08 dezembro, 2011

A primavera que o Ocidente pediu a Deus

Em entrevista a Eduardo Sales de Lima no Brasil de Fato , o jornalista Pepe Escobar destaca o início de um período contrarrevolucionário nos países árabes.

Praça Tahrir, no Cairo - Foto: Mashahed’s Photos/CC

A junta militar que governa interinamente o Egito confirmou a nomeação de um ex-premiê da era Hosni Mubarak (1981 – 2011) para liderar o próximo governo. Kamal Ganzouri, 78 anos, foi primeiro-ministro entre 1996 e 1999. Sua nomeação provocou uma reação negativa entre a população. Mais de 100 mil manifestantes se reuniram na praça Tahrir no centro do Cairo para realizar o maior protesto desde a nova fase das manifestações.

A Primavera Árabe estaria retrocedendo? Teria ela entrado num “limbo”? Talvez. A permanência da influência das potências ocidentais, sobretudo dos Estados Unidos sobre os países árabes reforça tais indagações. A situação no Egito é apenas um exemplo. E recentemente, após o assassinato de Muamar Kadafi , na Líbia, Israel resolveu aumentar a tensão junto ao Irã. Esses são alguns dos destaques que o jornalista Pepe Escobar, especialista em Oriente Médio, do Asia Times, tentou “encadear”, numa conversa com o Brasil de Fato.

A guerra entre a Otan/“rebeldes” líbios contra as forças de Muamar Kadafi, resultando na morte do líder, pode ter significado o fim de um ciclo da Primavera Árabe?

Pepe Escobar – Ninguém no Ocidente esperava a Primavera Árabe, muito menos da forma como ela começou. Aquele ato do [jovem vendedor ambulante tunisiano] Mohamed Bouzazi lembrou os monges no Vietnã no início dos anos 1960, o de atear fogo em suas próprias vestes exigindo direitos e justiça sociais. O fato de começar num país periférico no mundo árabe como é a Tunísia deixou muita gente no Ocidente um pouco perplexa.

Por que na Tunísia? Havia várias condições: repressão governamental a movimentos sociais, teve o elemento “Google-Facebook”, que foi super importante com a juventude desempregada bem informada, e um ditador no poder durante mais de 20 anos.

Quando o movimento chegou ao Egito, o Ocidente, especialmente os estadunidenses ficaram desesperados, porque ao contrário da Tunísia, que é um país periférico, o Egito é um país central na política externa estadunidense. A “cadeirinha” dos Estados Unidos no Oriente Médio pressupõe o pilar egípcio, o israelense, e o da Arábia Saudita. Quando caiu o pé da cadeira Egito, os estadunidenses se perguntaram “E, agora? O que virá depois?”. Desde o começo das revoltas, eles privilegiavam uma solução negociada com o objetivo de manter o regime. Ao analisar as declarações da época, não só [Barack] Obama, Hillary Clinton, Pentágono, CIA, todo mundo queria [general e ex-chefe do setor de inteligência egípcio] Omar Souleiman, que era o chefe da tortura basicamente. O pessoal da Praça Tahrir o chamava de “Sheik of Torture”. Desse modo, como sucessor do então presidente egípcio, Osni Mubarak, tudo ficaria igual.

Os militares arrumaram um sistema onde botaram uma ditadura militar de fato [na prática], se livraram do chefe do regime, e de seu sucessor, que é o Omar Souleiman, hoje isolado. O regime ficou intacto.

Nada mudou essencialmente para os Estados Unidos porque eles continuaram a cooptar esse regime militar.

De que forma? Parece que existe uma cooptação direta, sem dissimulação.

Eles estão cooptando não só diretamente, mas via seu aliado principal na região, a Arábia Saudita, que há pouco “doou” US$ 4 bi para a ditadura militar do Egito se manter nos próximos meses. O Egito é um país quebrado, tem que comprar comida de fora, tem que pagar funcionários públicos e é um país que está à beira da bancarrota.

