Foto: Jardineira |
Do Carta Maior
Em maio de 1968, os jovens franceses que erguiam barricadas tinham como uma de suas palavras de ordem: “sejamos realistas, peçamos o impossível”. Em uma das manifestações, a universidade de Paris, com o aval do governo francês, indicou o sociólogo Alain Touraine como negociador. Touraine perguntou: quem é o líder de vocês e o que vocês querem? O interessante das duas perguntas é a total surpresa e prostração de muitos governantes, diante do inimaginável, e o nó na cabeça quando se está diante de pessoas que pedem “o impossível”, ou que são “contra tudo e contra todos”.
Ainda mais incrível é como a tarefa de reduzir o preço das passagens se tornou algo considerado “impossível”. Na verdade, em várias das cidades brasileiras, a passagem de ônibus baixou. Significa dizer que, para muitas cidades, a ação do Governo Federal de zerar alguns dos impostos que incidem sobre o transporte coletivo surtiu efeito rápido e imediato, mas não nas capitais. Em algumas delas, é a justiça quem está obrigando à redução.
Como o Governo Federal distribuiu a benesse sem cobrar contrapartidas mais específicas, que nesse caso poderiam inclusive ajudar em seu esforço para diminuir a inflação, a oportunidade oferecida pela redução dos impostos foi engolida pelos governos estaduais ou municipais. Alguns justificaram como uma opção concreta para recuperar investimentos. Mas não é com o dinheiro da PIS/Cofins e da Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico que isso deveria ser feito.
Dados da Secretaria de Transportes de São Paulo revelam que, desde 2004, o número de ônibus em São Paulo diminuiu, enquanto a quantidade de passageiros cresceu em quase 80%. O período compreende o último ano da administração municipal do PT e atravessa toda a era Serra-Kassab na prefeitura paulistana. Provavelmente, a situação é similar em várias outras cidades, o que explica claramente como o transporte coletivo foi meticulosamente preparado na última década para se tornar uma panela de pressão ainda mais quente. Mas, a essa altura do campeonato, pouco importa perguntar de quem é a culpa.
A eclosão dos movimentos de contestação ao preço das passagens do transporte urbano coincide com o calendário da Copa das Confederações, o que transformou o evento em um momento emblemático do contraste entre os investimentos suntuosos em estádios, que ficaram rigorosamente prontos a tempo, e o atraso nas obras de mobilidade. As cenas do Recife, com torcedores uruguaios e espanhóis indignados com a situação dos ônibus e metrô, mostraram que o verdadeiro cartão de visitas do Brasil aos torcedores estrangeiros já não é mais o estádio e o aeroporto, é o transporte urbano. As capitais têm um ano para refazerem os planos e acelerarem a conclusão das principais obras de melhoria urbana. De preferência, com as máquinas trabalhando na madrugada, como foi feito para construir estádios.
As manifestações também praticamente coincidem com o calendário das conferências estaduais das cidades. Elas estão previstas de ocorrer de julho a setembro. Prefeituras e governos estaduais, além dos canais de negociação que acabaram de ser abertos, deveriam canalizar suas energias para mostrar que as conferências podem ser o palco não apenas da discussão sobre o preço das passagens, mas sobre o direito à cidade. Em alguns casos, antecipar sua data de realização talvez fosse uma boa medida para mostrar a disposição dos governos em discutir os problemas a fundo.
Ou esse debate é abraçado pelos dirigentes governamentais como algo a ser enfrentado e discutido de peito aberto, nas conferências, ou a rua vai continuar sendo o palco da maior conferência de cada uma dessas cidades.
Todavia, em mais um lance do inacreditável futebol clube, o ministro das Cidades, até o momento, apenas falou mal e ironizou os manifestantes, ao invés de aproveitar a onda de protestos como um mote para discutir as políticas públicas de sua área.
Outra medida óbvia pode ser extraída do velho clichê de transformar uma crise em uma oportunidade. Os governos têm pouco mais de um ano e meio para regulamentar a política nacional de mobilidade urbana. Aprovada em 2012, a lei é fruto de um debate que ficou interditado no Congresso durante praticamente uma década. A obrigação de cumprir os prazos da lei agora se transformou em urgência política.
A lei da mobilidade é uma oportunidade para os governos reformularem sua política de financiamento ao transporte e passarem a defender abertamente a retomada dos subsídios e resgate das empresas públicas de transporte. Ficou claro que, se podemos construir estádios, podemos inverter prioridades para financiar o transporte coletivo. Se podemos ter estádios de primeiro mundo, podemos ter transporte de primeiro mundo. A questão, mais uma vez, óbvia, é quem pode e deve pagar essa conta; quanto vai custar e de onde vão sair os recursos.
Isso implica não apenas em discutir novas fontes de financiamento como assumir compromissos no sentido de abrir a caixa preta do transporte coletivo. Em inúmeros casos, o cartel dos transportes coletivos se transformou em máfia faz tempo. É bom que prefeitos e governadores se apressem em abrir seus livros-caixa antes que sejam obrigados a fazê-lo, ou pelos protestos, ou pelo Judiciário, ou pelos tribunais de contas, ou, o que é mais provável, por todos eles. Não pode pesar dúvida sobre a relação de prefeitos e governadores com empresas de transportes, nem sobre o destino dos recursos utilizados no sistema.
Nessa hora, por mais paradoxal que possa parecer, o importante é partir do óbvio para se chegar ao improvável. Cabe aos governos, mais do que aos manifestantes, organizar o debate. Aos manifestantes cabe o papel muito salutar de virar as ideias de cabeça para baixo.
