27 maio, 2012

Argentinos desconfiam dos bancos e da moeda

Foto: BBC Brasil

Por Eric Nepomuceno - Buenos Aires
Do Carta Maior


Nas últimas semanas, uma das perguntas mais ouvidas na Argentina é a seguinte: Qué pasa con el dólar? Comprar dólares se tornou algo praticamente impossível. Pois bem: mais do que perguntar o que anda acontecendo com o dólar, talvez o mais correto seja perguntar o que acontece com a própria Argentina.

Numa escalada que começou em novembro e atingiu seu auge agora em meados de maio, o governo de Cristina Fernández de Kirchner fechou radicalmente a torneira da moeda norte-americana. É praticamente impossível, para os mortais comuns, comprar um mísero dólar. E para os não tão comuns, também.

O primeiro resultado foi o ressurgimento do câmbio negro. Enquanto o câmbio oficial está na casa dos 4,40 pesos, no paralelo a cotação ronda os seis pesos por dólar. Trata-se, é verdade, de um mercado residual, que movimenta cerca de vinte milhões de dólares por dia, contra os quase 400 milhões do mercado oficial e legal. Mas não deixa de ser um dado palpável no cotidiano de um país acostumado, há décadas, a poupar em dólar. É um fenômeno singular: todas as classes sociais, sem exceção, poupam em moeda norte-americana. Há desde os grandes poupadores até os assalariados de renda mais baixa que transformam cada tostão sobrante em dólares. Índices oficiais mostram que 66% das vendas de moeda norte-americana nos últimos dois anos significaram quantias inferiores a dez mil dólares. E mais: do total vendido no mercado legal e oficial, 44% se referem a somas inferiores a três mil dólares.

Pois as barreiras impostas aos argentinos que pretendem comprar moeda norte-americana se tornaram tão rígidas que hoje são quase intransponíveis.

Há vários aspectos a serem analisados nesse novo cenário. O mercado imobiliário, por exemplo. Os imóveis, tanto urbanos como rurais, são anunciados e vendidos em dólar, e em dinheiro vivo.

Conheço pessoas que, para finalizar uma transação imobiliária que envolvia somas consideráveis, recorriam a carros-fortes para levar o dinheiro.

Outro aspecto importante do uso da moeda norte-americana como poupança é a profunda e irremediável desconfiança dos argentinos diante do sistema bancário. Desde o ‘corralito’, que há doze anos limitou as retiradas de saldos bancários e congelou os depósitos em dólar num câmbio artificial, a poupança da população avançou sobre terrenos insólitos.

Calcula-se que cerca de 20 bilhões de dólares, quase a metade das reservas oficiais do país, estejam guardados em colchões, caixas de segurança alugadas pelos bancos, latas de biscoito, rodapés ocos em casas e apartamentos, enfim, em qualquer lugar. O argentino desconfia dos bancos e desconfia da própria moeda. Conheço gente que guarda quantidades consideráveis de dólares em casa, enterrados em vasos de planta, por exemplo, ou em pacotes disfarçados no congelador, como se fosse manteiga.

Tudo isso pode parecer muito pitoresco. Talvez seja efetivamente pitoresco. Mas quando um país de tal maneira dolarizado bloqueia o acesso ao dólar, a inquietação generalizada torna-se assunto sério.

Desde que, no segundo semestre de 2011, a economia argentina passou a dar sinais cada vez mais palpáveis de desaceleração, dispararam vários alarmas no governo. A Argentina tem problemas sérios na hora de conseguir financiamento externo. Depende basicamente de sua balança comercial para obter um superávit em dólares que permita fazer frente aos compromissos externos.

Com a economia se retraindo – no ano passado o PIB cresceu 9%, conforme diz o governo, ou 7%, como dizem os céticos, e em 2012 dificilmente irá muito além dos 3% – de maneira drástica, com as exportações encolhendo (agora, em abril, houve uma queda de 6% em comparação com abril do ano passado), a moeda norte-americana passa a se tornar alvo preferencial do governo.

Assim, além de secar a fonte onde era fácil encontrar moeda norte-americana, o governo restringiu de maneira radical as importações. Que ninguém gaste dólares que possam ir para os compromissos externos.

Desapareceram de lojas e supermercados geleias francesas, azeites espanhóis, facas brasileiras e massas italianas, da mesma forma que começam a escassear ferros de passar roupa, motores de geladeira, computadores ou peças de veículos. Além de bens de consumo, há queixas das dificuldades cada vez maiores de se importar insumos para a indústria e a agricultura.

A balança comercial deixou, em abril, um superávit robusto, de quase dois bilhões de dólares – apesar da retração nas exportações. A razão é simples é óbvia: as importações foram reduzidas ainda mais, e de forma brusca. O governo não esconde seu objetivo: alcançar, do jeito que for, um superávit de dez bilhões de dólares este ano.

Se vai conseguir ou não, ninguém se arrisca a assegurar. Mas que as medidas adotadas para isso estão sendo especialmente duras, ninguém se atreve a negar.

Neste outono frio e chuvoso, o dólar é tema de profunda nostalgia entre os argentinos – muito mais do que o sol.


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