31 outubro, 2011

Minha pátria é minha língua?

Dica de @AntonioLassance
Edição de Denise Queiroz e Sergio Pecci
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A língua falada no Brasil poderia ser outra e muito mais rica caso, no século XVIII, os estudos já avançados sobre o idioma tupi (dos povos Tupinambá, Tupiniquin, Caeté, Tamoio e Potiguara) falado portanto na maior parte do país, não tivessem sido postos a perder pela decisão da coroa portuguesa de expulsar os jesuítas, que haviam, por necessidade de comunicar-se com os nativos, padronizado a Língua Geral em detrimento dos idiomas originais das várias tribos espalhadas pelo território então conhecido. 
Com a expulsão dos missionários, o Marquês de Pombal pôs fim à continuidade dos estudos já em andamento para impressão da Bíblia em Língua Geral. 
O idioma, já no final do século VXII, era falado e reconhecido, mas era também um empecilho aos interesses da corte portuguesa que formava as duas cidades dominantes à época, Rio de Janeiro e Salvador. 
A nossa língua, portanto, hoje considerada riquíssima, empobreceu por um decreto que obrigou à adoção de um idioma que não era o falado e reconhecido pela maior parte da população. A riqueza da influência indígena, que já havia sido retirada em parte pela Língua Geral, ficou encerrada em alguns territórios e regiões e o corriqueiro idioma pré-Pombal, foi caindo no esquecimento pela imposição da língua da coroa e pela falta do registro gráfico da mesma.  

Do livro Viagem à Terra do Brasil, de Jean De Léry
A realidade lingüística do país até o final do século XVII 

Ao contrário do que geralmente se pensa, a língua portuguesa, nos tempos coloniais, não era a língua mais falada nas colônias portuguesas da América do Sul, ou seja, no Brasil e no Grão-Pará, terras que compõem o Brasil de hoje. Podemos até dizer, sem exagerar muito, que o português era falado apenas nas ruas das duas cidades verdadeiramente portuguesas, São Sebastião do Rio de Janeiro e Salvador da Bahia, os grandes portos exportadores de ouro, de pedras preciosas, de açúcar, e importadores de produtos manufaturados e sobretudo de mão-de-obra escrava. Ao se disseminarem para o interior das terras, os colonos, aventureiros e viajantes em geral, se viam rapidamente na obrigação de adotar a koiné de base lexical tupi de uso geral, a chamada língua geral.

Não podemos esquecer que não havia nenhuma escola na totalidade do território que chamamos hoje de Brasil. O Brasil de então —isto é, os dois terços meridionais do Brasil atual— era dividido em capitanias que, a partir de determinada porção da costa atlântica, projetavam uma faixa perpendicular, em linha reta, para o interior. Esses territórios eram verdadeiramente propriedades particulares outorgadas pelo Rei de Portugal, e, portanto, não desfrutavam de nenhuma prerrogativa das quais um Estado habitualmente goza.

Assim sendo, essas capitanias eram meros quintais para serem explorados, sem nenhuma política outra do que a pilhagem sistemática das terras. Pouca agricultura, fora a da cana-de-açúcar, e nenhuma rede educacional.

A situação não era diferente no Grão-Pará (o terço setentrional do Brasil moderno), cuja capital era Belém, na boca do rio Amazonas. Entretanto, tratava-se da afinagem do príncipe herdeiro da coroa portuguesa; porém, a língua portuguesa era ainda menos usada na cidade de Belém do que nas cidades do Sul.


Debret
A emergência da Língua Geral

Entretanto, nessas terras onde dominava uma forma um tanto anárquica de pilhagem de riquezas, coexistiam algumas formas de projetos como o da evangelização dos «selvagens», com a presença em particular dos jesuítas, tolerados pelo poder, embora nem sempre vistos com bons olhos. O plano jesuíta incluía a tradução em língua popular dos evangelhos. Ora, de fato, para tal projeto vingar, havia de inventar uma modalidade escrita para esta língua popular. No fundo, estamos na frente dos mesmos problemas que tinham encontrado no século anterior na Europa os grandes reformadores da religião, como Martin Luther, Jean Calvin ou John Knox: como se traduzir a Bíblia numa língua compreensível pelo povo, enquanto não há modalidade escrita popular oficial, e quando a realidade lingüística é constituída de uma multidão de dialetos cujas diferenças tornam a intercompreensão problemática.