O “X” da questão foi quando a Primavera Árabe se mudou para a Península Arábica e para o Golfo Pérsico. Aí começou a atacar os interesses práticos regionais dos estadunidenses. No caso do Iêmen, na Península Arábica, a única coisa que interessa é a Al Qaeda. No Barein, eles têm a Quinta Frota estacionada. Essa polícia em meio ao Golfo Pérsico está do lado do Irã. A região para os estadunidenses é como se fosse os estados de Maryland ou Virgínia. É deles. Ninguém toca.

No Iêmen houve também um movimento popular, legítimo, com muitos jovens, exigindo o fi m também de uma ditadura de três décadas. Ali Abdullah Saleh caiu. Mas quando ele resolveu se exilar, ele foi para a Arábia Saudita, acolhido por seus primos, que disseram “nós acolhemos você e se ficar muito pesado, nós arrumamos um cara da sua confiança”.

No Barein é muito mais complicado. Existe uma maioria xiita dominada por uma ditadura sunita de 240 anos que os trata como cidadãos de segunda classe. Sede de uma quinta frota estadunidense e ligada aos interesses da Arábia Saudita e dos Estados Unidos. Um lugar assim jamais pode ser uma democracia.

Mas quando a Primavera Árabe teve seu caráter modificado, se é que isso ocorreu?


Existia a Tunísia e o Egito. No mundo inteiro criou-se a expectativa de que agora esse movimento pró-democracia iria tomar conta do norte da África e do Oriente Médio inteiro. Quando chegou no Barein, segundo minha leitura, foi o ponto crucial. Primeiro porque a Arábia Saudita invadiu o Barein e acabou com o movimento. No começo eles destruíram o centro dos protestos, num entroncamento no centro da cidade. Eles destruíram, inclusive, fisicamente o monumento, que é muito bonito, cilíndrico, com pérolas estilizadas em cima, que contava a história de Barein. E isso depois de três semanas do início dos protestos. Essa invasão da Arábia Saudita a gente só foi saber depois. Foi um pacto elaborado entre a casa de Saudi e o departamento de estado estadunidense. Fizeram um trato.


Confrontos na Tunísia deram início à primavera arabe

Como esses acontecimentos dialogam com o que ocorreu na Líbia?

Os Estados Unidos já estavam de olho na Líbia, porque lá havia começado um movimento em fevereiro, mas que foi depois capturado por um bando de oportunistas de todos os matizes. O que aconteceu na Líbia foi um Golpe de Estado, que começou a ser tramado em outubro de 2010.

Antes da Praça Tahir.

Muito antes. Lá no Egito começou, de fato, em janeiro. Em outubro de 2010, um chefe de protocolo de Kadafi , ele abandonou o governo e foi a Paris. Entrou em contato com a inteligência francesa, contou o que estava acontecendo, que era possível armar um golpe, não só em Trípoli, mas especialmente no leste, em Benghasi. Ele tinha todos os contatos, e conhecia um monte de gente que ia cair fora do governo e apoiar esse golpe. Os franceses adoraram a ideia.

O Sarkozy queria um motivo para criar um problema com a Líbia porque Kadafi não estava comprando o que ele disse que iria comprar dos franceses, como jatos Rafale e centrais nucleares.

No âmbito comercial, Kadafi havia feito sua escolha pelos Brics?

Mais para os russos, chineses e indianos. Além disso, a maior parte das exportações de petróleo não iam para a França e sim para a Itália. Existe, inclusive um gasoduto que vai do norte da Sicília até a Líbia, que se chama Green Xtreme, que abastece o sul da Itália. A Total (empresa de óleo e gás) francesa estava fazendo pressão em cima de Sarkozy.

Há outro elemento fundamental também: a água. As três maiores empresas de água privatizada são francesas. A Líbia tem o maior sistema de bombas de sugar água do mundo, e que foi pago pelo governo líbio, usando técnicos canadenses, sem usar um tostão do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial. Esse sistemas levam água do deserto do sul da Líbia para a costa mediterrânea. Os franceses já pensaram em privatizar essa água. “A gente teria mil anos de água fresca para vender para o planeta inteiro”. Todos esses interesses se mesclam.

