da casa para fora – no espaço público. Mas está claro também que o fôlego e o alcance dos protestos realizados de maneira espontânea é limitado. Sem a organização profissional do movimento exigida pelo mundo da política, a fiscalização cotidiana do poder não acontece e após os sintomas de febre e convulsão, o corpo político, que ensaiava mudanças de hábito, tende a voltar ao normal: a reforma política e o plebiscito provavelmente serão engavetados. O recado, no entanto, foi dado à esquerda e ao governo: o povo quer mais e quando sair para protestar já não será sob o seu comando.
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* Felippe Ramos é sociólogo, diretor do Instituto Surear

Um comentário:

  1. Concordo parcialmente com sua brilhante análise.
    Há, todavia, outros fatores importantes acerca das ondas de protestos que não são nem cogitadas.

    Bacana, gostei de ler a matéria, acrescentou. Grata.

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