A solução encontrada foi mais ou menos a mesma: criar uma língua escrita média, que não fosse língua materna de ninguém, ou seja, nos casos citados, o Hochdeutsch da Bíblia impressa graças à recente invenção de Gutenberg, o francês que viria a ser chamado de français de la Cour, ou essa modalidade de tupi médio dito Língua Geral. Assim como em muitos países da Europa, um mosaico de variantes regionais passou a conviver com uma variante criada para servir de modalidade escrita, própria para ser difundida através da recente invenção da imprensa e da tipografia, numa economia de escala que permitisse a emergência de uma das primeiras indústrias capitalistas, a do livro impresso.

Assim sendo, a Língua Geral tinha tudo para se tornar a verdadeira língua nacional do Brasil, com o seu papel identitário na emergência de um nacionalismo comparável aos das nações européias, em processo de nascimento e de consolidação.

Entretanto, a Língua Geral sobrevive hoje em dia numa forma crioulizada, no norte do país, com o nheengatu. Mas, de qualquer modo, a decisão tomada pelo marquês de Pombal de expulsar os jesuitas e de impor uma educação laica em português contribuiu para que o Brasil fosse considerado, até recentemente, como um país unilingüe, caracterizado com apenas uma língua nacional. 


Marquês do Pombal
A decisão do Marquês de Pombal, e as suas conseqüências 

Com as suas medidas, o Marquês de Pombal, primeiro-ministro do Rei de Portugal nessa segunda metade do século xviii, conseguiu inviabilizar a promoção da Língua Geral à posição de língua nacional no Brasil. Ao expulsar os Jesuitas de Portugal e das colônias, ele conseguiu postergar as primeiras veleidades independentistas que afloravam no Brasil. Sobretudo, eliminou as instituições educacionais que promoviam uma língua própria que pudesse constituir uma força para as reivindicações nacionais de um Brasil independente. A partir de então, a língua portuguesa passou a ser a única candidata ao status de língua nacional e de modalidade escrita.

A história dos cinco últimos séculos mostra quanto a emergência dos Estados nacionais na Europa está intimamente ligada, a partir do Renascimento e da ascenção da burguesia européia, com o surgimento do livro impresso, da criação de línguas escritas —sejam elas românicas ou germânicas— em substituição do latim, da crise da Reforma religiosa e da tentativa do antídoto da Contra-Reforma e dos seus servidores, os jesuítas, e enfim, last but not least, da afirmação das normas escritas como línguas nacionais portadoras dos novos valores identitários.

Nessa perspectiva, houve de fato uma tentativa de salvar um império português em frangalhos, com o adiamento da realização de independência no caso do Brasil. Entretanto, pode-se dizer, de modo um tanto solene e quase ridiculamente enfâtico que o freio imposto à marcha da história não ia conseguir reverter o curso do destino... Mas a língua da ex-colônia acabou não sendo um tupi na sua versão da língua geral, mas um português numa variante que seria própria do Brasil, um tanto distante do português europeu. 


Debret - Charruas Civilizados
As variantes regionais do português brasileiro: a sua formação e o seu futuro. 

Apesar da imensidão do seu território, no que diz respeito às realizações da língua portuguesa, o Brasil mostra uma homogeneidade muito maior do que o Portugal, cuja superfície de 92 100 km2 é equivalente a apenas um pouco mais de 1 % do território de Brasil, de 8.547.404 km2 .

O que aparece como sendo um paradoxo se explica justamente pela longa história da presença do latim na península ibérica, que, ao longo dos dois milênios, teve contatos com os celtiberos locais, com os fenícios e cartaginenenses aí já instalados, com os gregos comerciantes, com os vândalos, os visigodos, os bereberes, os árabes. Tais contatos determinaram mudanças e variações que resultaram numa multidão de variantes, de dialetos e de línguas neolatinas, o que contrasta com a situação do Brasil, onde, apesar das variações regionais, a grande homogeneidade da língua portuguesa, nas suas variantes sociais, não deixa de ser notável.

Se o território brasileiro abriga populações de línguas mas diversas, sejam elas indígenas —da família tupi ou gê, principalmente — ou de imigrantes portugueses, espanhois, alemãos, italianos, suíços, japoneses, russos, entre muitos outros, a língua portuguesa adotada pelos seus descendentes, apresenta uma variabilidade muito restrita, quando comparada com aquela encontrada no diminuto território de Portugal.

Tal relativa homogeneidade geográfica, que se encontra, aliás, em todos os níveis de variabilidade social da língua, não deixa de reforçar a tese da consolidação relativamente recente da língua portuguesa no país, quando veio substituir definitivamente a língua geral, essa koiné tupi de uso generalizado em maior parte do Brasil.


Leia o texto na íntegra na Revista Uca

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