Os estadunidenses queriam uma base na África, com o comando do Pentágono que se chamava Africomm (Comando da África). Agora ele está em Stuttgart, na Alemanha, pois nenhum país africano o quis. E adivinha quem foi o principal coordenador entre os africanos para impedir que os estadunidenses estabelecessem essa frota no continente? Muamar Kadafi .

No ponto de vista da Otan – Organização do Tratado dos países do Atlântico Norte, que nada mais é que o braço armado do Pentágono na Europa, com aqueles lacaios todos que já conhecemos. O plano para os próximos anos, já aprovado numa cúpula em Lisboa, em novembro do ano passado, é de transformar o Mar Mediterrâneo num lago da Otan, e eles falam mesmo em “Nato Lake” (Lago da Otan). O problema é que há três países que não entram nem na Otan e nem são membros das milhões de parcerias que a organização possui: Líbano, Síria e Líbia.

O interesse do Pentágono, da Otan, dos franceses e dos ingleses é isolar os Brics desse mercado, e somar os interesses dos outros árabes das monarquias, sobretudo Arábia Saudita e Catar. E por que Catar? Esse país é super próximo à França. O emir do Catar é amigo íntimo do Sarkozy e de empresários franceses, que investem muito no capital do Catar e vice-versa. Esse país queria se aproximar da Otan e ser colocado quase como um parceiro estratégico no Oriente Médio dos europeus, em termos políticos, comerciais e militares.

Quanto à Arábia Saudita, havia uma briga de dez anos entre o seu rei Abdulla e Kadafi , por causa da invasão do Iraque. Kadafi criticou o rei Abdulla ao vivo, chamando-o de traidor e dizendo “você está deixando os estadunidenses acabarem com os países árabes, é um absurdo”.

Mas é importante notar que Otan tem 27 membros e somente 12 participaram da guerra. A Alemanha, por exemplo, achou tudo isso um horror e desde o início não se envolveu.

Agora, como iriam legitimar essa guerra? Tinha um movimento legítimo de jovens pró-democracia, no oeste da Líbia, que se chama “17 de fevereiro”. Quando eles fi zeram os primeiros protestos em Bengazhi, essa foi a deixa para juntar todo esse pessoal a partir dos caras que tinham ido para a França em outubro de 2010. O pessoal que ia cair fora do regime em Trípoli, os islamistas do leste do Líbia, que estavam só esperando a deixa, aliados de conveniência. O pensamento era “OK, vamos começar um protesto e vamos tentar cortar o oeste da Líbia do leste, a gente se arma e depois tentamos invadir o oeste”.

Com o tempo, percebeu-se que a ofensiva dos rebeldes era descoordenada porque eles não tinham comando estratégico, não sabiam operar armas. De uma hora para outra eles passaram a ter um perfeito conhecimento do terreno, armas que não se sabe da onde veio, e estavam reprimindo as forças do Kadafi do oeste para o leste.

Criou-se a ficção de que Kadafi iria exterminar todo mundo quando chegasse a Bengazhi, cidade de 700 mil pessoas. Um absurdo! Ele queria ir até lá para acabar com uma guerra civil. Ele ia atrás dos cabeças, como em qualquer guerra. Se fosse nos Estados Unidos, na Itália, na Alemanha, seria inadmissível não agir dessa forma. O governo tem o direito de se proteger.

Isso criou o pretexto para a resolução da ONU do “No Fly Zone”, para impedir que caças de Kadafi bombardeassem civis. Soube-se depois que a Anistia Internacional foi à Líbia, de que não havia nenhuma prova de que seria cometido um massacre de Kadafi . Mas do ponto de vista da ONU, ou de quem manda no Conselho de Segurança, ou seja, EUA, Inglaterra e França, era suficiente.

Os Estados Unidos fizeram um pacto com a Casa de Saudi. “Se vocês nos derem o voto da Liga Árabe, dizendo que condenam a Líbia em relação a esse possível massacre, nós deixaremos vocês fazerem o que quiserem no Golfo Pérsico”. Foi aí que a Primavera Árabe se transformou em Contrarrevolução árabe.

Continua no Brasil de fato


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