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Em maio de 1968, os jovens franceses que erguiam barricadas tinham como uma de suas palavras de ordem: “sejamos realistas, peçamos o impossível”. Em uma das manifestações, a universidade de Paris, com o aval do governo francês, indicou o sociólogo Alain Touraine como negociador. Touraine perguntou: quem é o líder de vocês e o que vocês querem? O interessante das duas perguntas é a total surpresa e prostração de muitos governantes, diante do inimaginável, e o nó na cabeça quando se está diante de pessoas que pedem “o impossível”, ou que são “contra tudo e contra todos”.
Ainda mais incrível é como a tarefa de reduzir o preço das passagens se tornou algo considerado “impossível”. Na verdade, em várias das cidades brasileiras, a passagem de ônibus baixou. Significa dizer que, para muitas cidades, a ação do Governo Federal de zerar alguns dos impostos que incidem sobre o transporte coletivo surtiu efeito rápido e imediato, mas não nas capitais. Em algumas delas, é a justiça quem está obrigando à redução.
Como o Governo Federal distribuiu a benesse sem cobrar contrapartidas mais específicas, que nesse caso poderiam inclusive ajudar em seu esforço para diminuir a inflação, a oportunidade oferecida pela redução dos impostos foi engolida pelos governos estaduais ou municipais. Alguns justificaram como uma opção concreta para recuperar investimentos. Mas não é com o dinheiro da PIS/Cofins e da Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico que isso deveria ser feito.
Dados da Secretaria de Transportes de São Paulo revelam que, desde 2004, o número de ônibus em São Paulo diminuiu, enquanto a quantidade de passageiros cresceu em quase 80%. O período compreende o último ano da administração municipal do PT e atravessa toda a era Serra-Kassab na prefeitura paulistana. Provavelmente, a situação é similar em várias outras cidades, o que explica claramente como o transporte coletivo foi meticulosamente preparado na última década para se tornar uma panela de pressão ainda mais quente. Mas, a essa altura do campeonato, pouco importa perguntar de quem é a culpa.
A eclosão dos movimentos de contestação ao preço das passagens do transporte urbano coincide com o calendário da Copa das Confederações, o que transformou o evento em um momento emblemático do contraste entre os investimentos suntuosos em estádios, que ficaram rigorosamente prontos a tempo, e o atraso nas obras de mobilidade. As cenas do Recife, com torcedores uruguaios e espanhóis indignados com a situação dos ônibus e metrô, mostraram que o verdadeiro cartão de visitas do Brasil aos torcedores estrangeiros já não é mais o estádio e o aeroporto, é o transporte urbano. As capitais têm um ano para refazerem os planos e acelerarem a conclusão das principais obras de melhoria urbana. De preferência, com as máquinas trabalhando na madrugada, como foi feito para construir estádios.
As manifestações também praticamente coincidem com o calendário das conferências estaduais das cidades. Elas estão previstas de ocorrer de julho a setembro. Prefeituras e governos estaduais, além dos canais de negociação que acabaram de ser abertos, deveriam canalizar suas energias para mostrar que as conferências podem ser o palco não apenas da discussão sobre o preço das passagens, mas sobre o direito à cidade. Em alguns casos, antecipar sua data de realização talvez fosse uma boa medida para mostrar a disposição dos governos em discutir os problemas a fundo.
Ou esse debate é abraçado pelos dirigentes governamentais como algo a ser enfrentado e discutido de peito aberto, nas conferências, ou a rua vai continuar sendo o palco da maior conferência de cada uma dessas cidades.
Todavia, em mais um lance do inacreditável futebol clube, o ministro das Cidades, até o momento, apenas falou mal e ironizou os manifestantes, ao invés de aproveitar a onda de protestos como um mote para discutir as políticas públicas de sua área.
Outra medida óbvia pode ser extraída do velho clichê de transformar uma crise em uma oportunidade. Os governos têm pouco mais de um ano e meio para regulamentar a política nacional de mobilidade urbana. Aprovada em 2012, a lei é fruto de um debate que ficou interditado no Congresso durante praticamente uma década. A obrigação de cumprir os prazos da lei agora se transformou em urgência política.
A lei da mobilidade é uma oportunidade para os governos reformularem sua política de financiamento ao transporte e passarem a defender abertamente a retomada dos subsídios e resgate das empresas públicas de transporte. Ficou claro que, se podemos construir estádios, podemos inverter prioridades para financiar o transporte coletivo. Se podemos ter estádios de primeiro mundo, podemos ter transporte de primeiro mundo. A questão, mais uma vez, óbvia, é quem pode e deve pagar essa conta; quanto vai custar e de onde vão sair os recursos.
Isso implica não apenas em discutir novas fontes de financiamento como assumir compromissos no sentido de abrir a caixa preta do transporte coletivo. Em inúmeros casos, o cartel dos transportes coletivos se transformou em máfia faz tempo. É bom que prefeitos e governadores se apressem em abrir seus livros-caixa antes que sejam obrigados a fazê-lo, ou pelos protestos, ou pelo Judiciário, ou pelos tribunais de contas, ou, o que é mais provável, por todos eles. Não pode pesar dúvida sobre a relação de prefeitos e governadores com empresas de transportes, nem sobre o destino dos recursos utilizados no sistema.
Nessa hora, por mais paradoxal que possa parecer, o importante é partir do óbvio para se chegar ao improvável. Cabe aos governos, mais do que aos manifestantes, organizar o debate. Aos manifestantes cabe o papel muito salutar de virar as ideias de cabeça para baixo.
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*Antonio Lassance é cientista político e pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). As opiniões expressas neste artigo não refletem necessariamente opiniões do Instituto.
Não sei porque mas fiquei emocionada ao ler esse artigo.Obrigada Antonio Lassance, Abraços.
ResponderExcluirTambém fiquei. Talvez porque aponte caminhos possíveis e como diz o feliz título, óbvios! Abraços e obrigada pela visita!
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